Luísa Branco, vice-presidente da EPAL: “O serviço público é o meu ADN”

Jurista de formação, Luísa Branco descobriu uma paixão maior pelo ambiente. Defensora das causas do serviço público e das quotas, a vice-presidente da EPAL, revela que o seu percurso é o resultado de muitas camadas de experiências, de ajuda e inspiração de outras pessoas. Nunca recusou um desafio e acredita que tudo se faz e que a realização profissional carrega energia para a vida pessoal.

Luísa Branco é vice-presidente da EPAL.

Licenciada em Direito, pela Universidade Clássica de Lisboa, Luísa Branco sempre achou que o seu percurso passaria pelo regresso à cidade onde cresceu, Caldas da Rainha, e que iria ser advogada. Estava longe de imaginar que, aos 22 anos, quando começou a trabalhar num departamento do ambiente, esta fosse uma paixão para a vida toda. Como nunca recusou um desafio, “sempre que achei que tinha condições, aceitei-os”, a sua passagem pelos gabinetes do Governo , nos ministérios do Ambiente e da Economia, ajudou-a a perceber a “anatomia dos processos decisórios.” Contudo, o apelo e a vontade de retomar a carreira técnica, e de ter uma vida mais tranquila falaram mais alto. “As vidas dos gabinetes são avassaladoras, em termos de energia e horários. Costumo recordar que no meu primeiro filho, trabalhei até à véspera dele nascer e, no segundo, estive a fechar dossiês até as duas da manhã, e ele nasceu, nesse  dia, às seis da tarde”, conta.

No INAG, “uma casa muito masculina, muito de engenheiros”, foi a primeira mulher a exercer funções na vice-presidência, e confessa que foi dos períodos “mais felizes” da sua vida profissional. Integrou os grupos de trabalho que prepararam a lei da água, o que lhe permitiu conhecer “por dentro a arquitetura jurídica do setor da água.” O desafio que se segue é na Águas de Portugal, onde tem a sua primeira participação num board, somando dois mandatos. Como ser mulher nunca foi impedimento para o seu crescimento profissional, Luísa Branco assume a função de administradora da EPAL e Águas do Vale do Tejo, em 2015, e cinco anos depois a vice-presidência, cargo onde se mantém.

O serviço público é a sua alma-mater, está no seu ADN, defendendo convictamente que quando “sou chamada para uma função de maior responsabilidade e, sinto que adquiri essa capacitação, é meu dever devolver à área pública esse saber. Para mim é quase um imperativo.”  Reconhece que vê muitas mulheres capazes a ficarem pelas lideranças intermédias e poucas nos cargos de topo, afirmando que lutar “pelo lugar à mesa” é fundamental, e que não podem, simplesmente, ficar à espera de serem reconhecidas e desafiadas , “quando chegar a altura, posicionem-se.” Acredita que o “talento não tem género”, sendo defensora das quotas “são uma ferramenta jurídica a que se deita mão para resolver uma situação de ineficiência. E isto empodera outras mulheres.”

 

O que é que a levou a fazer Direito?

Escolhi Direito sem grande convicção, gostava mais das áreas de Letras. Quando olho por trás, porventura, o meu interesse pelo Direito vem de um episodio pessoal. Quando o meu pai morreu, tinha eu 12 anos, possuía uma empresa familiar e recordo-me de acompanhar a minha mãe, com o meu irmão, em reuniões, muito na vertente contabilística, e posteriormente na alienação da nossa quota, em contactos com advogados. Fiquei com a ideia de que era uma área que ajudava a resolver problemas às pessoas, e poderia ser uma área que me interessasse. Quando terminei o liceu lembro-me de alguns professores sugerirem fortemente que eu fosse para História ou Filosofia, mas decidi que iria para Direito. Não me arrependo.

Nessa altura que ideias tinha para o futuro, o que é que ambicionava fazer?

Sou das Caldas da Rainha e achei que o meu percurso passaria pelo regresso às minhas origens, à cidade onde cresci, e que iria ser advogada. Mas não foi isso que aconteceu. Estava a terminar o curso, e tive um desafio para começar a trabalhar num departamento ligado à área do ambiente, que era algo novo. Achei que devia experimentar e começar por aí e depois retomar, eventualmente, a ideia de uma carreira na advocacia. Até porque, ao mesmo tempo, fiz o estágio de advocacia. Comecei a trabalhar num departamento no ambiente e foi uma paixão que ficou até hoje.

