Rosângela Angonese: “O campo da liderança não é o dos super-heróis ou heroínas”

Rosângela Angonese, coautora do livro "O Fim da Liderança Tóxica nas Organizações", explica porque é urgente libertar as empresas da liderança tóxica e revela como os comportamentos enraizados também a afetaram a ela e a Ricardo Oliveira Neves, durante a preparação e a apresentação do livro. Finalmente, deixa uma mensagem às mulheres: quando chegam ao topo não se esqueçam das outras mulheres.

Rosângela Angonese é coautora do livro O Fim da Liderança Tóxica nas Organizações.

Rosângela Angonese é licenciada em Administração de Empresas e mestre em Estratégias das Organizações. Dedicou a maior parte dos seus estudos e formação ao comportamento humano. Fez vários cursos em universidades norte-americanas, como o Babson College e a American University, e também no International Labor Organization, na Itália. Tem uma pós-graduação em Neurociência, pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, onde fez investigação sobre liderança feminina sob a ótica da neurociência. Rosângela Angonese trabalhou no setor financeiro, industrial e de serviços e desenvolveu e implantou o Polo de Liderança Sebrae em todo Brasil. Rosângela Angonese escreve sobre liderança para diversos meios de comunicação e é autora, juntamente com Ricardo Oliveira Neves, do livro O Fim da Liderança Tóxica nas Organizações.

Nesta entrevista, Rosângela Angonese explica porque é urgente libertar as empresas da liderança tóxica e revela como os comportamentos enraizados também a afetaram a ela e a Ricardo Oliveira Neves, durante a preparação e a apresentação do livro. Finalmente, Rosângela Angonese deixa uma mensagem às mulheres: quando chegam ao topo não se esqueçam das mulheres que deixaram para trás.

Rosângela Angonese vai fazer uma participação especial via Zoom na 9.ª Grande Conferência Liderança Feminina, que a Executiva vai realizar a 23 de março 2023 no Porto, para falar sobre liderança tóxica.

 

Em que consiste a liderança tóxica e porque chegou até aos nossos dias?

No contexto atual, tornou-se ainda mais evidente o efeito nocivo protagonizado por líderes que pautam suas ações pelos preceitos ultrapassados de liderança, configurado pelo comando e controle de uns sobre a maioria.  Ele tanto afeta a saúde psíquica dos liderados, quanto os resultados, além de afastar a organização do caminho das almejadas inovações, da inclusão das múltiplas gerações, da retenção dos talentos e da prática dos princípios ESG.

A liderança tóxica é fruto, também, do modelo de liderança hipermasculino nutrido pelo sistema patriarcal, que segue sendo tóxico e envenenando de forma dramática o desenvolvimento saudável da sociedade e das pessoas individualmente, condicionando o modelo de comportamento daquilo que chamamos liderança.

A liderança tóxica é aquela que traz para si própria os resultados da equipe, é a que não reconhece e valoriza os seus liderados, é a que cria um ambiente de desconfiança, insegurança, ameaça e intimidações, é a que exige o cumprimento de metas inalcançáveis, é a que pauta sua função pelo desprezo do diferente, sobretudo as diferenças de ideias e pontos de vista, é a que não percebe a si própria e os efeitos do seu comportamento sobre os demais, é a que não tem disponibilidade para escutar, conhecer e compreender o que pensa cada um dos seus liderados. É a que ainda usa o poder que o cargo lhe confere para fazer suas exigências, punir e amedrontar.

Você deve estar perguntando-se se as mulheres na liderança não estariam praticando esse mesmo modelo e, portanto, seriam igualmente responsáveis por tais consequências. Sim, algumas mulheres acabam por mimetizar esse modelo, porém, a meu ver, com mais autoconsciência do impacto gerado.

Até pouco tempo atrás, num mundo mais lento e estável, os efeitos da liderança tóxica, apesar de existentes, não eram tão aparentes e, tampouco, debatidos publicamente nos meios de comunicação como ocorre atualmente. O ambiente era de maior submissão a um modelo de autoridade em que o poder e o conhecimento estavam restritos a quem estivesse no topo. Hoje, com o dinamismo proveniente do avanço da tecnologia da informação e da globalização, há necessidade de conhecimentos múltiplos e diversos nas organizações, o que exige um modelo de poder mais horizontalizado, onde não há mais lugar para super-homens ou supermulheres e, sim, para super equipes compostas de pessoas com pensamentos diferentes que se complementam, criam colaborativamente e são reconhecidas e valorizadas.

