Isabel Furtado: “Uma empresa familiar pensa a muito longo prazo”

Neta do fundador da Têxtil Manuel Gonçalves, Isabel Furtado trouxe a TMG Automotive para o século XXI e está a participar num projecto para produção de um automóvel totalmente neutro em carbono até 2030. A empresária foi uma das vencedoras do Prémio Executivas do Ano 2023.

Isabel Furtado é CEO da TMG Automotive.

Isabel Furtado licenciou-se em Economia pela Universidade de Manchester, com especialização em Tecnologia Têxtil. No Verão Quente de 1975, com a ocupação da Têxtil Manuel Gonçalves, a mãe, Maria Helena Gonçalves saiu do país, fixando-se durante três anos no Canadá. Depois Isabel estudou em Inglaterra, entrou para o grupo TMG, em 1985, e, em 2005, tornou-se administradora da TMG Automotive.

Quando em 2008 chegou à liderança da TMG Automotive, a empresa facturava menos de 20 milhões de euros, estava a meio de um investimento de 30 milhões e embateu de frente na crise económica e financeira mundial. Não surpreende que pouco depois, numa visita a um cliente alemão, a empresária ouça alguém dizer a um seu concorrente: “Don’t worry, TMG Automotive is a charming little company, but it is ran by a woman”. Isabel Furtado relembrou ao Jornal de Negócios o episódio com compreensão: “A empresa era pequena, com uma mulher na gestão e num país periférico… tudo para não resultar. O tempo encarregou-se de responder.”

Em 2022, a empresa tem um volume de negócios na ordem dos 150 milhões de euros e exporta mais de 90% da sua produção. A TMG Automotive contabiliza 56 patentes registadas, várias das quais em conjunto com construtores automóveis como a BMW, a Mercedes, a Toyota e a Volvo.

Isabel Furtado foi líder da COTEC Portugal entre 2018 e 2022, tendo sido agraciada, em maio de 2022, pelo Presidente da República com a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique, pela liderança desta associação. Em 2014 já tinha recebido a insígnia da Ordem de Mérito Industrial pelo Presidente da República.

A TMG Automotive foi um dos quatro finalistas do Industrial Excellence Award Europe 2021. Em Junho de 2022 Isabel Furtado foi convidada para participar nos encontros do Club de Bildeberg e explicou que “a presença da TMG constituiu para mim uma distinção para todo o têxtil nacional e isso é muito importante para o seu universo”.

Esta área de negócios surgiu nos anos 1960 na Têxtil Manuel Gonçalves, fundada em 1937, que começou a fazer tecidos plastificados e telas para oleados e tendas militares. Como a tecnologia de plásticos era incipiente em Portugal, Manuel Gonçalves (1914-1998) contratou um engenheiro na Catalunha. Em 1971 a TMG forneceu assentos para a marca SAAB Monaco, a que se juntou já no fim da década de 70, a Volvo. Em 1986 o grupo reorganizou a sua fileira têxtil, verticalizando por áreas, e nasceu a TMG Automóvel. No virar do milénio especializou-se na indústria automóvel, mas ainda fez sacos de golfe, telas e balões insufláveis como a piscina do Fluvial no Porto até 2004/2005, quando se passou a denominar TMG Automotive. Em fevereiro de 2023, a TMG Automotive juntou-se aos suecos da Polestar para produzirem um automóvel totalmente neutro em carbono até 2030.

 

Como era o seu avô, Manuel Gonçalves, e que recordações lhe ficaram? Como era o ambiente familiar?

O meu avó era um figura impar, impossível de substituir, e com quem tive a felicidade de conviver até já ser adulta, e já a trabalhar na TMG. Não o consigo descrever em poucas palavras, mas a sua visão, o seu sentido de responsabilidade e dedicação à empresa sobrepunham tudo. Era um homem justo, generoso, mas muito exigente com todos, principalmente com a família. Queria saber do progresso dos nossos estudos, e tanto nos premiava como nos repreendia quando não correspondíamos ao que nos era exigido. Órfão desde jovem e com origens muito humildes, sempre apostou numa formação académica sólida para os filhos. Por exemplo, a minha mãe, hoje com 85 anos, foi estudar para a Bélgica aos 14 anos, quando as mulheres do seu tempo nem de casa sozinhas saiam. Os meus tios licenciaram-se na Suíça, EUA e em Inglaterra.

Tradicionalmente, almoçávamos em sua casa ao domingo, mas nunca se falava de trabalho nessa ocasião. Separámos sempre a vida profissional e a TMG da vida familiar.

 

“Fui preparada para que nunca fosse deixada para trás por ser mulher”

 

Recebeu  uma educação muito rígida? Foi preparada para gerir os negócios da família?

A minha educação foi essencialmente de muita vivência internacional e preparada para que nunca fosse deixada para trás por ser mulher. Nós somos cinco irmãos — duas raparigas e três rapazes e todos estudámos fora de Portugal. Aliás, a minha irmã estudou em quatro países diferentes. Tivemos todos a mesma e igual oportunidade em termos académicos, viagens, interação.

 

Que memórias guarda do conflito na TMG, que foi tão mediático na época, e que marcas deixou?

Eu era muito jovem quando se deu a revolução de Abril, e por isso o que me lembro é na maioria de ouvir e não propriamente de assistir a conflitos na TMG.

 

Como reagiu à ida para o Canadá com a sua mãe? Como foi a vida no Canadá e que memórias guarda?

Eu reagi como qualquer criança… Os pais decidem e nós vamos. Se os pais não deixarem transparecer as suas ansiedades, angústias e preocupações, que na altura eram  enormes,  os filhos sentem-se protegidos e não dramatizam tanto as situações. Foi um pouco o que aconteceu connosco. Na altura, com cinco filhos pequenos, os meus pais tiveram que decidir onde seria melhor para vivermos e estudar – o Canadá reunia as condições que consideravam importantes, e por isso, fomos.

