Tem uma paixão enorme por aquilo que faz, não se veria a fazer outra coisa, e nem em sonhos, imaginava conseguir chegar ao cargo que ocupa. Carla Marques, CEO da Intelcia, confessa que aprendeu a ser líder e orgulha-se de formar e desenvolver pessoas, “imprimindo o que foi a minha aprendizagem de liderança para as outras equipas.” Despertou esse interesse quando, pela primeira vez, geriu equipas de vendas, na área dos seguros, onde começou o seu percurso, “gostei de ajudá-las a atingir objetivos.”
Trocou esta carreira pela consultoria de recursos humanos numa multinacional, a Randstad, onde permaneceu duas décadas, e liderou o negócio na área de Recursos Humanos e da Gestão e Operações de Outsourcing. A sua vida mudou quando assumiu o grande desafio da sua carreira: construir uma empresa de raiz. Assume que foi posta à prova, e sozinha, sem equipa, durante alguns meses, teve de montar toda a estrutura. Apesar de conhecer as complexidades de gestão de uma empresa, “interroguei-me se teria tomado a decisão certa.” Confessa que não se arrepende e cinco anos depois, a prova foi superada “temos 7000 pessoas, de 41 nacionalidades, e estamos nos três primeiros lugares do mercado”.
Portugal foi o mote para o crescimento da companhia e, a internacionalização já está em curso, desde o início do ano, liderada por esta executiva, que agora comanda, também, as operações no Brasil.
Incomoda-a que as mulheres ainda tenham o estigma da vergonha em tornarem-se visíveis, dentro e fora das empresas, e que não arrisquem em chegar-se à frente. Defensora convicta da meritocracia, não é apologista da liderança por quotas. O desafio de um líder, acredita, é fazer crescer as equipas e formar líderes fortes para que ele se torne dispensável, por isso, não tem dúvidas em afirmar que “a empresa sem a Carla Marques funciona.”
Como foi o seu percurso até chegar à Intelcia?
Comecei nos seguros, sempre ligada ao marketing e às vendas, a gerir equipas comerciais. Depois, enveredei por ser consultora de Recursos Humanos, a vender trabalho temporário, recrutamento e seleção. Tinha 21 ou 22 anos e fui crescendo numa multinacional, a Randstad, onde tive um grande orgulho de colaborar, durante 20 anos. Nesta empresa, cresci e cheguei a diretora do negócio, tinha a área de Recursos Humanos e da Gestão e Operações de Outsourcing.
Depois fui desafiada para construir uma empresa do zero. Tive muitas ‘borboletas’ na barriga. Vinha de uma multinacional extremamente organizada e estruturada e tinha como objetivo começar uma empresa do zero — sou a funcionária número um —, fui posta à prova. Apesar de ser diretora de negócio e conhecer as complexidades de gestão de uma empresa, neste novo desafio era a responsável por montar toda a estrutura. Houve coisas que não conhecia e tive de aprender, e dei mais valor ao trabalho que estava por trás de uma operação como esta. Não me arrependo de nada.
Trabalhei sozinha durante cinco meses em casa, e naquela altura, em 2018, não havia sequer este modelo de trabalho híbrido, resultante da Covid. Comecei oficialmente a 1 de setembro de 2018, mas já trabalhava há dois meses, durante o período de férias de verão, na procura de um espaço e a acelerar todo o processo.
Foi um trabalho solitário?
O trabalho de um líder tem uma componente muito solitária, como, em algumas situações, tomar decisões. No meu caso, durante cinco meses foi um trabalho muito solitário e, por isso, interroguei-me se teria tomado a decisão certa. Num mercado muito complexo e muito maduro de call center e outsourcing, diria que é o mais maduro da Europa, começámos com zero funcionários, em 2018, e desde 2023, somos 7000, com 41 nacionalidades.
O que a atraiu na proposta da Intelcia, foi o começar do zero?