Com as evidências sobre o aumento de doenças psíquicas provenientes do ambiente de trabalho, vemos surgir alguns sinais de avanço, ainda que sutis, em direção às mudanças culturais e de mentalidade de homens e mulheres para uma sociedade em que a hipermasculidade dê lugar, também, à expressão e aceitação, em especial no mundo corporativo, daquilo que o expoente psicólogo Carl Jung denomina de arquétipos do feminino, ou seja, qualidades psíquicas capazes de fazer essa transformação, tais como: colaboração, flexibilidade, empatia, abertura a novas formas e conceitos, entre outras.

 

“A causa principal do burnout é proveniente de ambientes tóxicos”

 

De que forma a liderança tóxica afeta a liderança feminina?

Segundo o Relatório “Local de Trabalho da McKinsey”, de 2021, as mulheres tiveram maiores níveis de burnout do que os homens, — 42%  disseram que frequentemente ou quase sempre estiveram em situações de estresse extremo, em comparação com 35% dos homens. Sabemos que a causa principal do esgotamento psíquico é proveniente de ambientes tóxicos, em que o principal vetor é o modelo de liderança instalado, ou seja, onde imperam a falta de apoio, respeito e flexibilidade, a insegurança e a exigência extrema.

Como a maioria dos cargos seniores de gestão ainda é ocupada por homens, 68% contra somente 32% que são ocupados por mulheres, isso impacta diretamente na condição das mulheres no ambiente de trabalho, que frequentemente sofrem assédio moral por parte de seus líderes homens. É mais difícil para os homens compreenderem as necessidades das mulheres, sua forma de pensar e se comunicar, além do que, elas trazem com mais frequência as preocupações familiares com os filhos para o ambiente de trabalho. Na minha opinião, as mulheres são mais impactadas emocionalmente do que os homens pelas figuras de autoridade, como o líder.

 

Que modelo de liderança devem as organizações adotar para enfrentar o futuro?

O grito de alerta não é somente por mais mulheres nos cargos de liderança, ele soa, sobretudo, para buscar um modelo de liderança que traga consigo atitudes direcionadas para mais cooperação e colaboração, mais inclusão, mais escuta, mais empatia, mais flexibilidade em opiniões e comportamentos, que tenha mais consideração e cuidado pelas pessoas e, ao mesmo tempo, alcance resultados que atendam a todos os stakeholders (sócios, empregados, sociedade etc.).  Essas são atitudes culturalmente atribuídas às mulheres, afinal as mulheres aprendem desde cedo a cuidar, seja da boneca, do irmão mais novo, e, mais tarde, dos filhos.  Isso não quer dizer que sejam atitudes exclusivas das mulheres, mas sim, que fazem parte da alma feminina, que tanto habita em homens quanto em mulheres.

O que propomos aqui, é uma liderança que integre os valores femininos e masculinos. É importante observar que quando a líder mulher conduz suas ações exclusivamente e enfaticamente por valores e atitudes próprias do feminino, ela pode cair no excesso disso, o que pode resultar no perigo de agir rumo ao descrédito. O excesso é tornar-se hesitante nas decisões difíceis, querer agradar a todos, não ser capaz de dizer não, e se sentir paralisada por emoções como o medo, por exemplo.

Para a mulher atuar com maestria e plenitude, é preciso absorver, na medida certa, aquelas atitudes normalmente atribuídas ao homem: a clareza e objetividade, a capacidade de decisão e assumir os riscos decorrentes com coragem, e saber competir quando necessário.  Porém, sem ir para o extremo disso, o que também se torna perigoso.  O extremo oposto é a rigidez, a agressividade, e não se importar com os outros. É isso que chamamos de “o jeitão masculino de liderar”, que pode se tornar tóxico no ambiente de trabalho, fazendo as pessoas adoecerem, irem embora, e depreciarem a organização.

