Para Sandra Costa, o interesse pela tecnologia começou ainda na adolescência e, curiosamente, por causa do futebol, quando quis aprender a fazer websites para divulgar a modalidade e os resultados da sua equipa — foi atleta federada de futebol 11 até há 2 anos. Quando chegou a altura de escolher o curso universitário, enveredou por Engenharia Eletrónica Industrial e Computadores, na Universidade do Minho, no qual fez o mestrado integrado, doutorando-se depois em Robótica.
Entendeu sempre um caminho mais “humano” para estas áreas que, para ela, devem estar ao serviço da melhoria da qualidade de vida das pessoas. Por isso, entre 2011 e 2015 centrou o seu trabalho de doutoramento no uso de robôs para promover a aquisição de competências sociais em crianças autistas, enquanto ferramentas terapêuticas, projeto que desenvolveu no Centro Algoritmi, unidade de investigação da Universidade do Minho, onde trabalhou paralelamente como investigadora até janeiro de 2015.
Nesse mesmo ano deixou a investigação para integrar a equipa de Desenvolvimento de Software da Bosch Car Multimédia Portugal, em Braga, a sua cidade natal. Entrou como engenheira de software na divisão de Controlo de Sistemas de Chassis, mas lidera, desde março de 2018, duas equipas internacionais de desenvolvimento de sensores para condução autónoma dentro desta unidade de negócio. E muito recentemente atribuíram-lhe a supervisão de uma terceira equipa. Em 2018, recebeu o prémio de melhor developer atribuído pela plataforma Portuguese Women in Tech.
Mas as suas áreas de interesse não se esgotam na engenharia eletrónica e na robótica. Em 2010 co-fundou, juntamente com outras 3 mulheres, a secção portuguesa do grupo Women in Engineering do IEEE — Institute of Eletrical and Eletronics Engineers, a maior organização internacional deste setor. Há 7 anos criou o Portal Futebol Feminino Portugal, o maior e mais completo do género no país, a que ainda hoje se dedica sempre o tempo lhe permite, e faz parte das Guias de Portugal, organização a que pertence desde criança e onde é dirigente local de outras jovens guias. Um percurso bem diversificado para uma jovem engenheira de 32 anos que quer inspirar mais raparigas a seguirem carreiras na área da engenharia e tecnologia.
Em que consiste o projeto que desenvolve agora para a Bosch Car, de sensores para condução autónoma?
O nosso produto, o vehicle motion position sensor, dá-nos a posição exata do veículo com uma precisão muito alta, na ordem dos centímetros. Qualquer GPS nos dá, hoje em dia, a posição de um veículo, mas com uma margem de erro de metros, que não é suficiente para os algoritmos de condução autónoma. Lidero duas equipas (passarão a ser três a partir deste ano) que desenvolvem funcionalidades de software relacionadas com a comunicação do sensor com outros dispositivos eletrónicos no carro. Estão ligados com segurança em duas vertentes (porque, em inglês, temos safety e security). Na parte safety, para garantirmos que a parte eletrónica e de software, o “coração” do nosso sensor, nunca vai falhar. A vertente security diz respeito a que ninguém possa fazer um hacking ao produto, usando e modificando os dados que vão alimentar os algoritmos de condução autónomas, no futuro. Estamos também a produzir outros dispositivos que poderão ajudar os algoritmos de condução autónoma a tomar a decisão mais correta, tendo em conta as condições envolventes.
A terceira equipa que lidero tem a ver com a base do software. Temos cerca de 200 pessoas em três países (Portugal, Índia e Alemanha) e esta equipa garante que que cada software desenvolvido possa ser continuamente entregue, testado e distribuído sem conflitos. Isto impede que uma equipa esteja parada porque outra cometeu um erro, por exemplo.
O que vai permitir este sistema e quando estará disponível?
A start of prodution está mapeada para o próximo ano. Eu trabalho num produto dentro de um sistema, mas milhares de pessoas em todo o mundo estão a trabalhar neste sistema de condução autónoma. Há muitos testes que têm ainda se ser feitos para garantir toda a qualidade e segurança do condutor. Em termos daquilo que vai permitir, a Bosch acredita que, no futuro próximo, o carro vai ser visto como o nosso terceiro espaço de vida, depois da casa ou e do local de trabalho; que ele pode ser aproveitado para pôr a leitura em dia, ver as notícias, relaxar, potenciar a qualidade de vida das pessoas, especialmente nos meios urbanos, em que as pessoas passam horas em filas.