Qual era sua função na altura?

Entrei para o gabinete jurídico do Instituto de Conservação da Natureza, na altura chamava-se Serviço Nacional de Parques, Reservas e Conservação da Natureza.  Era um instituto com gente muito jovem, a maioria muito ativista, do ponto vista ambiental. O Instituto de Conservação da Natureza foi sempre um sítio onde houve muita energia nesta área da militância ambiental até porque era uma área nova, muito atraente.. Começou ali o princípio de muita da legislação e das políticas em matéria de ambiente, na vertente da conservação da natureza. Tudo aquilo era um mundo novo para mim, na altura com 22 anos, e ali continuei durante cinco anos.

 

“A passagem nos gabinetes [do Governo] ajuda muito a perceber a anatomia dos processos decisórios.”

 

Como foi o seu percurso até chegar à vice-presidência da EPAL?

Estando num serviço do Ministério do Ambiente a determinada altura fui desafiada para integrar o gabinete do então ministro do Ambiente, o Prof. Carlos Borrego, que procurava um reforço jurídico, e aceitei. Achei que ia ser interessante passar para um patamar diferente, onde poderia acompanhar mais por dentro aquilo que era a formação das decisões e das políticas, ver como é que aconteciam. Estive na função de adjunta para a área jurídica, nos gabinetes que se seguiram, com a Dr.ª Teresa Patrício Gouveia e, depois, com a Prof.ª Elisa Ferreira. Mantive-me nos gabinetes, independentemente do ciclo político, o que é também um padrão na minha carreira. Nas áreas governamentais é muito importante que a memória passe. Estamos a falar de serviço público e os ciclos políticos não devem impedir que haja uma passagem, uma fluidez na informação, que é absolutamente recomendável

Durante as minhas funções como adjunta para a área jurídica, começo a ter muito contacto com a produção legislativa. Eu tinha a responsabilidade da preparação da pasta de conselho de ministros, uma tarefa que tem de ser feita, para o membro do governo que estamos a apoiar estar preparado na defesa dos diplomas que vai apresentar e também estar preparado para opinar sobre diplomas de outras áreas, sobretudo as que podem ter ligação ou interfacecom a área que tutela. Tudo isto dá uma visão muito transversal das políticas públicas, nos mais diversos setores.

A determinada altura, até por razões pessoais, senti vontade de voltar a uma carreira técnica, a uma vida mais tranquila. As vidas dos gabinetes são avassaladoras, em termos de energia e horários. Eu casei e tive os meus dois filhos, durante o período em que trabalhei nos gabinetes. Costumo recordar que no primeiro filho trabalhei até à véspera dele nascer e no segundo  estive no gabinete a fechar dossiês até as duas da manhã, e ele nasceu, nesse dia, às seis da tarde.

Queria ter uma vida mais tranquila, retomar a carreira técnica que tinha interrompido quando fui para os gabinetes, e surgiu a oportunidade de ingressar no recém-criado Instituto Regulador de Águas e Resíduos, a atual ERSAR – Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos. Fiz parte da equipa que criou e ajudou a dar os primeiros passos nesta  área da regulação, nas funções de diretora jurídica. Voltei, assim, à minha área técnica. Foi muito interessante.

A determinada altura, recebo o telefonema de uma pessoa com quem me cruzara profissionalmente, a convidar-me para ser sua chefe de gabinete numa  secretaria de Estado. Era uma área nova, a da Economia, e a função era também diferente, mas sentia-me capaz de a exercer, depois de tantos anos a observar e a fazer parte de uma equipa onde também tinha o papel de substituir o chefe de gabinete nas suas ausências. Esta secretaria de Estado tinha a tutela da energia e, houve nesse período, um grande desenvolvimento nessa área. Foi o lançamento de um  programa muito completo na área da energia e a criação das bases de um mercado ibérico de energia. Acabei por me ver envolvida nesses dossiês e gostei muito dessa experiência.