Para o homem, o oposto é verdadeiro, se mantiver a sua atuação rastreada por atitudes próprias do mundo masculino: a objetividade, a decisão, o foco no resultado, o risco será cair no “porão” dessas forças e tornar-se agressivo, rígido, impulsivo e não considerar as pessoas.

Entendemos que nesse “porão da liderança masculina” encontra-se uma das pistas da liderança tóxica, que maltrata as pessoas, que turva a visão das oportunidades, que impregna a organização de desconfianças internas e externas.

Nossa compreensão é de que a boa liderança deve se afastar disso das extremidades, buscando se aproximar da direção oposta com a integração de valores comumente compreendidos como do mundo feminino.

 

“A liderança é feita por pessoas que possuem fragilidades, erram e acertam”

 

Que desafios isso implica para os líderes?

Entendo que o principal desafio da boa liderança começa com uma jornada de autoconhecimento. Perceber os seus pensamentos, atitudes e comportamentos e o impacto que eles causam a si própria e nos outros. Quando entendemos o que causamos, iniciamos o processo de mudança, que não é fácil, ele exige muito foco, atenção  e autodisciplina rumo ao propósito definido.

O segundo ponto é ter a noção de que o campo da liderança não é o dos super-heróis ou heroínas, portanto, a liderança é feita por pessoas que possuem fragilidades, erram e acertam. Quando nos despimos desse rótulo, tornamos o processo mais leve, natural e humano.

O terceiro desafio é acreditar fortemente que a liderança não precisa controlar e comandar, e sim apoiar. Esse é o principal papel de uma pessoa que ocupa uma função de liderança.

 

Estão as mulheres mais bem preparadas para esses novos requisitos?

As mulheres em cargos de liderança, segundo a McKinsey,  são duas vezes mais eficazes na adoção de medidas para apoiar as equipes e se preocupam mais com o bem-estar das pessoas do que os gestores homens. Isso revela o quanto a liderança feminina está mais aderente aos requisitos e prioridades atuais das organizações modernas no que tange à liderança de pessoas. Além disso, elas são mais resilientes, conseguem aprender e se adaptar rápido às novas necessidades e situações.

As mulheres são, também, segundo um estudo da Universidade de Harvard, mais competentes. Elas foram mais bem avaliadas em 16 das 18 competências da liderança.  Sendo a iniciativa, resiliência, busca por autodesenvolvimento, foco em resultados, ousadia, alta integridade e honestidade seus pontos fortes.

O curioso é que ter mais mulheres nas funções chave nas organizações, nos altos níveis da liderança, não é bom só para as mulheres, é bom também para as empresas. Há pesquisas que mostram que quanto mais mulheres em cargos de liderança, melhores são os resultados. Mais lucro, mais faturamento.

 

O que a levou a escrever este livro com Ricardo Oliveira Neves?

No segundo ano da pandemia COVID-19, encontrei Ricardo Neves pela primeira vez online. Eu no Brasil, e ele na Alemanha, em Berlim, em um evento corporativo, mais precisamente um workshop de desenvolvimento de lideranças. Nesse evento, debatíamos sobre a necessidade de repensar o modelo de liderança nas organizações, trazendo à tona a importância da busca de significado e propósito compartilhado como instrumento de engajamento e colaboração nas equipes de trabalho.

Logo, percebemos haver pontos de convergência no modo como compreendíamos a liderança para os novos tempos. O papo iniciado naquele evento se estendeu ao longo de semanas a fio. Online. Remotamente entre o Brasil e a Alemanha. Como era de esperar em tempos pandêmicos no contexto de nosso Bravo Novo Mundo Digital. E o resultado dessa alongada conversa, e que pelo menos para os autores se tornou uma conversa deliciosa e cheia de insights, foi a construção de sinergia suficiente para produzirmos um livro em conjunto.

Este nosso livro [O Fim da Liderança Tóxica nas Organizações, que Rosângela Angonese escreveu em parceria com Ricardo Oliveira Neves], apesar de ter fundamentos teóricos baseados em descobertas recentes da neurociência e nas ciências sociais, procura se afastar do tom acadêmico, tampouco pretende ser um livro tradicional de negócios. Nós optamos por uma forma bastante casual e procuramos envolver as leitoras e leitores de uma maneira que em certos trechos chega a ser quase confessional.