Atraíram-me duas coisas. Conheci o líder internacional, com quem tive uma entrevista em Paris (com os dois acionistas), e proporcionaram-me entrevistas com pessoas dentro da organização antes de aceitar a proposta. Sabiam que eu tinha a experiência de uma multinacional, e a empresa ainda não estava numa vertente muito internacional, na altura — estava muito sediada em França, Marrocos e no negócio de África. Portugal era o segundo país da Europa a ser explorado. O CEO valoriza muito a componente humana na gestão de pessoas, apesar de acharmos que os call center têm muita tecnologia, que têm, mas a parte humana é o que faz a diferença. E ele tem uma visão da gestão de pessoas muito peculiar. Ainda hoje vai às operações, visita os países e considera a parte humana das organizações o fator de sucesso. Eu senti isso nas entrevistas, de forma muito genuína. Esta valorização da componente humana e o desafio de começar uma empresa do zero, levaram-me a aceitar a proposta.
Crescemos tão rápido que, em março de 2020, quando a Covid estava a aparecer, fizemos uma migração de duas mil pessoas e tivemos de preparar a organização para as receber.
“São os nossos assistentes que vão fazer a diferença naquilo que é a empatia do contacto. Queremos diferenciar-nos naquilo que é a gestão de pessoas e acho que estamos a fazer um bom caminho. As competências humanas continuam a ser insubstituíveis e tornar-se-ão ainda mais valorizadas.”
Qual o motivo deste crescimento rápido?
O desafio que me colocaram foi ser o parceiro privilegiado da Altice. Estamos a falar de migrações de pessoas com uma componente diversa de culturas de empresas. Migrámos colaboradores de cinco empresas, com diferentes formas de trabalhar, gerir, com diferentes culturas e métodos de gestão. Foi um desafio muito grande. Mas temos de ser ambiciosos e isso faz parte de um dos valores da organização: we dream, ou seja, colocar ambição em tudo o que fazemos, fazermos mais e melhor.
A empresa a iniciar de raiz não tinha nada, só importámos sistemas de payrolling. Tenho a sorte de ter convidado pessoas com muita experiência para trabalharem comigo, às quais não tive de ensinar nada. Consegui ter confiança nos desafios que lhes colocava, às vezes, com risco — na gestão há sempre risco —, mas confiando sempre na maturidade e senioridade da equipa, e fomos capazes. O desafio da Intelcia era estar posicionada nos primeiros lugares ao fim de cinco anos. E ao fim de três anos estamos nos primeiros três lugares do mercado e agora temos de abraçar novos desafios.
Quais são os principais desafios que a área enfrenta hoje e como é que se prepara para os enfrentar?
O grande desafio é a componente de gestão de pessoas. É uma atividade de mão de obra intensiva, tem a ver com a natureza do setor, que é controlada ao segundo, por nós, pelo próprio colaborador e pelo cliente, o que nos leva a querer fazer mais e melhor. Porque temos acesso à informação, temos maior capacidade de tomar decisões.
Temos também a vertente entre o que é o equilíbrio entre a tecnologia e a valorização humana. Todos os clientes querem a introdução da tecnologia e temos uma empresa do Grupo – E-voluciona —, que se foca na eficiência operacional com a introdução de robôs, chatbots, inteligência artificial. Mas consideramos que são os nossos assistentes que vão fazer a diferença naquilo que é a empatia do contacto. É este equilíbrio que temos de ter: naquilo que são as atividades transacionais e introduzir a parte humana como diferenciadora do negócio. Não é fácil. Os clientes querem eficiência operacional, mas há atividades que merecem toda a parte da empatia humana, apesar da robotização.
Sendo um negócio muito maduro, e muito complexo, diria que as grandes variáveis do setor são a gestão de pessoas, a tecnologia e o preço. No último estudo a que tivemos acesso, o preço já está em 3.º lugar.
Têm objetivos muito ambiciosos dos clientes, mas introduzir esta componente humana leva a que o assistente demore mais tempo. Como se gere isso?
É uma atividade em que a tecnologia permite controlar ao segundo a qualidade do serviço. O cliente quer resolver o seu problema no atendimento, mas quer também empatia de quem o está a resolver e cada vez a valoriza mais. Ou seja, a diferenciação naquilo que é a resolução do problema do cliente com o assistente. Nas atividades mais complexas o cliente introduz e valoriza a parte humana, e bem, para a resolução do seu problema.
