Maria do Carmo Neves: “Começámos do zero, fizemos o caminho das pedras e hoje temos 9 empresas e 800 empregados”

Médica de carreira hospitalar, com uma paixão assumida pela investigação científica, Maria do Carmo Neves deu um salto de fé quando fundou com o marido a Tecnimede. Em pouco mais de 40 anos, metade dos quais como CEO, transformou a empresa num grupo farmacêutico 100% português. Hoje têm fábricas em Portugal e em Marrocos e vendem para mais de 100 países. Feito o balanço, a presidente do Conselho de Administração, acredita que o dever foi cumprido, e que a recompensa é a mesma de quando fazia medicina: ”construir”.

Maria do Carmo Neves é presidente do Conselho de Administração do Grupo Tecnimede.

Inquieta por natureza, Maria do Carmo Neves ambicionava mais do que ser médica pneumologista de carreira hospitalar. Fascinada pelo universo da investigação científica, uma paixão que partilhava com o marido, Jorge Ruas, também pneumologista, depressa percebeu que só havia um caminho para lá chegar: “ir pelos próprios pés.” Juntaram o conhecimento que ambos traziam, enquanto trabalharam na indústria farmacêutica — atividade que acumulavam com  a atividade no Hospital Pulido Valente — e concretizaram o sonho comum. Desde que criaram a Tecnimede, em 1980, afirma que nunca se desviaram do objetivo, que se mantém até hoje: fazer investigação e desenvolvimento e internacionalizar a empresa. A presidente do Conselho de Administração do Grupo, assegura que com o marido formou “uma dupla muito pragmática, com os pés no chão e focada em projetos”, o que garantiu o sucesso da empresa. Em pouco mais de 40 anos conseguiram transformar a empresa no maior grupo farmacêutico português a operar em Portugal, que exporta a maior parte da sua produção para mais de 100 geografias, tendo presença direta em Espanha, Itália, Marrocos, Colômbia e Brasil. Integra ainda duas unidades fabris, em Sintra e Marrocos, que asseguram a produção própria de medicamentos.

Quando olha para trás, sente-se recompensada, e a recompensa, garante, não é material. “É aquela sensação, que também tinha quando fazia medicina, de chegar ao fim do dia e dizer que fiz algo e fiz fazer.” Acredita ser este o seu papel, desde que deixou, há dois anos, a cadeira de CEO, que ocupou durante mais de duas décadas “é não deixar que o pé se levante do acelerador e manter as pessoas focadas e motivadas.” Mesmo não estando presente diariamente nas rotinas da empresa, a empresária não fecha as portas ao conhecimento, continuando à frente da Associação Portuguesa de Medicamentos Genéricos, Biossimilares e Medicamentos de Valor Acrescentado (APOGEN) e integrando a direção da Cruz Vermelha Portuguesa. Acumula ainda a vice-presidência da Colab4Ageing, uma instituição que se dedica à pesquisa para uma maior longevidade.

 

O que a levou a fundar, em 1976, a Tecnimede com o seu marido, ambos médicos de profissão?

O meu marido era uma pessoa muito inquieta e eu também. Éramos os dois médicos pneumologistas do Hospital Pulido Valente, na fase de jovens adultos. Mas ele, ainda com mais obsessão do que eu, pela investigação. Naquela época, não havia grande espaço para este tema, o espaço era ocupado pela medicina preventiva e curativa. Perante essa impossibilidade, ele achou que só havia uma forma: a de ir pelos próprios pés. E fundámos a empresa, numa área em que ambos tínhamos alguns conhecimentos pois trabalhávamos também na indústria farmacêutica, embora em empresas diferentes. Por isso, nada melhor que juntar o conhecimento que já tínhamos da área farmacêutica e ter a possibilidade de desenvolver e fazer a investigação que tanto desejávamos.

 

Eram médicos de carreira hospitalar, e também trabalhavam na indústria farmacêutica. Em que áreas?

Naquela época era possível  fazer medicina hospitalar e trabalhar na indústria farmacêutica. O meu marido assumia o departamento médico e de marketing e vendas de uma farmacêutica multinacional, e eu a área regulatória de uma empresa farmacêutica nacional. Eram áreas diferentes, mas a junção destas expertises permitiu que fosse possível iniciar a actividade da Tecnimede.

