Raquel Seabra é administradora executiva da Sogrape, responsável pelo marketing, comunicação e sustentabilidade, entre outras áreas do negócio. Chegou à empresa, considerada uma das dez maiores de produção de vinho da Europa, em maio de 2015, como diretora de Controlo e Planeamento Estratégico e tornou-se administradora em janeiro de 2018. Para trás deixava uma carreira bem sucedida na consultora internacional Boston Consulting Group, onde esteve durante 10 anos. Como consultora estratégica, Raquel Seabra acompanhou clientes em Portugal, Espanha, Angola, Brasil, Reino Unido e Estados Unidos, em setores tão distintos como o retalho, bens de consumo, bens industriais, serviços financeiros, seguros, energia e media. Em simultâneo, e a título pessoal, também deu o seu contributo a startups em Portugal e a algumas ONG e pequenos empreendedores na Argentina e na Colômbia.
Licenciada em Gestão e Administração de Empresas pela Católica e com um MBA pelo INSEAD, Raquel Seabra foi distinguida com o Prémio Primus InterPares, em 2005, com o Prémio Dona Antónia Adelaide Ferreira, em 2012, e considerada como um dos 40 líderes portugueses do futuro, pela revista Exame, em 2017. Em 2012 venceu também o prémio principal da ECCH, com um case study sobre a Renova, escrito em coautoria com três professores do INSEAD e que foi o case study mais vendido em todo o mundo nesse ano. É também co-autora do livro Marketing Vencedor de 2009.
Começou a sua carreira na consultoria. Em que medida essa experiência foi importante?
As grandes consultoras ou auditoras são uma grande escola. Somos expostos a contextos organizacionais diferentes, a setores e problemas empresariais diversos. Como o ritmo é muito acelerado, o nosso crescimento também o é. Lembro que quando saí da consultoria para o passo seguinte, aos 33 anos, era, em geral, mais experiente e mais madura que outras pessoas da minha idade. Isso deu-me a vantagem de ter saber lidar com determinados problemas nas empresas, ou estar mais recetiva e atenta a outro tipo de sinais a que depois somos expostos na vida empresarial. E como em consultoria trabalhamos em tantos sectores diferentes temos de aprender muito rapidamente e por isso facilmente nos adaptamos a qualquer outro setor em que tenhamos de trabalhar.
Qual foi o seu percurso entre a consultoria e o cargo que hoje ocupa?
Passei mais de metade da minha vida profissional numa empresa americana o que certamente moldou a forma como abordo o trabalho, os problemas e as soluções. Passei depois para uma empresa portuguesa, e de matriz familiar, que tem outros valores, outra cultura e outra forma de trabalhar. São contextos muito diferentes e é preciso também saber adaptarmo-nos a eles. Na cultura anglo-saxónica, as pessoas são mais diretas, mais objetivas, mais propensas ao risco e tipicamente mais focadas na acção. Nas empresas portuguesas, há uma cultura de maior prudência, mais análise e um maior cuidado com as pessoas. Sinto que o meu papel é trazer um pouco desse pragmatismo e desse foco na solução.
Nas grandes consultoras tudo funciona muito bem, toda a gente é muito boa no que faz, extremamente competente e muito motivada — da rececionista ao chefe de escritório. Quando chegamos às empresas percebemos que a realidade é diferente e que a gestão das pessoas (da sua motivação, do seu crescimento, da sua performance) é talvez o principal desafio.
“O trabalho é como as areias movediças — se não impusermos um limite, ele pode-nos absorver até ao infinito.”
Qual foi o seu maior desafio profissional e como a impactou?
Não identifico um desafio especial, mas desde que comecei a trabalhar sempre tive um desafio constante, mesmo antes de ter filhos e estar casada, que é a conciliação entre a minha dimensão profissional e pessoal. Eu gosto muito do que faço, sou ambiciosa — quero sempre aprender mais e fazer mais. Mas o trabalho é como as areias movediças — se não impusermos um limite, ele pode-nos absorver até ao infinito. Esta capacidade de perceber onde devo parar o trabalho e como preservar a esfera pessoal é um desafio constante. Acho que hoje já aprendi a geri-lo muito melhor porque estou mais consciente quando sou desafiada nas duas dimensões e também sou mais assertiva em relação às minhas prioridades.