Como é que a IA entra neste negócio e como se mede?
Hoje, consegue-se medir tudo. Conseguimos medir as chamadas que vão para cada fluxo de atendimento. A tecnologia permite até que os melhores clientes sejam atendidos pelos melhores assistentes.
Temos ainda a parte da voz natural, ou seja, quando ligamos para um call center é um robô que está a falar, e não um assistente. Estas são tarefas transacionais. Todas as tarefas mais complexas vão exigir a parte humana. Temos reporting de hora a hora com os resultados das operações. Na companhia todos recebem diariamente às 18h, o resultado das operações. É bastante intensa a responsabilidade, mas é esta dinâmica que me faz gostar muito disto.
“Invisto muito, na minha agenda, na comunicação interna e acho que isso vai ser o diferenciador na Intelcia. Temos valores muito fáceis, porque a comunicação tem de ser simples, que são: we dream, we care, we do”
O que é que vos distingue das demais empresas da área?
Essa é uma das perguntas que faço à minha equipa. A tecnologia compra-se e posso utilizá-la, mas é a forma como a utilizo na parte humana que é o elemento diferenciador. Queremos distinguir-nos naquilo que é a gestão de pessoas e acho que estamos a fazer um bom caminho. Embora a tecnologia seja capaz de realizar algumas tarefas, as competências humanas continuam a ser insubstituíveis e tornar-se-ão ainda mais valorizadas.
Para gerir 7000 pessoas com uma diversidade geográfica, com 41 nacionalidades, e diversidade de idades, dos 18 aos 70 anos, no call center, temos de ter a capacidade de fazer dinâmicas de engagement das equipas, muito criativas. Que sejam customizadas e aderentes ao maior número de população. É aqui que queremos ser diferentes: ter um grande nível de engagement. Tivemos uma participação no nosso survey de 95%, em 7000 pessoas. Tenho muita matéria crítica para trabalhar e levamos muito a sério este resultado.
Temos também formas de medir este engagement. O Intelcia Journey é uma ferramenta que mede todos os touchpoints das nossas pessoas. Temos 35% da nossa população que muda, ao ano — são 2000 pessoas. É uma atividade de turnover e temos de ter mecanismos para o reduzir. Recrutamos cerca de 300 pessoas por mês. Há pessoas que não se adaptam pela natureza da atividade.
Medimos a qualidade do serviço quando entrevistamos pessoas, quando as colocamos em formação, que dura dois a três meses, e medimos a satisfação ao fim de três meses de formação — é o período em que temos mais turnover —, com muitas questões diretas à liderança. E, ao fim de seis meses, medimos novamente e também fazemos a entrevista de saída, ainda que faça parte da cultura portuguesa, as pessoas não dizerem tudo quando saem. Todos os meses na nossa reunião de resultados, mostramos os resultados de satisfação, por área até ao nível do manager.
Sendo uma atividade de mão de obra intensiva, temos 700 líderes e destes resultados com questões muito direcionadas à liderança nasceu um projeto de formação para estes 700 líderes – Grow´IN. Temos aqui uma aposta dos Recursos Humanos no desenvolvimento de competências e investimos muito na comunicação, porque as pessoas querem saber o que é que acontece na organização. Numa diversidade de 7000 pessoas, normalmente faz-se muito esta comunicação só para os managers, mas nós comunicamos até ao nível dos assistentes de call center, que têm acesso à nossa intranet internacional, e todos podem saber o que está a ser feito em todos os países que operamos. Invisto muito na comunicação interna e acho que isso vai ser o diferenciador na Intelcia. Já fazemos isto há cinco anos e vemos frutos, mas ainda temos muito para fazer.
Agregamos, de dois em dois meses, todos os líderes da companhia para lhes comunicarmos as novidades internas, a nível nacional e internacional. As pessoas vêem-se, assim, envolvidas no projeto.
Tenho também as Morning Conversations, em que todos os meses, durante uma manhã, convido 15 pessoas da operação, que não são líderes, para falarem comigo. Orgulho-me muito de as fazer e tem sido muito útil porque descomplicamos aquilo que é um momento daquelas pessoas, de diversas áreas. E elas consideram isto muito dignificante e de grande proximidade.