 

“A criação da empresa foi um instrumento para nos conduzir à investigação. Nesta área, temos seguido todos os passos, mas ainda não chegámos ao patamar principal, que é a investigação disruptiva, mas como somos corredores de fundo, tudo faremos para lá chegar.”

 

Que ambições é que tinham, além da investigação, quando criaram a empresa? Alguma vez pensaram que iriam chegar ao que são hoje?

Sim e não. Não formámos a empresa para criar riqueza pessoal, mas sim para fazer investigação. Mas para fazer investigação é preciso criar riqueza. A investigação é dispendiosa e é incerta no seu resultado final. Para criar riqueza tivemos de criar áreas comerciais, paralelamente à investigação. E desde esta primeira fase, que o Grupo Tecnimede nunca pensou ficar apenas em Portugal, porque se assim fosse nunca teria retorno suficiente para fazer face aos valores investidos na investigação.

Muitas vezes perguntam, porque é que não seguimos o modelo tradicional, de primeiro fazer crescer a empresa e só depois a internacionalizarmos? Não o fizemos, porque precisávamos de criar volume e, por isso, alargar mercado.  Iniciámos  com o objetivo de sermos uma empresa, chamemos-lhe global, mas que ainda hoje não somos. A criação da empresa foi um instrumento para nos conduzir à investigação. Nesta área, temos seguido todos os passos, mas ainda não chegámos ao patamar principal, que é a investigação disruptiva, mas como somos corredores de fundo, tudo faremos para lá chegar.

 

Quando começaram com a investigação já tinham lançado produtos?

Tudo aconteceu mais ou menos, em simultâneo. Mesmo com a Tecnimede a funcionar continuámos sempre na carreira hospitalar o que nos permitia estar sempre ligados às necessidades. Começámos pequeninos, éramos uma start-up, com meia dúzia de colaboradores, hoje somos mais de 800. Na altura, conseguimos ter acesso a dois produtos, um vitamínico e um vasodilatador cerebral. Depois foi um não parar mais, desenvolvendo e investigando produtos que satisfizessem as necessidades médicas.

Há mais de 40 anos, Portugal já tinha medicamentos genéricos, não com esse nome, chamavam-se cópias. Antes de entramos na Comunidade Europeia, a proteção comercial dos produtos, as patentes, não eram tão abrangentes como são hoje. Desde que a patente de processo já tivesse caducado, mesmo que tivesse outras patentes em vigor, era possível desenvolver, registar, aprovar, seguir o seu trajeto, de preço e comparticipação, e lançar o produto no mercado português. Era assim que tudo funcionava antes de entrarmos na Comunidade Europeia. Estes medicamentos denominados cópias existiam também em Espanha, Itália e Grécia, os países do sul da Europa. Mas os medicamentos genéricos já existiam, desde os anos 70, noutros países, como a Alemanha. Genéricos é um nome administrativo ou regulatório que classifica este grupo de produtos, que são iguais em eficácia e segurança ao produto de referência, mas que já não têm exclusividade de mercado. Quando os medicamentos genéricos chegam ao mercado, os serviços de saúde posicionam-nos a um preço, no mínimo, 50% abaixo. Ou seja, os medicamentos genéricos foram criados para haver sustentabilidade nos serviços nacionais de saúde – em Portugal e em qualquer parte do mundo.

 

Começaram com os produtos chamados cópias?

Começámos com os medicamentos chamados cópia, ou seja, por aquilo que seria mais acessível à dimensão da empresa e à nossa capacidade tecnológica e financeira da altura. A seguir criámos um campus de investigação e desenvolvimento e começámos a desenvolver o que são hoje os medicamentos genéricos. Alocamos a esta área de I&D, que é o core da empresa, cerca de 15 a 17% das receitas  do Grupo Tecnimede. Fomos acrescentando valor aos produtos, com novas indicações para  moléculas conhecidas, novas formulações e dosagens e novas vias de administração – os value-added medicines, que vêm preencher lacunas, especialmente no tratamento de doentes com patologias crónicas, aumentando a compliance do doente, que é o sinónimo de estabilizar as suas patologias, de reduzir internamentos, de não haver agravamentos das doenças.

Neste momento, estamos em plena fase de desenvolvimento dos value-added medicines. Temos também 3 produtos em investigação nas áreas da dor neuropática, terapia celular e dos antibióticos. É uma investigação de base, com investimentos muito elevados e com uma incerteza muito grande, à qual damos andamento de acordo com a nossa capacidade financeira.