E repetiu-se a mesma situação: mudou o ciclo político e a secretária de Estado que sucedeu naquela pasta convidou-me para ficar como chefe de gabinete. Na altura, esta decisão surpreendeu-me, porque não era muito comum isto acontecer num cargo de confiança pessoal. Tinha sido um fim do ciclo em que estivemos durante muito tempo em governo de gestão. E uma das grandes preocupações que tínhamos, era deixar as pastas muito bem preparadas e organizadas para quem sucedesse.. E coube-me a mim coordenar  esse trabalho, estava tudo preparadíssimo para transitar para o próximo gabinete  e foi com surpresa que me vi no dia seguinte a ser a destinatária das pastas de transição que tinha preparado para o meu ou a minha sucessora.

Durante esta minha incursão na Economia, surgiu o convite para ir para o Instituto da Água, o INAG. Ponderei e, mais uma vez, o apelo pela área mais técnica falou mais alto. Tinha as coisas organizadas, uma equipa sólida e uma pessoa à altura de me substituir. Falei com a secretária de estado e ela foi sensível ao meu desejo de agarrar esse desafio. Os gabinetes não são carreira, são locais de passagem. Para mim, era voltar à área técnica, voltar ao ambiente, mas agora na qualidade  de vice-presidente do INAG, um instituto muito importante no setor do ambiente, numa posição que me permitia exercer um conjunto de capacitações que achei que tinha obtido, durante esse período da minha vida.

Para quem vai quer para institutos ou empresas, a passagem pelos gabinetes ajuda muito a perceber a anatomia dos processos decisórios. Eu tinha muito a noção de como determinadas posições que pudéssemos tomar seriam interpretadas pela tutela, se seriam úteis ou não, qual a forma de apresentar determinadas soluções.

Foi dos períodos mais felizes da minha vida. Fui a primeira mulher a exercer funções na direção do INAG, neste caso, como vice-presidente. Esta casa era a antiga hidráulica, muito masculina, muito de engenheiros, e eu era jurista, uma novidade para o instituto. Tive o privilégio de trabalhar com o presidente, de quem ainda sou amiga, formámos uma equipa muito dinâmica e fizemos ali um trabalho de que me orgulho.

 

“As minhas equipas, em termos de interface com o exterior, são as melhores e eu defendo-as. Os aspetos menos bons, resolvo-os em privado.”

 

Como é que se conseguiu afirmar nesse ambiente tão masculino, sentiu dificuldades?

Fi-lo da forma que faço sempre, que é trabalhar com seriedade, partilhar e as pessoas perceberem que estou ali para ajudar. Fui muito bem acolhida, logo à partida. Rapidamente, as equipas foram percebendo que, na maioria dos casos, eu trazia uma mais-valia na leitura jurídica de alguns assuntos. Mas recordo-me de um episódio com um dos engenheiros mais céticos: tive de me deslocar com ele a uma reunião no Ministério e as coisas não correram particularmente bem, ele foi interpelado, de forma pouco amigável, e o modo como se expressou não foi o mais feliz e, em termos técnicos, não conseguiu passar a mensagem. Não obstante, eu coloquei-me ao lado dele e procurei colmatar a situação, o que me pareceu que era o óbvio a fazer. Acho que  ganhei o seu respeito nesse dia e tivemos uma longa e bem sucedida colaboração. Foi uma coisa que eu fiz sempre: em termos de interface com o exterior, as minhas equipas são as melhores e eu defendo-as. Os aspetos menos bons, resolvo-os em privado. Foi um tempo muito feliz, de realizações.

Gosto muito de trabalhar com engenheiros. Nem sempre são os mais sensíveis aos aspetos mais administrativos, mas querem fazer coisas. O Direito serve para ajudar a fazer bem, mas a fazer. Aquela ideia de que o jurista é a pessoa que empata as coisas não é nada a minha experiência, é um mito que é preciso desfazer. Os juristas gostam de fazer as coisas acontecer, mas bem feitas, dar passos seguros para as coisas ficarem sólidas, esse é o meu sentimento, renovado diariamente, na minha interação com a área jurídica que tutelo na EPAL. Foi, por isso, uma parceria muito feliz. Foi o período da preparação da Lei da Água e dos diplomas regulamentares. Estando no INAG e tendo formação jurídica, fiz parte dos grupos de trabalho que prepararam essa legislação. Foi muito interessante, porque fiquei a conhecer por dentro a arquitetura jurídica do setor da água enquanto recurso.