Tudo o que fazemos medimos, para melhorar. E fazemos isso também nas Morning Conversations, medimos o que é que esperam de nós. E cada vez são mais exigentes connosco, o que é muito positivo para fazermos mais e melhor.
Na companhia temos valores muito fáceis, porque a comunicação tem de ser simples, que são: we dream, we care, we do. No we dream já demos provas de que somos ambiciosos. O we care, é toda esta componente de gestão de pessoas. No we do, estamos aqui para sermos o melhor parceiro de outsourcing.
Numa gestão de 13 sites e 7000 pessoas não temos tudo bem e as lideranças não podem pensar que o têm. E também não temos o poder da omnipresença. Um dos trabalhos em que participei há uns cinco anos foi descomplicar a comunicação. As pessoas têm de saber em que barco estão e qual o caminho do seu barco.
Empregam certamente muitos jovens. Que novos desafios é que as novas gerações vos colocam?
Eles querem ambientes colaborativos, ágeis e querem ferramentas ágeis e intuitivas. Mas nós dependemos grandemente das ferramentas dos clientes naquilo que é o CRM e, por vezes, não são assim tão ágeis. Por outro lado, o jovem de hoje quer projetos ambiciosos, colaborativos, mas de curta duração (seis meses/ um ano). E há projetos que não são de curta duração, que podem durar dois e três anos. E também querem um crescimento rápido de carreira. E têm de provar que são bons e que têm competências. Este é o grande desafio dos jovens. Aliado a isto, o facto de serem jovens, com uma multiculturalidade muito grande. Esta mistura de perfis culturais é muito desafiante. Os jovens que temos aqui são jovens do mundo. Temos de ter a capacidade de ter um ambiente colaborativo, criativo, lideranças ágeis, e daí o nosso investimento em formação de liderança. Portanto, este é o grande desafio de hoje: a multiculturalidade e o quererem projetos de curta duração, que por vezes não é possível.
Na Intelcia, como se reparte o género, na base e nas lideranças?
Na base temos muitas mulheres, o que tem a ver com a história do setor. Se bem que, atualmente, no recrutamento estamos a receber mais homens para a área de call center. Nas equipas de gestão, de topo, a nível mundial, está equilibrado. Eu faço parte da comissão executiva internacional, onde estão incluídas outras outras mulheres, num conjunto total de 10 elementos, o que representa cerca de 40% de mulheres. Na gestão, onde estão os 700 líderes, estamos equilibrados, é 50/50.
Privilegio a gestão por meritocracia. Vou fazer 50 anos, comecei a carreira há mais de 25 anos, e sempre trabalhei com homens. Assumi posições de liderança muito cedo, e tive alguns momentos de oposição à gestão feminina, mas temos de ter capacidade adaptativa, acreditar em nós e criar uma rede de networking que nos permita também exemplificar a nossa qualidade de trabalho e desempenho.
“Não sou apologista da liderança por quotas, no sentido de que não podemos designar uma líder feminina só porque temos a quota. É por meritocracia”
Este é um bom tema. Alguma vez se sentiu claramente discriminada no contexto de trabalho por ser mulher?
Sim, já senti, mas giro naturalmente esse processo. Nós mulheres, temos de ter essa capacidade e agilidade de reagir de forma positiva, mostrando as nossas capacidades e não levar isto a sério. E quando eu digo a sério, é tirar a parte negativa do momento. Nós demonstramos a parte positiva do nosso valor enquanto gestoras por meritocracia. Temos de aproveitar esse momento para demonstrar que temos as competências de liderança como qualquer homem.
Essas situações aconteciam mais dentro da empresa onde trabalhava, entre pares, ou mais nas relações com os clientes?
Em ambas as situações. Eu diria que nunca foi um tema que me preocupou. Temos de fazer o nosso caminho por meritocracia. E acredito que vamos chegar lá. Não sou apologista da liderança por quotas, no sentido de que não podemos designar uma líder feminina só porque temos a quota. É por meritocracia.
Quais os pontos fortes que acha que a conduziram até ao cargo que tem hoje?