 

“O início da Tecnimede foi muito difícil,  não havia capacidade financeira para crescermos rápido, e nós queríamos ir rápido. Tivemos, muitas vezes, de marcar passo, o que dá uma sensação de incapacidade.”

 

Nesse início, qual era o papel de cada um na empresa?

Fazíamos de tudo um pouco. Não havia capacidade financeira e não estávamos num patamar que nos permitisse subcontratar ou ter mais tecnologia. Sermos médicos foi importante para a Tecnimede, porque sabíamos o que era necessário e o que poderia vir a ser no futuro. Esta empresa deu sempre prioridade à ciência, às bases de dados e nunca tivemos falta de conhecimento e informação daquilo que se faz e do que se pretende fazer no futuro, a médio e a longo prazo. Esta empresa tem essa característica. É uma empresa familiar, que continua com a família como acionistas. Sempre reinvestimos, para criar mais valor.

 

Tinham ambos formação em medicina, traziam experiência do marketing e do mercado regulatório. Mas, calculamos que não tinham formação em Gestão. Quais os principais desafios que têm enfrentado e, sobretudo, os que enfrentaram no início?

Fomos ao mercado buscar técnicos dessa área, e fizemos ambos pós-graduações na área da gestão. O início da Tecnimede foi muito difícil,  não havia capacidade financeira para crescermos rápido, e nós queríamos ir rápido. Tivemos, muitas vezes, de marcar passo, o que dá uma sensação de incapacidade. O que, por outro lado, garantiu que não nos desligássemos da área da medicina, porque precisávamos de dois full-time: o da medicina, como médicos de carreira hospitalar, e o full-time da empresa.

Estávamos sempre focados e sabíamos o que queríamos. Fomos sempre uma dupla motivadora e automotivados, em que nunca misturámos família com empresa. Nada perturbava. Queríamos ambos atingir os objetivos, e havia a sensação de que estávamos a fazer bem. Quando nos comparávamos com a outra indústria  farmacêutica que já estava estabelecida, não tinha nada a ver connosco, nem na forma de estar, nem na forma de evoluir. Como enveredámos muito pela parte científica, isso deu-nos ferramentas para andarmos mais depressa e conseguirmos iniciar a internacionalização. A entrada de Portugal na Comunidade Económica Europeia, se para muitos foi negativa, para nós serviu de trampolim. Isso permitiu-nos alargar o campus de I&D, estruturar novamente para podermos responder às novas exigências europeias e assim podermos progredir. Fomos rápidos na implementação, ganhámos muito tempo em relação a outras indústrias.

 

“A entrada de Portugal na Comunidade Económica Europeia, se para muitos foi negativa, para nós serviu de trampolim. Fomos rápidos na implementação, ganhámos muito tempo em relação a outras indústrias.”

 

Desde a start-up até ao primeiro centro de investigação, esse crescimento rápido demorou quanto tempo?

Menos de 10 anos.

 

Quando acontece esse crescimento, continuavam ambos a ser médicos do Serviço Nacional de Saúde? Quando é que se desligaram?

Nunca desligámos, e saímos ambos do Serviço Nacional de Saúde reformados, com o número de  anos de serviço obrigatórios pela legislação portuguesa.

 

Neste percurso de quase 50 anos, quais foram as principais mudanças no mercado que impactaram a empresa? Já referiu que a entrada na Comunidade Económica Europeia veio ajudar.

Ajudou, no sentido de termos produtos que pudessem ‘saltar’ para outros mercados, que não só Portugal, quer países europeus, quer fora da Europa. Isso foi muito importante para criarmos alguma dimensão.

Em Portugal os produtos chamados cópias passaram a ser designados medicamentos genéricos, assim como a entrada no mercado português de empresas multinacionais comercializadoras de medicamentos genéricos, nomeadamente alemãs. O mercado alemão estava desenvolvido desde os anos 70, e com regulamentação  própria, nomeadamente de prescrição, de dispensa, quando em Portugal ainda estávamos a dar os primeiros passos. O nosso país sempre teve e tem muita instabilidade legislativa, o que para esta indústria, que não é de resultados imediatos – podemos demorar 5, 8, 12, e até mais anos, desde que começamos a investigar um produto, até chegarmos ao mercado – obriga-nos a estar em constantes adaptações, o que, por vezes, leva a enormes ineficiências. Em 2010, devido à dificuldade de financiamento do Serviço Nacional de Saúde, foi aplicada uma medida administrativa de corte de 30% nos preços dos medicamentos genéricos. Aconteceu de um dia para o outro e a meio do ano  e nunca mais houve  recuperação. De 2010 a 2021 o preço do medicamento genérico reduziu 67%.