Uma das grandes ideias que também está a ser divulgada, especialmente pela Daimler, com a qual a Bosch está a trabalhar de maneira muito próxima, é a criação do robôtaxi. Num futuro próximo possivelmente não vamos ser donos de carros; vamos usar o automóvel como usamos um serviço ou uma app no telemóvel: basicamente chamamos um carro conduzido autonomamente, que nos leva ao nosso destino.
“Acredito que os algoritmos de condução autónoma vão ajudar a reduzir os acidentes na estrada, o número de feridos e de mortos, principalmente porque os carros vão mesmo andar mais devagar e a lei vai ter de ser cumprida.”
Tem-se falado muito da condução autónoma, muitas vezes com algum ceticismo. A que se deve esta desconfiança, em seu entender?
Pelas conversas a que tenho assistido e pelos fóruns em que tenho participado, penso que a controvérsia assenta essencialmente em dois pontos: o primeiro tem a ver com o facto de, mais tarde ou mais cedo, acontecerem acidentes. Há também a questão ética — se o carro identificar dois obstáculos humanos incontornáveis, quem vai atingir? Há a questão de saber de quem é a responsabilidade, em caso de acidente. No caso de um carro autónomo, ela é do fabricante ou da pessoa que viaja nele e que deveria estar mais atenta? A lei ainda não está preparada para estas questões e falta um grande investimento nesse sentido para que esta tecnologia se torne viável no nosso dia a dia.
Depois, porque sempre que se fala em automação há um impacto no emprego. Taxistas, camionistas ou motoristas de autocarro poderão ser profissões em que exista algum impacto, com a implementação da condução autónoma. O mundo tem-se adaptado muito bem aos automatismos que tornam o trabalho muito mais rápido e que substituem os humanos. Alguns trabalhos desapareceram, mas outros foram criados. Acredito que os algoritmos de condução autónoma vão ajudar a reduzir os acidentes na estrada, o número de feridos e de mortos, principalmente porque os carros vão mesmo andar mais devagar e a lei vai ter de ser cumprida.
Como chegou à Bosch?
A Bosch é uma grande empresa em Braga e quase toda a gente conhece alguém que lá trabalha. Tive a felicidade de eles estarem a criar o departamento de desenvolvimento de software, quando entrei. Escolhi aquela proposta, entre duas que tinha, também por causa das boas recomendações de pessoas que lá trabalhavam ou tinham trabalhado. Gosto muito de lá trabalhar, até porque é uma empresa que luta muito pela diversidade de género e isso, a juntar a outros valores defendidos e aplicados pela empresa, agrada-me imenso.
E como nasceu o seu interesse pela engenharia eletrónica e robótica?
Sempre fui muito curiosa. O interesse começou durante o ensino secundário, quando eu quis aprender a fazer websites. Nessa altura, juntei a uma equipa de futebol e achava muito injusto que não se falasse de futebol feminino em Portugal, por isso decidi criar um site para a minha equipa. Juntei-me a um clube na escola secundária para aprender algo a que não tinha acesso em casa. Na escola não era aluna de 19 e 20 valores, mas tinha notas bastante razoáveis e nunca tive grandes dificuldades a ciências e matemática.
No final do ensino secundário, por conselho do meu irmão em termos de perspetivas de emprego e sem grandes planos do que fazer no futuro, acabei por me candidatar e ficar no curso de engenharia eletrónica na Universidade do Minho. A cada disciplina que ia tendo e a cada projeto que ia fazendo o meu interesse começou a crescer. O meu projeto de final de mestrado, que tinha a ver com robótica e crianças com autismo, também contribuiu. Desde que frequentava o curso dizia que queria trabalhar em engenharia eletrónica ao serviço do ser humano e não apenas em ambiente industrial, por isso segui essa vertente no meu mestrado e doutoramento.
“Conseguimos provar que, através de uma intervenção de 5 ou 6 sessões, as crianças que interagiam com o robot mostravam comportamentos verbais e não verbais muito mais significativos [do que aquelas que interagiam apenas com uma pessoa].”
Em que consistia esse projeto?