A minha autenticidade. Sou muito autêntica, muito transparente e muito expressiva no meu rosto. Toda a gente sabe quando estou bem ou mal, quando gosto e quando não gosto.
O meu gosto por desenvolver equipas. Quando construí esta equipa de gestão nenhuma pessoa tinha experiência de gestão de topo. Estavam muito na vertente operação, daquilo que é o negócio. Tenho orgulho em fazer crescer pessoas que nunca foram diretores e hoje são diretores de 1.ª linha desta casa. Promovo, particularmente, o crescimento interno.
A honestidade. Temos de ser muito íntegros e honestos e dizer aquilo que pensamos, obviamente com o cuidado que a situação possa merecer.
Também esta minha cultura de ambição e energia. Temos de ser ambiciosos, fazer mais e melhor. A ambição traz-nos novas oportunidades, faz-nos ser criativos, inovadores e quando implementamos uma cultura de ambição, aceitamos e permitimos o erro, damos espaço à criatividade e isso traz novas áreas de negócio, novos clientes, dá-nos mais rentabilidade, e a possibilidade de pagar melhores salários. Está tudo muito interligado.
“Quando lancei a Intelcia vinha de uma empresa holandesa, altamente estruturada, e mudei para uma empresa marroquina/francesa, que é mais aberta ao risco e mais ágil na decisão. Tive de me adaptar a diferentes métodos de trabalhar e a outra cultura. Hoje ir para o Brasil, para mim, não é difícil.”
Qual o peso da operação em Portugal no grupo Intelcia e em que mercados está presente?
Representa cerca de 20% no grupo. Estamos presentes em 17 países. Já estávamos em alguns países africanos, e fomos para os Estados Unidos, Egipto e comprámos a operação em Espanha. Portugal foi o mote para o crescimento da companhia em termos internacionais. Hoje temos um desafio muito grande, aliado aquilo que é construir equipas fortes. Temos a confiança de explorar o Brasil, e estamos a arrancar com operações nesse país, que é muito grande e é um mercado muito maduro, na área de BPO – Business Process Outsourcing. Vai ser desenvolvido com as equipas portuguesas, o que me dá orgulho nesta capacidade de liderança, de espelhar as competências das nossas equipas, fazê-las crescer e demonstrar lá fora que têm confiança em Portugal para gerir o Brasil.
O momento mais desafiante da sua carreira foi quando teve de lançar a Intelcia do zero ou este agora de avançar para o Brasil?
Foi quando lancei a Intelcia de raiz. Vinha de uma empresa holandesa, altamente estruturada — os holandeses são muito bons a trabalhar, são muito estruturados, processuais —, e mudei para uma empresa marroquina/francesa, que é mais aberta ao risco e mais ágil na decisão. Depois de 20 anos de mentalidade de uma empresa estruturada tive de me adaptar a diferentes métodos de trabalhar e a outra cultura. Hoje ir para o Brasil, para mim, não é difícil.
Essa internacionalização vai ser a partir do escritório de Lisboa. Também é um desafio grande.
Claro que é. Temos a distância geográfica e a gestão de operações de língua portuguesa no Brasil. Também estamos a criar oportunidades a clientes portugueses para irem para o Brasil fazerem operações a um custo mais competitivo.
Temos ainda operações em português do Brasil a serem geridos por nós, no Brasil. Destacámos uma equipa portuguesa com experiência na gestão de operação, que está lá sediada. E vão lá gestores de três em três meses ou de seis em seis meses. É um orgulho para mim ter esta equipa forte e ter este voto de confiança.
Com esta internacionalização, isso significa quantas pessoas na operação?
É uma operação que começou este ano, em janeiro, e temos cerca de 80 pessoas. Esta é uma ambição sem limite, num mercado muito maduro no BPO — os brasileiros são altamente profissionais e temos muito a aprender com eles.
“O grande risco das grandes lideranças é tornarem-se egocêntricas, e não verem aquilo que é a sua organização.”
Nesse percurso de 25 anos, quais foram as principais aprendizagens que fez, em termos de carreira, de liderança? O que é que mudou em si?