A vertente organizativa e de gestão com a criação do grupo Águas de Portugal e a empresarialização do setor tinha-a acompanhado no início dos anos 90 nos Gabinetes do Ambiente. Na altura foi necessário preparar a legislação que permitiu a criação dos Sistemas Multimunicipais de Águas e de Resíduos, arquitetura que se mantém até hoje e foi determinante no grande salto qualitativo que o país deu na gestão do abastecimento de água, gestão de efluentes e resíduos sólidos urbanos, num processo que lá fora é muita vez apelidado de “milagre português”.

Como chega ao Grupo Águas de Portugal?

Já estava no INAG há alguns anos e surgiu o convite para ir para o Grupo Águas de Portugal e, mais uma vez, retomar a carreira mais técnica. Esse é um padrão da minha vida profissional, estou em funções mais desligadas da área técnica, e estou sempre a voltar à área técnica e preparada para o fazer.

Regressei à área, com a função de diretora jurídica do Grupo Águas de Portugal, voltei a meter a mão na massa, a escrever pareceres, a ter de opinar,  trabalhar, outra vez, mais diretamente os temas. Voltei a ter a oportunidade de fazer aquilo de que mais gosto de fazer em termos jurídicos, que é ajudar a preparar soluções para ir ao encontro de desafios que se colocam à gestão. Desta feita com a criação de parcerias entre o Estado e as autarquias locais para a gestão dos serviços de águas. Estive um tempo nessas funções e depois fui convidada para a administração.

A primeira administração que ocupei foi na Águas de Portugal,  Serviços Ambientais,– a atual AdP Valor -, a empresa onde eu estava enquadrada, enquanto diretora jurídica e que funcionava, entre outras, como uma espécie de central de compras do Grupo, que prestava apoio à holding e ao conjunto das empresas do Grupo AdP nas diversas áreas, jurídica, informática, comunicação, engenharia, compras e logística. Tive dois mandatos na AdP Serviços. Depois foi o processo das agregações, em 2015, e, nessa altura, tenho o desafio de vir para a EPAL. A EPAL tem a gestão delegada de uma outra empresa, a Águas do Vale do Tejo, e o desafio foi vir como administradora para a EPAL e também para a Águas do Vale do Tejo, e depois como vice-presidente, cargo que ocupo atualmente.

Qual a sua missão enquanto vice-presidente?

Tutelo mais diretamente três áreas – jurídica, gestão de ativos e laboratório – e, trabalho diariamente as diversas políticas e matérias que temos de desenvolver.

Quando a EPAL foi chamada a exercer a gestão delegada da Águas do Vale do Tejo, foi um enorme desafio, quer para a gestão, quer para todos os trabalhadores, todas as direções. Foi um esforço muito virtuoso de levar a experiência da EPAL a territórios mais distantes. Nas Águas do Vale do Tejo temos a gestão da água e saneamento, da Beira Alta, Beira Baixa, Alentejo e Oeste, apenas na vertente água, que são zonas e instalações muito dispersas e com assimetrias entre si. A EPAL, uma empresa com 150 anos, teve de se reinventar e, em articulação com as equipas das empresas extintas, aprender e contribuir para implementar as melhores práticas, nestes territórios, num trabalho conjunto, árduo e que se renova diariamente com novos desafios.

Numa das áreas que tutelo, a de gestão de ativos, trabalho muito a gestão das perdas, que está na ordem do dia, com a seca e as alterações climáticas. Desenvolvemos um conjunto de metodologias, que colocamos em prática, para gerir e diminuir as perdas nos sistemas de abastecimento de água. A questão da água, ligada ao ambiente, é uma das grandes preocupações da atualidade.

O laboratório é outra área de que me sinto muito orgulhosa. É um dos melhores da Europa, temos equipamento e controlos analíticos muito sofisticados. Garantimos a qualidade da água que distribuímos com os mais altos padrões. Somos de primeira linha nesta matéria e as pessoas podem estar tranquilas e beber a água da torneira com toda a segurança. Recebemos no laboratório doutorandos que vêm fazer investigação connosco: como estão sempre a surgir novas questões relacionadas com a qualidade da água, vamos desenvolvendo projetos-piloto de investigação para estarmos sempre na primeira linha destas matérias.