Quais os principais desafios que enfrenta hoje no seu negócio?
Uma das principais dificuldades é a gestão equilibrada entre o urgente e o importante. Por um lado, é preciso resolver os temas do dia a dia, tomar decisões e dar respostas que têm de ser cada vez mais rápidas e ágeis, não só porque os nossos consumidores são cada vez mais exigentes mas também porque os nossos clientes têm uma pressão grande em cima de si. Por outro lado, enquanto líderes precisamos de antecipar constantemente os problemas e desenvolver estratégias de negócio. Antes do COVID este pensamento estratégico era feito para 5 e 10 anos. Hoje, temos de pensar em situações que, provavelmente, nos podem afetar a um ou dois anos. É um conceito mais próximo do “always-on-strategy”.
No meu setor por exemplo, há lobbies a pressionar de forma evidente o legislador para limitar a capacidade de os agentes económicos comunicarem e venderem vinho, com introdução de limitações à publicidade, preços mínimos, imposições sobre rotulagem e muitas outras alterações que podem afectar o nosso negócio muito mais cedo do que a maioria dos operadores antecipa. É preciso idemtificar, monitorizar e mitigar estes riscos, sem nos deixarmos absorver pelos temas urgentes do dia a dia.
“É preciso saber priorizar e aceitar que não podemos chegar a todo o lado.”
Quais os principais comportamentos e atitudes que contribuíram para chegar à posição que hoje ocupa?
A capacidade de estabelecer pontes entre as pessoas, criar consensos — e que muitas vezes passa por concordar em discordar —, com a capacidade de articular ideias diferentes entre interlocutores, conseguir extraí-las e estabelecer soluções, desbloquear situações de impasse. Muitas vezes sinto-me quase como uma mediadora, a tentar captar as ideias e energias que ali estão, traduzi-las e chegar a uma solução conjunta.
Para além disso, uma atitude de grande foco na resolução de problemas e de praticidade. Grande parte da minha forma de acrescentar valor ao negócio é essa capacidade de resolver problemas, por mãos à obra e articular quem for preciso para podermos avançar.
Acrescentaria a humildade de perceber que não temos as respostas todas. Por isso, importa ser curiosa e fazer mais perguntas. Nas reuniões, faço tipicamente muitas perguntas o que me ajuda na formulação de soluções para temas mais complexos e no Vivo muito o presente, não fico a remoer o passado, nem vivo angustiada com o futuro.envolvimento de todos.
Consegue identificar algum erro que lhe tenha trazido uma aprendizagem importante na carreira?
É muito difícil refletir sobre o erro nesse contexto porque, para mim, as imperfeições e os erros fazem parte do percurso e incluo-os no meu processo de evolução. Penso sempre que enquanto líder estou constantemente a aprender. Olhando para trás na carreira, identifico um momento que não tem tanto a ver com a minha performance como líder, mas com a minha autogestão e que me mostrou que devo estar mais atenta aos sinais do meu corpo.
Em 2011, estava no meio de um projeto muito exigente com uma equipa e um cliente internacional fora de Portugal. Ao mesmo tempo estava em fase de grandes mudanças a nível pessoal. Lembro-me que queria manter todas as bolas no ar e os meus níveis de cortisol deviam estar no pico. Um dia, quando voltava de Londres, desmaiei no avião. Saí diretamente do aeroporto em Lisboa para o hospital. O médico que me viu, disse-me “Você parece um frango assado. Está queimadinha!”. E de facto estava com um esgotamento. Parei de trabalhar durante um mês o que me ajudou a recuperar, mas fiquei com algumas sequelas – a minha memória, por exemplo, não voltou a ser o que era! Foi um episódio difícil, mas uso esta experiência para me proteger dos contextos de stress a que é inevitável estar exposta ao longo da vida.