O que valorizei em toda a minha vida foi a humildade e a empatia. Quando somos humildes sabemos quais os nossos pontos fortes e de melhoria. Se formos humildes na forma de melhorar a nossa performance, conseguimos chegar lá. A empatia, o colocarmo-nos no lugar do outro, faz parte do crescimento da carreira.
Eu diria que a grande aprendizagem é sermos empáticos, autênticos e humildes. Transportamos as nossas raízes, enquanto pessoa, para a parte profissional o que nos permite fazer a nossa pegada de crescimento profissional, seja homem ou mulher. O grande risco das grandes lideranças é tornarem-se egocêntricas, e não verem aquilo que é a sua organização.
Ser empático, autêntico e humilde, são as características que eu valorizo quando contrato uma pessoa. Tem a ver com a educação que tive. O meu pai dizia-me sempre para não fazer aos outros o que não gostaria que me fizessem a mim. É colocarmo-nos no lugar dos outros. E fazermos o nosso percurso com muita paixão naquilo que fazemos.
Gosto muito daquilo que faço e não me veria a fazer outra coisa, é uma atividade de grande dinamismo.
Estas características de um líder são as que tenho aprofundado e melhorado, ao longo da minha carreira, porque é muito fácil tornarmo-nos num líder egocêntrico, o poder leva a isso. Enquanto líderes experienciamos momentos egocêntricos e, em alguns deles, temos de o ser, mas com equilíbrio. Fugir da gestão egocêntrica é muito importante. A pensar nisso, ofereci a cada um dos meus líderes, um livro de referência, que recomendo, O líder come por último, de Simon Sinek.
O grande risco das grandes organizações, é o poder, o brilho, que leva a que um líder se desfoque daquilo que é a gestão das organizações.
A jovem Carla alguma vez ambicionou ou sonhou chegar a este cargo que hoje ocupa?
Não. No entanto, os meus pais já me diziam que no grupo de amigos, eu é que geria as brincadeiras e que os outros me seguiam. Acho que tenho essas raízes mesmo intrínsecas, pelo feedback que me deram os meus pais. Despertou-me esse interesse quando, pela primeira vez, geri equipas de vendas, gostei de ajudá-las a atingir objetivos. Gosto de ser líder, e gosto de formar líderes e imprimir o que o foi a minha aprendizagem de liderança para as outras equipas.
Quando chegamos a CEO numa equipa estruturada, qual é o nosso papel? Fazer crescer o negócio, negociar o EBITDA, fazer os business reviews mensais. Mas o meu papel, hoje, é fazer crescer as minhas equipas, para que eu não seja necessária. Diria que a empresa sem a Carla Marques funciona. O desafio de um líder é formar líderes fortes para que ele se torne dispensável.
Mas líderes fortes também fazem crescer o negócio.
É verdade. E temos uma boa equipa para fazer um Brasil com sucesso.
“Às vezes, estamos tão imbuídos no mundo do trabalho, que só vemos as coisas à nossa maneira. Quando as partilhamos com outra pessoa, dá-nos outra visão.”
Nesta caminhada como é que se preparou? Teve formação, mentores ou fez a caminhada de descoberta sozinha?
Eu aprendi a ser líder. E aprende-se a ser líder, cada vez melhor. Foi a experiência na função que me ajudou. Como leio muito, tiro muito bom partido daquilo que é a experiência das outras organizações, daquilo que posso aprender e aplicar no dia a dia. Os livros de gestão dão-nos um bom sumo para trabalharmos e podermos implementar na nossa organização.
Sempre tive coaches a trabalhar comigo. Defendo muito o coaching, leva-nos a pensar as coisas de outra maneira. Internamente, temos um plano de desenvolvimento dos nossos diretores com coaching. Às vezes, estamos tão imbuídos no mundo do trabalho, que só vemos as coisas à nossa maneira. Quando as partilhamos com outra pessoa, dá-nos outra visão.
Tenho ainda umas pessoas de confiança, que não são meus mentores, mas são do mercado, a quem recorro quando me quero aconselhar sobre o negócio, e que me fazem ver as coisas de outra maneira. Converso com o coach, numa vertente de desenvolvimento de competências, ou com pessoas com experiência na gestão, a quem, por vezes, telefono de manhã cedo para pedir a opinião sobre um problema de gestão, e que me ajudam a refletir melhor. Estas foram as metodologias que arranjei: os livros, o coach, com muita frequência, e pessoas de confiança com quem vou partilhando.
