O triunfo do mal

Não queria escrever este texto. Mas a onda de notícias que nos chegam aos ouvidos é alucinante e não consigo fugir do tema.

Em setembro, chegou-nos a notícia do caso Pelicot, o francês que angariava outros homens para violar a mulher inconsciente e, muitas vezes, perto da paragem cardíaca, filmando e fotografando os atos. Foi assim que foi descoberto, após denúncias de outras mulheres, que ele fotografava em centros comerciais, levantando-lhes as saias nas escadas rolantes e tirando fotografias das suas roupas interiores. A partir daqui, numa busca à sua casa e ao seu computador, as cenas de dezenas de homens a violar a mulher durante 10 anos apareceram. Mais de 50 foram identificados e alguns acusados. Homens da mesma zona do país, com idades entre os 26 e os 76 anos, com todo o tipo de profissões e estilos de vida. Nada tinham em comum, senão a região onde viviam. Muitos violaram a mulher mais do que uma vez, tantos até cinco ou mais. Eram ex-polícias, agentes penitenciários, soldados, bombeiros, funcionários públicos, jornalistas, vereadores locais, enfermeiros, diretores de empresa. Casados, com filhos, vidas familiares estáveis, presenças na comunidade.

Entretanto, descobriu-se que a rede Telegram tem um grupo com 70 mil portugueses onde são partilhadas fotografias, vídeos e mensagens não consentidas de mulheres com cariz sexual. O chamado revenge porno. Alguns dos membros escrevem histórias à volta dessa mulher com pormenores e links diretos às suas redes sociais. São SETENTA MIL HOMENS PORTUGUESES. Há canais que se chamam “Esposas”. Outros “Em casa”. Sim, com fotografias das filhas. Muitos só a assistir. Nenhum a insurgir-se contra. Querem perceber melhor do que estou a falar? Leiam isto.

Finalmente, a notícia das 80 queixas de assédio e violação no jazz português contra 15 pessoas diferentes, o que tem levado muita gente a confirmar que o ambiente é misógino, violento, homofóbico e de assédio.

Há uns dias, a propósito deste assunto, uma amiga dizia-me que num jantar todas as suas colegas confirmaram que já tinham sido vítimas de algum tipo de assédio.

Na verdade, os números não mentem: uma em três mulheres, num total de 736 MILHÕES de mulheres, serão alvo de algum tipo de violência de cariz sexual. Este número não inclui o assédio. É mesmo violência física efetiva, sexual ou não.

Quanto ao assédio no trabalho, é provável que todas passemos, pelo menos, por uma experiência na vida, já que uma pesquisa feita no Brasil revela que 72% das mulheres sofreram assédio no trabalho. Se calhar, temos até fotos nossas a circular pelos Telegrams desta vida?

 

As minhas grandes questões são estas:

O que leva dezenas de homens a violar uma mesma mulher sem sentidos?

O que leva 70 mil portugueses a participar num grupo onde a privacidade de mulheres é completamente devassada?

O que torna uma área profissional um ambiente propício a todo o tipo de violência contra o sexo feminino?

O que se passa com os homens que cometem estes crimes?

O que se passa com os homens que assistem a tudo isto e se calam?

 

São perguntas que me atormentam, porque não consigo encontrar respostas. E sem respostas, não vejo solução. Vamos continuar a viver num mundo onde nascer mulher significa nascer com a grande probabilidade de ser violada, assediada e/ou violentada pelo menos uma vez na vida.

E isto tem um custo – tem um custo elevadíssimo pessoal que é impossível quantificar e pode afetar não só a mulher, mas as suas famílias e gerações seguintes. E tem também um custo económico – em toda a União Europeia, o custo da violência de género foi estimado em € 366 biliões por ano, com a violência contra as mulheres representando 79% desse custo, ou seja € 289 biliões.

Tudo isto sempre existiu, mas esta banalização da violência contra mulheres perpetrada com a ajuda de redes sociais é assustadora. Humilhar, pontuar, objetificar, vingar.

O ódio contra as mulheres, a misoginia, a masculinidade construída sobre a humilhação da feminilidade, a superioridade criada com a violência de género que encontro nestes casos assusta-me.

À medida que vamos ganhando terreno na sociedade e no trabalho, noto que este estilo agressivo e sexualizado para travar a evolução para a igualdade se repete e intensifica, com a perda de poderes por parte dos homens e atribuindo a culpa disso mesmo às mulheres e vendo-as como uma ameaça.

Mas o meu medo reside também em quem vê e se cala.

Como me dizia uma vez um amigo: “tão criminoso é o que comete o crime como quem mantém a porta fechada para ninguém ver”.

Protejam as vossas mulheres, filhas, amigas e colegas. Defendam-nas e apontem o dedo quando assistirem a algo de errado. Porque um dia vai ser a vez delas a precisar que alguém as ajude. Não duvidem.

 

Mais informações aqui Facts and figures: Ending violence against women and girls

 

Inês Brandão é fundadora e Global Business Manager da Frenpolymer. Leia mais artigos de Inês Brandão.

Publicado a 14 Novembro 2024

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