Também gosto muito das outras áreas, mais hard, como as que já tive no passado: da manutenção, planeamento e controlo de gestão ou, noutro prisma, a da sustentabilidade empresarial. Tem sido uma viagem pelas diversas áreas da empresa, e sinto-me permanentemente orgulhosa e honrada por desempenhar estas funções. Temos equipas muito sólidas, muito capazes. Se eu puder partilhar a minha experiência e contribuir para que continuem a crescer, é um orgulho.

 

“O meu percurso é o resultado de muitas camadas de pessoas generosas, que me ajudaram, que partilharam conhecimentos comigo.”

 

Qual o feito, ao longo da sua carreira, de que mais se orgulha?

Tem muito que ver com as pessoas. Quando olho para trás, aquilo que me deixa satisfeita e que sei que um dia vou recordar são as pessoas e a forma como, quero acreditar, tenho vindo a conseguir ajudar a formar novas gerações e capacitá-las para poderem ocupar lugares de destaque e de importância no setor e nas áreas por onde passei.

Eu também tive esse privilégio. O meu percurso é o resultado de muitas camadas de pessoas generosas, que me ajudaram, que partilharam conhecimentos comigo e, por isso, sinto uma enorme responsabilidade de passar, às pessoas com quem trabalho, esse conhecimento. Nas reuniões semanais com as equipas, perante um assunto que me seja colocado, eu nunca digo “vamos por aqui”, ou “vamos por ali”; faço com elas todo o percurso mental, quase a anatomia da decisão, até nas indecisões, para perceberem como é que decisão está a ser formada na minha cabeça. Acho que os processos decisórios são sempre muito individuais. Não espero que as pessoas se sintam corresponsáveis, sobretudo se as coisas correrem menos bem. Assumo a responsabilidade, mas quero que as pessoas partilhem estes processos, porque é uma forma de crescerem e ficarem apetrechadas, para quando tiverem de ser elas a decidir ..

Nos processos de gestão, das coisas que mais orgulho, é a gestão da seca de 2005. Foi uma seca muito intensa e eu na altura estava no Instituto da Água, que na qualidade de Autoridade da Água coordenava a Comissão criada para o efeito. Foi necessário juntar à mesa mais de duas dezenas de entidades, representando setores da administração pública e setores utilizadores da água, associações de defesa do ambiente e representativas dos diversos setores de atividade. Era preciso ratear um recurso escasso e conciliar interesses, que nem sempre convergiam.

Esta seca aconteceu com maior intensidade no Algarve e alavancou a necessidade de concretização  da barragem de Odelouca, em que também estive envolvida, no lado do INAG. Eu achava que depois da construção de Odelouca  nunca mais iríamos ter problemas de falta de água no Algarve, e, no entanto, agora estamos a viver uma situação semelhante.

Como define o seu estilo de liderança e como tem evoluído ao longo da carreira?

Tem vindo a evoluir no sentido de se tornar mais aberto. À medida que vamos crescendo e tendo a experiência de gestão, as coisas tornam-se mais intuitivas. Quando comecei as minhas funções de gestão, no INAG, era mais jovem, e mais fechada em termos de gestão, embora a intuição já me dissesse que era muito importante dar confiança às equipas, estar sempre ao lado delas, a partilhar o trabalho, os processos. Gosto muito de trabalhar com as pessoas, de partilhar os processos decisórios.

Atualmente, acho que é muito intuitivo. Li algures que a intuição é um processo desenvolvido a partir muitas experiências repetidas, se calhar é isso mesmo. E depois é preciso preencher  com lastro técnico aquilo que nos parece que é a coisa certa a fazer. O meu estilo de liderança é muito partilhado e orientado para ajudar ao crescimento das pessoas com quem trabalho e das organizações. Como alguém disse, a liderança é tornar-se dispensável, é formar outras pessoas autónomas, capazes de serem líderes no futuro.

 

“Vejo muitas mulheres, muito capazes [na Administração Pública], nas direções de serviços, mas poucas mulheres nas presidências.”

 

Alguma vez recebeu algum convite do setor privado e isso a inquietou ou desinquietou?