O projeto foi-me apresentado pela minha orientadora de mestrado, juntamente com outros, e eu achei esse mais interessante. Na minha sede de mestrado, no primeiro ano, fiz um projeto muito simples de um robot construído com legos, que era o que tínhamos disponível no laboratório. Depois, tivemos algumas associações de Braga como parceiras, onde começámos a ter contacto com crianças e a ver como tudo funcionava na prática, porque era um mundo muito novo para nós. A partir desses estudos, conseguimos ganhar financiamento europeu para desenvolvermos o nosso robot, o Zeca, que faz expressões faciais e que tem movimento. Escolhemos um robot humanóide para que as crianças autistas pudessem relacionar as expressões faciais com emoções, especialmente pelas dificuldades que têm na interação social e no reconhecimento de emoções. Foi aí mesmo que quisemos apostar a nossa investigação porque não havia nada do género. Já existiam alguns projetos que utilizavam robôs para verificar o impacto em crianças com autismo, mas não investigando a parte da emoção e da sua mímica e, principalmente, da transferência da emoção da criança para outra pessoa. É assim que podemos ver que uma competência foi adquirida, o que era muito importante para nós, porque queríamos perceber o impacto da utilização de um robot na intervenção terapêutica nestas crianças.
E alcançaram resultados muito interessantes…
Sim. Fizemos um estudo comparativo com 3 grupos. Num deles as crianças poderiam interagir com robot e fazer 3 jogos com ele; outro tinha a mesma atividade com uma pessoa. O terceiro grupo era o de controlo, com um pré e um pós teste que analisava a aquisição da competência emocional. O último cenário de jogo, no teste final, era uma história social contada pelo Zeca, no qual era também apresentada uma imagem. Conseguimos provar que, através de uma intervenção de 5 ou 6 sessões, as crianças que interagiam com o robot adquiriram a competência muito mais rapidamente e mostraram comportamentos verbais e não verbais muito mais significativos. O intuito deste projeto nunca foi o de substituir pessoas, mas sim construir uma interação em tríade, em que o robot fosse um elemento mediador na interação social entre a criança e o outro ser humano.
As crianças com autismo têm uma preferência por objetos mecânicos e as primeiras pessoas que fizeram estes estudos com robots tentaram perceber se esta atenção se verificava também quando eles eram usados, comprovando que sim. Tive que ler muito sobre autismo, mas também tive a grande oportunidade de fazer um estágio em Inglaterra com as pessoas que começaram estes estudos, Kerstin Dautenhan e Ben Robins, da Universidade de Hertfordshire, que me deu um grande avanço por ter aprendido com os melhores e ter conseguido aplicar isso no meu trabalho.
A presença feminina na tecnologia e em cursos desta área ainda é muito baixa. Como vê esta questão e o que pensa que pode ser feito para reverter esta tendência?
Para mim esta é uma questão importante. Quando entrei no meu curso, na primeira fase, era a única rapariga. Talvez por ter sido sempre um pouco maria-rapaz e ter crescido a jogar futebol com eles, isso não teve muito impacto em mim, mas sei que, para muitas raparigas, o facto de entrarem numa sala com 60 rapazes acarreta sempre alguma pressão e não é simpático. Acredito que isso leve algumas a desviar um pouco o seu interesse dessas áreas porque ouvem dizer que, tipicamente, esses são cursos para rapazes. Muitas vezes, as melhores alunas de ciências optam por cursos de saúde ou pelo ensino, talvez influenciadas pelos pais. Penso que precisamos de começar a despertar-lhes o interesse por este tipo de conhecimento bem mais cedo, ainda no ensino básico, se queremos ter mais mulheres em cursos de informática, mecânica, eletrónica e outros.
“Temos que aumentar a visibilidade feminina na tecnologia, mostrar que há mulheres a fazerem um trabalho excelente e que mais raparigas podem seguir o mesmo percurso. Elas existem, mas muitas vezes não são vistas.”
Acha que ainda há muitos estereótipos de género quanto a profissões?
Penso que sim. As raparigas não se veem numa profissão desse género porque também não veem muitas mulheres nelas. Tento estar sempre presente, quando sou convidada a falar em jornadas de informática ou eletrónica, especialmente no ensino secundário. Essa é uma das minhas lutas. Só mostrando mais exemplos femininos isso se estimula. A plataforma Portuguese Women in Tech criou uma lista de speakers para conferências e palestras de tecnologia, outra iniciativa muito boa para além dos seus prémios, porque uma das coisas que se nota muito nos painéis de oradores é a falta de mulheres. Neste momento, estou a participar na organização de uma conferência para a Bosch e vou tentar sugerir mais oradoras. Temos que aumentar a visibilidade feminina na tecnologia, mostrar que há mulheres a fazerem um trabalho excelente e que mais raparigas podem seguir o mesmo percurso. Elas existem, mas muitas vezes não são vistas.