 

Como é que a empresa gere esse desafio?

Conseguimos superar porque a empresa reestruturou-se, temos qualidade, somos competitivos, incentivámos a inovação criando muito mais valor nas tecnologias e na investigação e desenvolvimento.

 

“O Grupo Tecnimede não é uma empresa de genéricos, é muito mais do que medicamentos genéricos, somos transversais no mercado do medicamento (inovação, MG’s, OTC’s) e estamos em vários continentes.”

 

Falou novamente na questão da internacionalização e da exportação. Exportam sobretudo genéricos?

Exportamos produtos genéricos e não genéricos. Começámos por exportar medicamentos genéricos quando criámos as filiais. A primeira filial foi em Marrocos, nos anos 90. Porquê Marrocos? Foi um país difícil, onde não havia o Estado Previdência, como nós já tínhamos em Portugal. Não havia comparticipação do Estado nos medicamentos, tal como também acontecia em Portugal nos anos 50. Atualmente o cidadão marroquino, já tem Segurança Social.

Em Espanha e Itália também começámos com os medicamentos genéricos. No Brasil com medicamentos genéricos e não genéricos. Na Colômbia iniciámos com a introdução de medicamentos genéricos, produtos com valor acrescentado, e produtos inovadores. Começámos por desenvolver aquilo que sabíamos fazer melhor com qualidade e onde éramos competitivos, e isso foi o instrumento principal para podermos dar outro tipo de resposta aos diferentes desafios.

 

Possuem quantas fábricas?

Temos uma fábrica em Portugal, outra em Marrocos, e estamos agora a negociar outra na América Latina  e exportamos para mais de 100 países.

 

O Grupo tem várias empresas. Significa que as foram criando, ou também têm comprado outras empresas?

Não, o desenvolvimento tem sido sempre orgânico. Não tínhamos capacidade financeira para investir na investigação e para “ir às compras”. Começámos todas as empresas  do zero, em todos os países. Fizemos o nosso caminho, “o caminho das pedras”. As empresas do Grupo foram nascendo de acordo com a necessidade. Primeiro, e em Portugal, foi a Tecnimede, seguiu-se a Pentafarma e a Farmoz (hoje Tecnigen para a comercialização dos medicamentos genéricos). E, temos ainda, uma área de consumer healthcare. Por isso, como costumo dizer, o Grupo Tecnimede não é uma empresa de genéricos, é muito mais do que medicamentos genéricos, somos transversais no mercado do medicamento (inovação, MG’s, OTC’s) e estamos em vários continentes.

 

“Quando vamos para novos mercados temos de nos adaptar à cultura. Temos de mitigar as diferenças, acomodá-las e aprender a trabalhar com elas.”

 

 Como é que escolheram esses mercados, seguiram a mesma lógica de Marrocos?

Não. Países como Itália e Espanha, em termos de mercado, são muito mais desenvolvidos do que Portugal. Estudámos as características de mercado destes países assim como as necessidades que ainda não estavam preenchidas. No caso do Brasil é outro tipo de mercado. Continuamos a trabalhar no desenvolvimento e na investigação de produtos só para o mercado brasileiro. Costumo dizer que não se internacionaliza quem quer, só se internacionaliza quem pode. O sonho da investigação tornou possível fazer a Tecnimede e o Grupo Tecnimede. O fascínio pelo conhecimento foi o ponto de partida, a que se seguiu a transformação e o desenvolvimento das áreas comerciais em Portugal e fora de Portugal.

 

Que aprendizagens têm trazido da experiência internacional?