Recebi. Coincidiu com a altura em que eu deixei o gabinete da Drª Teresa Gouveia e comecei a trabalhar no gabinete da Prof.ª Elisa Ferreira. Recebi o convite para iniciar a área de ambiente de um grande escritório de advogados. Confesso que parei para pensar, porque era muito interessante. Tinha o compromisso de trabalhar com a nova ministra, a Prof.ª Elisa Ferreira, e partilhei com ela este convite.  Disse-me que apoiaria o que eu decidisse, sem me condicionar, só que o serviço público é o meu ADN e falou mais alto.  A vinda para o grupo Águas de Portugal, que já é um grupo empresarial, é o meu limite. Afasta-se do meu padrão de administração pública tradicional, mas não deixa de ser o grande grupo empresarial no setor público, no setor da água. Foi onde vim mais longe, e não me arrependo. Tive e tenho desafios e fantásticos e gosto muito do que faço.

Como vê a evolução da presença feminina no setor público e atualmente?

Tive o privilégio de começar a trabalhar na área do ambiente ainda muito jovem, e trabalhei sempre com muitas mulheres nesta área. Fui representante do ministério do Ambiente na Comissão para a Igualdade de Género durante um período e tínhamos de identificar  as mulheres no setor, por níveis etários, posições de chefia, e recordo-me que o ministério do Ambiente estava sempre bem posicionado, talvez por ser uma área de governação relativamente recente face às áreas mais tradicionais: havia muitas mulheres, e também em níveis de chefia, mas em chefias intermédias, poucas ou quase nenhumas como dirigentes máximos. Essa é uma constante observação ao longo da minha vida. Vi ao longo da minha carreira muitas mulheres, muito capazes, a ficarem-se pelos níveis intermédios das organizações sendo poucas as que ascendem aos lugares de presidências nas direções-gerais e institutos públicos. Mas, nos últimos anos, observo que  esta realidade tem vindo pouco a pouco a alterar-se e, atualmente, já é mais comum e existem várias mulheres como dirigentes máximos na Administração Pública, presidentes de empresas e de reguladores.

Sente-se uma role model para as mulheres que trabalham na empresa?

Sinto essa responsabilidade de ser inspiradora. Como considero que trago muito conhecimento do setor, também para a empresa, gosto sempre de o partilhar, para que as pessoas com quem trabalho, fiquem mais enriquecidas e completas.

Quando começou a integrar administrações talvez tenha sido a única mulher nos boards

Não, tive sempre companhia. Na AdP Serviços, tinha já outra mulher na administração. E quando vim para a EPAL até aconteceu as mulheres estarem em maioria, sermos três mulheres e dois homens, no primeiro conselho de administração. Depois alterou-se, ficamos duas mulheres e três homens, situação que se mantem até hoje.

 

“O talento não tem género, por isso, sou defensora das quotas, porque é uma ferramenta jurídica a que se deita mão para resolver uma situação de ineficiência.”

 

E nota-se diferença em ter mais ou menos mulheres num board, na forma como se fazem ouvir?

É indiferente. As mulheres com quem eu partilhei os boards tinham um padrão, o de serem bastante  interventivas. Interrogo-me muitas vezes porque é que, de uma forma geral, as mulheres com quem me cruzo nos conselhos de administração têm um conjunto de características padrão.

E quais são essas caraterísticas?

Têm um enorme sentido de responsabilidade pelas funções que ocupam e tendem a precisar de justificar, com muito trabalho e dedicação, o facto de estarem ali.. Há uma necessidade  de validação constante que as mulheres sentem. São profundamente ativas, interventivas, são membros muito estimulantes nos conselhos de administração.

O que é que pensa que falta para trazer mais mulheres até à liderança?

Acho que estamos a fazer esse caminho. Sou a favor das quotas, para os conselhos de administração, quase por imperativo de consciência da minha parte, porque comecei a ter essas funções muito antes das quotas, e talvez por isso não tenho nenhum tipo de complexo em afirmá-lo. A competência já tem de lá estar, evidentemente, esse é um dado. Com tantas mulheres a saírem das universidades, muitas delas com percursos universitários brilhantes, e tantas a fazerem carreiras de liderança nas organizações há muito por onde escolher. Acho que o Direito serve para regular e ajudar a resolver faltas de eficiência que possam existir e enquanto perdurarem. E, esta, é claramente uma ineficiência, que está a ser colmatada. Tenho observado que a legislação e as quotas que foram instituídas têm ajudado muito o grupo AdP a fazer chegar muitas mulheres às administrações e presidências de empresas. E mulheres muito capazes, que desenvolvem a sua atividade lado a lado com homens também eles muito capazes e é assim que deve ser.  O talento não tem género, por isso, não é privativo de homens ou de mulheres.