Lembro-me de ir a uma feira de emprego em janeiro de 2015, antes de entrar na Bosch. Aproximei-me de algumas mesas e alguém me respondeu ‘estamos à procura de engenheiros eletrotécnicos’. Eu disse-lhe que estava a falar com uma, mas percebi que, quando olhou para mim, aquela pessoa não achou que eu o pudesse ser.
O olhar feminino pode trazer algo de diferente ao setor das TIC?
Pode e traz, definitivamente. Lembro-me sempre de um exemplo dado pelo CEO da Cisco numa conferência em San José, a que assisti. Ele tinha uma equipa maioritariamente masculina a trabalhar no desenvolvimento de um carregador de telemóvel sem fios. Estavam a ter muitas dificuldades com o design do produto até que uma mulher teve a ideia vencedora. Ela disse: “quando chego a casa tenho um cesto onde meto as chaves, o telemóvel, tudo…” O facto de ter uma visão diferente para um problema deu-lhe uma solução inovadora para um produto tecnológico. A diversidade pode trazer essa vantagem.
Ainda pratica futebol?
Há 2 anos deixei de praticar por questões de saúde e a intensidade do desporto não estava a ajudar. Estava a prejudicar o trabalho — já chegava cansada por causa dos treinos e aos treinos chegava cansada por causa do trabalho. Fui atleta federada de futebol 11 e joguei na primeira divisão durante vários anos, no Vilaverdense. O futebol sempre fez parte da minha vida desde a escola primária e sempre gostei muito.
Que valores é que o desporto lhe trouxe para a sua vida profissional?
Perseverança, resiliência e espírito de equipa. Nos últimos anos fui capitã de equipa e experimentei um pouco a liderança de um grupo grande de mulheres, o que nem é muito fácil, especialmente quando são de diferentes idades. Mas trouxe-me, principalmente, a vontade e persistência, essenciais quando se tem três treinos por semana e um jogo ao domingo, muitas vezes em Lisboa, com necessidade de voltar no mesmo dia. Tinha que me levantar às seis da manhã para estudar porque tinha treinos à noite. Mas se queria praticar futebol, tinha que dar mais de mim.
“O meu maior desafio profissional foi trabalhar com crianças com autismo. Foi emocionalmente difícil fazer o procedimento experimental. É duro saber que vão ter sempre algum grau de dependência e muitas dificuldades.”
E deu-lhe competências de liderança?
Sinceramente, acho que não tive aí um papel tão preponderante como gostaria. Vejo mais o meu papel de liderança como resultado de ser Guia de Portugal desde os 7 anos — este ano faço 25 anos nas Guias. Comecei a ser dirigente aos 17, na minha companhia local; passado uns anos passei a dirigente na equipa regional, com a responsabilidade da formação de 30 dirigentes locais. Parei por um ano, mas voltei agora ao nível local, porque do que gosto mesmo é de estar com as miúdas — este ano trabalho com raparigas a partir dos 14 — e de usar os métodos de ensino informal para lhes passar alguns valores, capacidades e atitudes. A formação que recebemos na associação é muito forte e utilizo o método das Guias até com os meus colegas na Bosch (quase todos homens), em termos de organização e gestão de conflitos, capacidade de ouvir. Nas Guias, sempre que possível tento fazer também atividades na área das tecnologias — no último trimestre de 2018, fizemos workshops com as Geek Girls. Num deles, elas aprendiam a fazer apps mobile muito simples e adoraram.
Qual foi, até agora, o maior desafio da sua carreira?
O primeiro foi a mudança da vertente académica para a industrial. Quando terminei o doutoramento e comecei à procura de emprego, tinha uma oportunidade na via de investigação, em Lisboa, mas também me surgiu a oportunidade na Bosch, em Braga. Achei que se havia momento para experimentar algo diferente, era aquele. Mas o meu maior desafio profissional foi trabalhar com crianças com autismo. Foi emocionalmente difícil, quando tive que fazer o procedimento experimental — foi a realidade a bater-me na cara, perceber que ela não se reduz ao que vemos à nossa volta. É duro saber que estas crianças vão ter sempre algum grau de dependência e muitas dificuldades.
Que conselho passaria a outras mulheres que consideram de fazer carreira na sua área?
Não desistir, porque há sempre uma forma de resolver o problema. E é isso que tento aplicar sempre no meu trabalho. Se uma abordagem não funciona, tentamos outra até conseguirmos chegar ao nosso objetivo. Há uma frase [de Tony Robbins] que o traduz e de que gosto muito: “stay committed to your decisions but stay flexible in your aproach” — Mantém-te comprometida com as tuas decisões, mas flexível na tua abordagem.