Quando vamos para novos mercados temos de nos adaptar à cultura. Temos de mitigar as diferenças, acomodá-las e aprender a trabalhar com elas. Marrocos, como já disse, foi para mim um déjà-vu.  Portugal tinha sido muito semelhante há 50 anos. De certa maneira fomos nós a levar mais para lá, do que a trazer. O difícil foi adaptar-nos, ou melhor mantermos o equilíbrio das duas culturas. Os outros países onde estamos são muito mais desenvolvidos do que nós, pelo que  temos de ir ‘bebend’, e sempre que se justifique incorporamos no Grupo em  Portugal. Há uma flexibilidade e um open mind muito maiores. Ter o Grupo Tecnimede nesses países, com escritórios abertos, fábricas com colaboradores locais, podemos fazer este caminhar muito inclusivo, até conseguimos atingir uma posição que já nos permite dizer, “somos marroquinos, somos espanhóis ou somos italianos.” É um caminho muito difícil, mas tem sido possível fazê-lo, caminhando.

Se comprar uma empresa noutra geografia, não tem pessoas daqui que possa transportar para o exterior?

Teremos de as ter, caso contrário, a compra terá de ser suspensa. Precisamos de ter pessoas, com as competências necessárias e que estejam disponíveis para residirem nesses países. Na Tecnimede, neste momento, já não estamos limitados nem dependentes do procurement de recursos humanos em Portugal, procuramos também no mercado internacional, inclusivé para trabalhar em Portugal.

 

“Portugal tem um problema muito grave: dificuldade em criar riqueza. E enquanto não a criarmos, não há investimento adequeado na inovação, na educação, na saúde, na área social.”

 

Já recrutam em qualquer lado, atualmente. É mais fácil trazer pessoas para dentro do que levar pessoas para fora?

Portugueses, sim. Apesar de sermos um país pobre a nível europeu, e haver outros tão pobres como nós, essas pessoas deslocam-se para uma melhor qualidade de vida aqui, tal como os portugueses se deslocam para outros países. Acho que estes movimentos, são irreversíveis. O queixume não tem qualquer cabimento. Os pais já educam os filhos para serem internacionais e poderem ir para onde se sentirem melhor. Por outro lado, temos as universidades, que com a entrada na Europa, se abriram para o Erasmus. Tanto os pais como a universidade têm mostrado à juventude que o seu lugar é no mundo. Por isso, não me admiro nada com o facto das pessoas saírem do país. Temos é de fazer o movimento inverso, e sermos atrativos.

 

Os salários pagos pelas empresas portuguesas podem não conseguir atrair profissionais de fora.

Temos de pagar a outros níveis, se temos profissionais espanhóis, temos de pagar ao nível espanhol. Mas Portugal tem um problema muito grave: dificuldade em criar riqueza. E enquanto não a criarmos, não há investimento adequeado na inovação, na educação, na saúde, na área social. Para sermos sustentáveis, a discussão em termos da despesa tem de ser feita ao mesmo nível da discussão em termos da criação de riqueza. Portugal tem todas as possibilidades de criar riqueza, mas ainda não encontrou o caminho.

 

“Atualmente, os jovens têm uma outra forma de estar e apesar de serem responsáveis, são menos ‘agarrados’ às coisas, e mais saltitantes. Mas, temos de saber lidar com estes perfis, porque são o futuro.”

 

Fala-se muito da atração e retenção de talento. Têm tido esse problema?

Temos esse problema, que é comum a toda a indústria. Depois da pandemia, e com o trabalho remoto, perdeu-se a disciplina de estar na empresa para aprender. Portugal está pouco industrializado, tal como a Europa se desindustrializou nos últimos 30 anos, e por isso, há muita dificuldade em termos pessoas com competências nesta área de trabalho.  No Grupo Tecnimede desde há 15 anos que, em colaboração com a Academia, temos um programa de procurement, formação e retenção de talentos. Atualmente, os jovens têm uma outra forma de estar e apesar de serem responsáveis, são menos ‘agarrados’ às coisas, e mais saltitantes. Mas, temos de saber lidar com estes perfis, porque são o futuro.

 

Percebemos que está muito preparada para esta realidade.

Temos sempre de olhar para a frente. Para trás, fica a experiência do que fizemos bem, do que fizemos mal, e tirar daí as lições. Caímos muitas vezes, não fazemos tudo bem, e não estamos sempre preparados, mas tenho um lema que me deixa dormir muito bem à noite, que está no refrão de uma canção da Maria Bethânia: “Quem conhece a queda e não desanima/ Levanta-se, sacode a poeira/ E dá a volta por cima.”

 

Ao longo destes anos, quando olha para trás, em retrospetiva, qual tem sido o seu grande contributo para o Grupo?