As mulheres têm de vencer algumas barreiras e eu, sempre que posso, tento ajudar. Já tive mulheres à minha frente a admitirem não aceitar assumir novos desafios ou cargos de direção por razões de circunstância da vida pessoal. A verdade é que as mulheres tendem mais a recear as suas capacidades para estarem à altura nos diversos planos da vida.. O meu testemunho é que sempre que tive um desafio e achei que tinha condições, aceitei sempre. A resposta é sim ou sim e sim, é possível conciliar, evidentemente que com sacrifícios A conciliação, era no passado, um tema maioritariamente das mulheres mas de algum tempo para cá observo que para muitos homens esse é também um tema diário, a exigir esforços adicionais na conciliação da vida profissional com os diversos compromissos pessoais, em particular em pais de crianças pequenas, é a vida a acontecer e às organizações cabe, na medida do possível, ajudar neste esforço.

No meu caso em que desenvolvi toda a carreira no setor público considero que quando  vamos ficando apetrechadas com um conjunto de capacitações, em resultado de camadas e camadas de experiências, de ajuda e inspiração de outras pessoas, temos a obrigação de devolver isso à área pública e devolvê-lo ao nível a que formos  chamados a fazê-lo. Se sou chamada para uma função de maior responsabilidade e, sinto que adquiri essa capacitação, é meu dever devolver ao serviço público esse adquirido. Para mim, é quase um imperativo. E passo isso para as pessoas com quem trabalho..

 

“As mulheres, de uma forma geral, ficam à espera de que as reconheçam. Não se pode ficar à espera. Estejam atentas e quando chegar a altura, posicionem-se.”

 

A EPAL tem políticas concretas para facilitar a igualdade de género?

Apesar de ser uma empresa com mais de 150 anos, a EPAL é muito moderna. Tem políticas de conciliação da vida pessoal e profissional instituídas há vários anos e que são aplicáveis independentemente do género. Temos uma direção muito atenta  que observa estas questões na empresa e propõe soluções à administração nesta matéria, nomeadamente, que várias mulheres dentro da empresa frequentem ações de liderança específicas, ainda que transversalmente a empresa proporcione a formação, independentemente do género, como é suposto. De uma forma geral, ao nível das chefias, temos uma paridade instituída. Vai variando: há momentos em que temos mais mulheres diretoras, depois passamos a ter mais homens e vai alternando. Temos muitas mulheres nas áreas operacionais, o que é relativamente inesperado para que vem de fora. É normal chegar a uma ETAR e termos uma mulher que está à frente daquela estação, e as coisas funcionam muito bem; muitas são jovens, e muito capacitadas, vivemos um ambiente muito arejado.

Quando nomeamos as pessoas o género não é questão e o resultado tem sido este, muito equilibrado.

Que conselho daria a uma mulher que ambicione uma posição de liderança nesta vertente, no setor público?

Que tenha um apetrechamento técnico sólido. Nada substitui um conhecimento técnico e esse apetrechamento, até para reconhecimento, ao longo do processo de ascensão de funções de maior responsabilidade. Se nós nos sentamos a uma mesa, recém-chegadas a uma função, e não conseguimos trazer nada de novo nem acrescer algo diferente, dificilmente nos conseguimos impor. Ter uma sólida formação e uma carreira técnica é fundamental e, começar a construir, com abertura, com ambição, capacidade de arriscar e perder aquela timidez que vejo muito nas mulheres, que acham sempre, no fim do dia, que aquilo não é para elas. Por que não? O lutar pelo lugar à mesa é fundamental. Na minha carreira aconteceu-me isso. As mulheres, de uma forma geral, ficam à espera de que as reconheçam e as chamem. Por vezes, acontece, outras vezes não. Não se pode ficar à espera. Estejam atentas e quando chegar a altura, posicionem-se. Essa atitude é fundamental. Mas tirando a parte da questão da maior timidez que observo nas mulheres este seria também o conselho que daria a um homem nas mesmas circunstâncias.

O conselho que tenho para dar em termos de conciliação de vida pessoal e profissional é que tudo se faz, não sem sacrifício reconheço, mas isso faz parte. E quanto mais completos e satisfeitos formos na vida profissional, mais energia carregamos para a vida pessoal e o contrário também é verdade. Se encontrarmos esta dinâmica, as coisas fazem-se.

 

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