A pandemia do COVID-19 foi outra vez uma altura extremamente difícil para mim e acredito que para muitas mulheres. Felizmente já conhecia os sinais e abrandei imediatamente.
Estas aprendizagens não se fazem sem custos, mas tiro delas lições muito importantes . Quando sinto os sinais de alerta, sei que tenho de começar a reservar mais tempo para mim, começar a dizer que não ao que não é tão importante — e a não me sentir culpada por isso. Hoje sou muito mais disciplinada nisto e digo às minhas equipas: é preciso saber priorizar e aceitar que não podemos chegar a todo o lado.
“Vivo muito o presente, não fico a remoer o passado, nem vivo angustiada com o futuro.”
Muitas mulheres têm dificuldade em lidar com o erro e seguir em frente. É o seu caso?
Vivo muito o presente, não fico a remoer o passado, nem vivo angustiada com o futuro. Isto é válido para outros temas da nossa vida — há coisas que já não conseguimos resolver ou recuperar e continuamos agarrados a elas. Largar o passado para podermos viver o presente é muito importante e ajuda-nos a não manter a tal galeria de erros, este portfolio de temas que temos sempre na nossa cabeça. Os erros só são relevantes na medida em que nos podem dar dicas úteis para o presente e para o que podemos fazer diferente amanhã.
Como concilia uma carreira tão exigente com a parte pessoal e profissional?
Antes de mais, é necessária uma rede de ajuda — e cada deve construir a sua na medida das suas circunstâncias — e que essa rede tenha também alguma folga que nos permita gerir os imprevistos. Pelo menos, para quem esteja em cargos de responsabilidade em que a agenda não é sempre certa, é muito importante ter esta folga. Depois, é necessária uma grande organização e capacidade de antecipação.
Finalmente, para mim, é também muito importante aceitar que não consigo fazer tudo a 100%, ou chegar sempre a todo o lado. Tenho de ter consciência disso e viver em paz com essa verdade. Tenho três filhos e mais um a caminho. Fiz carreira internacional, já tive uma fase em que viajava mais de duas vezes por mês. Digo que é possível ter uma carreira, ter exposição internacional, ter uma família numerosa, mas é preciso aceitar que não podemos chegar a todo o lado.
Tenho uma amiga escritora, a Ruth Manus, que diz num dos seus livros, que nós mulheres não podemos querer a nossa emancipação se não aceitarmos que os outros façam as coisas de maneira diferente da nossa. Pode achar que o seu marido arrumou a máquina de uma forma menos organizada que a sua, ou que a sua empregada vestiu o seu o seu filho com um conjunto que não escolheria, mas o que importa é que eles estão vestidos e a máquina está arrumada! Temos de deixar de ser tão perfeccionistas e aceitar que quem ajuda pode fazer as coisas de maneira diferente.
“Hoje sinto mais a solidão do topo.”
Teve algum mentor ou alguém que a tenha inspirado de forma especial, marcando a sua carreira?
Não tenho um mentor. Mas numa fase mais inicial da minha carreira, mais do que um mentor tinha um peer group muito bom. Sou de uma fornada de cinco ou seis mulheres que entraram na BCG quase na mesma altura e que hoje estão em posições de liderança, todas com três ou quatro filhos. Cresci muito com a partilha de experiências entre todas.
Durante o meu percurso tive uma ou duas pessoas a quem recorria para me ajudarem a pensar em algumas decisões de carreira, mas hoje sinto mais a solidão do topo, confesso. Sinto que a minha evolução é muito mais feita por introspeção e reflexão — leio muito, penso nas coisas — e vou vendo a experiência das mulheres e homens diferentes que vou conhecendo, mas de uma forma mais informal, que depois sintetizo com autorreflexão.
Qual o conselho mais valioso que deixa a uma jovem executiva?
Não há fórmulas para seguirmos os nossos sonhos, aquilo que funcionou com outros pode não funcionar connosco, tem de ser um caminho adaptado ao nosso contexto pessoal e profissional. Por isso diria que é importante seguirem o vosso instinto, pois no nosso íntimo sabemos o que faz sentido fazer e o que não faz, o que está certo ou errado.
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