Como é que se chega a essas pessoas que não são mentores? Como é que se identifica alguém que nos possa ajudar?
Tem a ver com o desenvolvimento da nossa rede de contactos, que cada vez mais temos de desenvolver. Começo por criar relação de confiança para depois partilhar problemas e pedir opiniões. As pessoas que estão na gestão do negócio e que estão no mundo empresarial ajudam-nos e já me deram muito bons conselhos. E o inverso também acontece. Não são mentores oficiais, são mentores de networking.
Diz-se que as mulheres têm a sua rede, mas não recorrem a ela, ao contrário dos homens.
Essa forma de pensar acaba por ser um estigma que trabalha contra nós. Temos de ter esta capacidade de nos tornarmos visíveis, criar o nosso networking e gerir isto com naturalidade e não relacionado com o facto de ser masculino ou feminino. Cabe-nos a nós gerir, seja homem ou mulher, as nossas visibilidades no nosso networking. A mulher não tem de ter vergonha. Nós, mulheres, é que damos muito valor à vergonha que a mulher possa ter. Temos de mudar este discurso.
“Temos de ter esta capacidade de nos tornarmos visíveis, criar o nosso networking e gerir com naturalidade.”
Que hábitos diários é que contribuem para o seu sucesso?
Deito-me cedo e acordo cedo, cerca de duas horas e meia antes de sair de casa. Faço passadeira, três vezes por semana, durante 45/ 60 min. Tomo o pequeno-almoço, a ver as notícias nacionais e internacionais. O tempo na passadeira é para manter a mente equilibrada e aliviar o stresse. Serve para pensar na minha vida pessoal e profissional. Sou mãe de duas filhas e tenho também a parte pessoal para gerir. Enquanto estou na passadeira, vejo o campo, olho para o horizonte, e organizo o meu dia. Depois foco-me naquilo que é importante fazer, mas com um propósito muito positivo, e foco-me também naquilo que tenho de resolver, mas sempre com um propósito muito objetivo. Enquanto estou na passadeira não oiço notícias na rádio, foco-me no meu dia a dia para perceber o que é que tenho de fazer bem, melhor ou o que tenho de mudar. É um período de reflexão. Depois, tranquilamente, tomo o pequeno-almoço. É a refeição que mais gosto, em que estou calma e preparo o meu dia.
O que deveríamos ter perguntado sobre si que não perguntámos?
Dou muita importância à vertente social, que tem de começar dentro da empresa. Isso para mim, é o mais importante. As empresas têm por hábito fazer a parte social para fora. E solidariedade tem de começar de dentro. Falo até com emoção sobre isso, porque temos aqui pessoas com muitas dificuldades. Empenho-me muito em tudo o que é a vertente social cá dentro. A questão da injustiça é algo que me incomoda muito. Na gestão das organizações, às vezes, é muito difícil ser justo, mas há critérios que não são toleráveis. Ponho o meu cunho de justiça e da parte social dentro da empresa. E, só depois, vamos lá para fora. É muito bonito comunicar o nosso desenvolvimento lá fora, mas a verdade é que tem de começar cá dentro.
Que conselho é que deixa às mulheres que queiram fazer carreira nesta área e chegar à liderança?
Têm de ter uma paixão enorme naquilo que fazem. Devem construir a sua própria visibilidade, dentro da organização, seja uma empresa nacional ou internacional, e para o mercado. Devem criar um networking diversificado, de género, idade, experiência e de setor. Não ter medo de arriscar e não ter medo de mostrar que querem abraçar um novo desafio, convidarem-se a si próprias na organização dizendo que gostariam de abraçar um desafio. Ainda há um estigma disto acontecer e não há que ter receio.
O líder de hoje tem de ter uma capacidade muito grande de inovação, seja homem ou mulher, e estar sempre no radar daquilo que são as componentes de inovação e visão de gestão, do negócio, de liderança. Tem de se preparar bem.
Leia mais entrevistas aqui.