O livro abrange assuntos que sustentam a necessidade de examinarmos e mudarmos a forma liderar, em todos os níveis da organização, de modo a se descolar do modelo patriarcal tão arraigado na sociedade moderna, e se aproximar de um modelo mais inclusivo, colaborativo, adaptativo, onde o poder se distribua de forma mais equitativa, gerando menos doenças emocionais, maior satisfação no trabalho, maior engajamento, e ambientes mais favoráveis para adequar-se as rápidas mudanças que o mundo requer.

 

“Ao chegar num cargo superior de liderança, liberte-se do fenómeno da Abelha Rainha”

 

Em que medida as vossas visões da liderança são diferentes pelo facto de a Rosângela Angonese viver no Brasil e o Ricardo viver na Alemanha?

Apesar de vivermos atualmente em países de continentes diferentes, nossas visões sobre liderança são bastante convergentes. As vivências que trazemos de nossa trajetória executiva, por outro lado, evidenciam a prática masculina e a feminina nas suas dimensões emocionais. Lembro de uma ocasião em que eu discutia com o Ricardo a importância de agirmos com congruência em relação ao que escrevemos no livro, motivados por um episódio ocorrido numa entrevista que demos em conjunto presencialmente, em que Ricardo trouxe à tona o seu lado masculino mais sombrio, fazendo o tal mansplaining. Após cada resposta minha, ele complementava ou explicava com outras palavras o que eu já havia dito. Isso foi um aprendizado para ambos, porque após a entrevista escancaramos esse fato e refletimos juntos sobre o quanto estamos presos ao modelo mental tatuado profundamente na nossa alma, fazendo-nos agir automaticamente, mesmo quando sabemos o que é adequado e o que não é.  Outra situação ocorreu durante o processo de escrita do livro, eu sempre me colocava como aprendiz, como que me justificando se o resultado não fosse bom o suficiente. Isso revelava, também, um comportamento típico de mulheres, que julgam nunca serem tão competentes ou estarem prontas o suficiente.

A partir do livro, seguimos dialogando e trocando percepções e experiências sobre o que encontramos nas nossas diferentes realidades, fazendo comparativos entre os movimentos de mudanças em curso na Europa e o que vemos surgindo aqui do outro lado do Atlântico.

 

Quem é o líder que mais a inspira e porquê?

Eu tenho observado com atenção as mulheres na liderança, em especial, no campo político, porque nesse setor as mulheres ainda têm muito espaço a ser conquistado e, por outro lado, a sociedade precisa urgentemente de mais pensamento feminino na política com a esperança de que elas protagonizem mudanças benéficas para a sociedade, que ainda é tão desigual.

A ex-presidente da Alemanha, Angela Merkel,  Jacinda Ardern,  presidente da Nova Zelandia,  Sanna Marin, da Finlândia, e, também, as poucas  mulheres brasileiras emergentes na política, como a ministra Marina Silva, do Meio mbiente, a ministra Simone Tebet do Planejamento. O meu olhar está focado no comportamento delas e constato que o preparo, a humildade, a afetividade, a ponderação e o senso de propósito e a resiliência são elementos comuns nelas e são essenciais para uma boa liderança, seja de homens ou de mulheres.

 

Que mensagem deixa às mulheres que queiram chegar a funções de liderança?

Acredito que, além de tudo o que já foi dito nas questões anteriores, devo acrescentar um único ponto. Ao chegar num cargo superior de liderança, liberte-se do fenômeno da Abelha Rainha. Esse fenômeno explica que as mulheres ao chegarem no topo, tendem a se afastar do seu grupo original, das outras mulheres que ocupam funções hierárquicas inferiores, buscando mimetizar comportamentos dos pares masculinos objetivando a sua própria sobrevivência, fazendo ao contrário do que as outras mulheres esperam, que é a empatia e a defesa de caminhos mais fáceis para que mais mulheres alcancem posições de liderança.

 

Pode saber mais sobre o livro O Fim da Liderança Tóxica nas Organizações, que Rosângela Angonese escreveu em parceria com Ricardo Oliveira Neves. Neste link também pode ler mais sobre Rosângela Angonese.

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