O meu marido era uma pessoa muito inteligente, com um  conhecimento geral e científico fora do comum, e muito empreendedor. Fazíamos uma dupla muito pragmática, realista  e focados nos projetos. Fomos uma dupla excelente para o sucesso do Grupo Tecnimede. O meu papel, além de incentivadora, foi de estabilizadora da estratégia aprovada e executora do programa de acordo com o planeado.

 

“Neste momento, vamos iniciar os ensaios clínicos de uma vacina de células dendríticas para o cancro, em parceria com a Universidade de Coimbra. Esperamos que dentro de algum tempo ela chegue às pessoas.”

 

E qual é hoje a sua missão?

Deixei de ser executiva há dois anos, portanto a minha missão é contribuir para a manutenção da cultura e continuar a fomentar o desenvolvimento do Grupo Tecnimede.Temos a estratégia aprovada até 2030, quero muito que se cumpram os objetivos traçados. Na investigação e desenvolvimento é também dar continuidade ao programa que temos aprovado. Neste momento, vamos iniciar os ensaios clínicos de uma vacina de células dendríticas para o cancro, em parceria com a Universidade de Coimbra. Esperamos que dentro de algum tempo ela chegue às pessoas.

 

Continua a vir diariamente à empresa?

Não, venho duas vezes por semana, de rotina, e virei as vezes que forem  necessárias. Tenho outras atividades, mantenho-me na presidência da Apogen, sou membro da direção da Cruz Vermelha Portuguesa, vice-presidente do Colab4Ageing e faço parte do Conselho Geral da CIP.

 

Continua muito atenta ao mercado e a trazer inputs para dentro da empresa.

É verdade. Como vice-presidente da instituição Colab4Ageing, em Coimbra, pesquisamos instrumentos para a maior longevidade, mas com qualidade de vida. Não posso dizer que Portugal está pior do que quando eu cresci. Está muito melhor, sobretudo em termos sanitários, onde estamos muito bem. Neste momento, temos uma sobrevida nivelada com os melhores países europeus. A sobrevida das mulheres é de 84-85 anos e dentro de uma década, poderemos chegar aos 100 anos. E nesse aspeto, a indústria farmacêutica, e a Tecnimede, estão a criar produtos que controlem as doenças, as doenças crónicas (que todos vamos ter), e que nos permitam viver mais e com melhor qualidade.

 

Como é que foi trabalhar com o seu marido na empresa?

Nunca misturámos a nossa vida familiar com a parte profissional. Nunca discuti em casa nenhum assunto da empresa. Quando era necessário reuníamos na empresa. Nunca preparei nenhuma reunião com o meu marido, no sentido de termos uma posição em comum. Cada um tinha as suas próprias opiniões. Divergimos algumas vezes, mas essas divergências eram salutares para o desenvolvimento do GTM e  não as transportávamos para casa.

 

Quando fundou a empresa tinha 30 anos, já tinha filhos ou estaria a tê-los. Como é que foi gerir família e trabalho?

Não fui de certeza a melhor mãe do mundo, em termos de acompanhamento, porque não podia estar em todo lado ao mesmo tempo, mas fiz o que pude. Tenho uma família maravilhosa, quatro filhos homens e seis netos. Três dos filhos trabalham na empresa. Trabalhamos todos muito bem, porque somos capazes de continuar a separar a família da empresa.

 

“Sinto que estou recompensada e a recompensa não é material, é poder dizer que tenho o dever cumprido. É aquela sensação, que também tinha quando fazia medicina, de chegar ao fim do dia e dizer que fiz algo pelas pessoas, fiz fazer, construí.”

 

A sucessão está assegurada?

Está. O meu marido foi o primeiro CEO, depois fui eu durante mais de 20 anos. Somos uma empresa familiar, mas sem gestão familiar. O atual CEO, no cargo há dois anos, não é da família. A família é acionista.

 

Que sonho é que tem para o Grupo? Disse-nos que tem a estratégia traçada até 2030.

Também sonho, mas muito rapidamente ‘desço à terra’. É uma das minhas características, provavelmente pelas vivências que tive. Acho que fiquei adulta por volta dos 15, 16 anos. Sou raiana, das terras de Ribacoa, na Beira Interior, e a zona onde nasci era extremamente desprotegida. E nesses anos 50 e 60 eram poucas as  pessoas da aldeia que tinham alguma capacidade financeira, muitas eram pobres e bastantes eram miseráveis. E vivíamos todos porta com porta. A agricultura era de subsistência, porque é terreno montanhoso. E a pouca tesouraria estava naqueles que eram mais ousados e mais inteligentes, proveniente do pequeno contrabando com Espanha. Fiz a instrução primária e vivi na aldeia até aos 10 anos, e toda esta vivência foi muito marcante. Via os meus colegas que não tinham botas no inverno, no meio da neve, irem descalços para a escola e muitos deles passavam fome. Isto criou nos nossos pais, uma vontade muito grande de nos fazer emigrar. Naquela altura, emigrávamos cá dentro, para as cidades. Como eu era protegida em termos familiares, aos 10 anos não fui enviada para uma cidade para ir trabalhar, o que habitualmente se fazia, mas sim para ir estudar. Fui para um colégio interno de freiras, feminino, para fazer o liceu, que consolidou algo em mim. Introduziu-me, além da instrução, educação, rotinas bem organizadas. Não havia diferença de classes, todas usávamos uniforme igual. A parte comunitária foi muito importante, porque durante os meses em que estávamos fechadas no colégio, partilhávamos tudo. Isto consolidou uma metodologia de vida e uma estrutura, que eu já trazia de família. Aquela frase que ouvia em casa, “olha o que está à tua volta”, soava-me todos os dias.  Com 15 anos, vim sozinha para Lisboa para acabar o liceu e fazer a faculdade. Isto deu-me uma independência muito grande, até em termos pessoais, A medicina já fazia parte dos meus sonhos/objectivos.

Em termos do Grupo Tecnimede, desde os anos 80 que temos como objectivo dois eixos importantes: investigação e desenvolvimento, e internacionalização, por isso, continuamos permanentemente a alargar e a criar os instrumentos que possam suportar estes dois grandes objectivos. Tudo o que conseguimos não fui eu sozinha que fiz e construí. Temos tido muitos e bons colaboradores de camisola vestida que nos acompanham desde a faculdade, tendo feito no Grupo Tecnimede todo o seu percurso. Por isso, não é o trabalho de uma pessoa só, é de todos, com pessoas boas ao leme, que vão marcando o ritmo. Sinto que estou recompensada e a recompensa não é material, é poder dizer que tenho o dever cumprido. É aquela sensação, que também tinha quando fazia medicina, de chegar ao fim do dia e dizer que fiz algo pelas pessoas, fiz fazer, construí.

 

“Enquanto as mulheres forem as responsáveis por engravidar, parir e serem mães, não terão as mesmas oportunidades de progressão nas carreiras.”

 

Qual a representatividade das mulheres na empresa e em funções de liderança?

Temos mais mulheres que homens a trabalhar no Grupo Tecnimede e a ocuparem funções de liderança. Nunca tivemos o problema de que tanto se fala, de que as mulheres são mal pagas em relação aos homens. Se têm o mesmo cargo e a mesma capacidade de desenvolver, têm valores salariais iguais. Não é por ser mulher que deixa de ter um lugar de topo, nem é por ser mulher que tem um valor salarial inferior a um homem que tem as mesmas competências e desempenha as mesmas funções. Desde sempre que a empresa tem uma igualdade de género. E quem trabalha melhor tem uma maior compensação. Talvez pela minha forma de estar na vida, nunca senti nem passei por qualquer problema de diferenciação por ser mulher, quer na vida profissional quer pessoal. Também o meu marido, tal como eu, era uma pessoa que defendia a igualdade de acesso, a igualdade de oportunidades, fossem homens ou mulheres, e por isso na empresa nunca houve diferenças.

É meu ponto de vista que as mulheres ainda não estão a chegar ao topo das organizações, na mesma proporção que os homens, porque ainda são as responsáveis pela natalidade. O lugar de topo é dado a quem estiver em permanência, e não a nós, mulheres, que vamos estar ausentes. E a questão não é só a gravidez, estende-se depois do nascimento dos filhos.
Enquanto as mulheres forem as responsáveis por engravidar, parir e serem mães, não terão as mesmas oportunidades de progressão nas carreiras. Quando for possível ter um útero artificial ‘externalizado’, em que acompanhamos todo o desenvolvimento da criança, então sim, as mulheres atingirão os topos todos.

 

 

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