Claro que foi uma mudança muito grande e a vida no Canadá era diferente e muito desafiante. Primeiro a língua, pois falar inglês não é o mesmo que estudar todas as disciplinas em inglês, depois deixar de viver numa quinta no Minho e passar a viver numa cidade enorme como Toronto, de nos movimentarmos em transportes públicos subterrâneos, do frio, do vento insuportável, e da necessidade de nos vestirmos para o inverno rigoroso… tanta coisa!

Das memórias mais engraçadas que tenho foi de realmente constatar a cor da pantera cor-de-rosa – porque na altura, tínhamos em Portugal dois canais a preto e branco, com horas de emissão reduzidas, e no Canadá havia mais de 20 canais, em permanência, e a cores… Grande choque tecnológico!

A vida no Canadá preparou-me bem para um mundo diferente, mais alargado em conhecimento, mais aberto a diversificação, mais inclusivo em termos de sociedade. Sendo o Canadá um país de emigração vasta e variadíssima, pude partilhar experiências com colegas de origens muito diferentes.

 

“Podíamos ser um grandioso país, mas continuamos pequeninos em tudo, sem grande ambição, nem sonho”

 

Entre 1975 e 1984 viveu praticamente fora de Portugal, andou na Loretto Catholic Secondary School, escola católica, e depois em Inglaterra na Beechwood School. Isso deu-lhe uma outra perspetiva do país?

Estudei no Canadá entre 1975 e 1978, onde concluí o 9.º ano, e depois, quando os meus pais regressaram a Portugal, rumei a Inglaterra, para um colégio interno, a Sul de Londres. Posteriormente ingressei na universidade de Manchester.

É claro que estas vivências foram muito importantes para conhecer ambientes, conceitos e culturas diferentes, e criar laços de amizade com várias nacionalidades. Hoje quando viajo ainda me encontro com colegas do colégio.

A perspetiva do nosso país para quem está fora é sempre diferente das pessoas que aqui vivem — algo inexplicável, chamado “uma saudade profunda  da nossa terra”, que nos faz gostar muito de Portugal, e querer regressar —, mas depois a realidade faz-nos ver que podíamos ser um grandioso país e que continuamos pequeninos em tudo, sem grande ambição, sem sonhos. No fundo, é um misto de admiração e deceção aquilo que sentimos.

 

A sua opção por Economia e a especialização em Tecnologia Têxtil foi uma influência da família?

De todo… eu não tinha ideia do que queria seguir! Estive muito indecisa entre Matemática, Arquitetura, Economia e até ponderei Biologia – sabia que teria que ter algo na área das ciências, e se fosse nas áreas com mais Matemática, melhor. A parte do têxtil foi uma opção mais induzida pela minha curiosidade do que por qualquer influência familiar.

 

Entrou em 1984 para o grupo. Quais foram as suas funções no grupo até 2005 quando chegou a administradora do TMG? Qual foram as principais aprendizagens que lhe serviram como gestora?

Como qualquer membro da família, estagiei em todas as áreas de negócio e durante três anos, não tive qualquer função que não “estagiária”. Foi uma altura muito importante para conhecer o grupo, as diferentes áreas da empresa e as pessoas. Passei por todas as áreas industriais e desde cedo a produção foi a que me despertou maior interesse, pois é onde “as coisas acontecem”, principalmente numa área do têxtil tradicional, onde o design e a moda imperam. Foi uma altura de grande enriquecimento profissional e pessoal, porque a grande exigência do têxtil é igualmente compensada pela beleza dos produtos.

Cada caminho profissional é feito de desafios e oportunidades, e o meu não foi diferente. Fui fazendo carreira, agarrando novos projetos e ganhando responsabilidades ao longo dos anos.

Entretanto entrei para a Administração do grupo em 2003, com a responsabilidade das plataformas industriais, tendo saído da Direção da Qualidade, Ambiente e Segurança do Grupo TMG. Quando fui desafiada para ir para TMG Automotive, o facto de conhecer a fábrica, o processo produtivo e as pessoas da área Auto, foi uma grande mais-valia.

Penso que aprendi um pouco de tudo ao longo de tantos anos na TMG – interagir com as pessoas de vários sectores e diferentes graus de conhecimento, entender o processo produtivo, conhecer o mercado onde nos inserimos, desafiar novas fronteiras, ter vontade de fazer diferente, inovar.

 

Em 2008 passou a liderar a TMG Automotive. Como era a empresa e quais eram os principais desafios?

Numa frase apenas: uma empresa com mentes brilhantes, um conhecimento fabuloso acumulado e um mercado enorme para conquistar.

 

“Nem sempre é fácil apontar exatamente onde ficamos melhor, ou até  perdermos alguma capacidade que tínhamos”

 

Quais foram os momentos mais marcantes de transformação da TMG Automotive? E como gestora? Mudou a sua maneira de agir, de pensar, de atuar?

A TMG Automotive fazia vários produtos não automóvel – marroquinaria, big bags para cereais, coberturas insufladas… a decisão de nos concentrarmos exclusivamente na área do automóvel não foi fácil, porque significou abandonar alguns mercados já consolidados. Mas fazia sentido focarmos a nossa produção e estrutura num sector de maior valor acrescentado e com mais inovação. Assim fizemos, com convicção, mas igualmente com as preocupações que qualquer grande mudança implica.

Em finais de 2008, e todo o ano de 2009 devido à grande crise financeira, atravessámos uma período bem difícil – a recente decisão de nos dedicarmos somente ao sector automóvel, um investimento produtivo considerável em curso e uma crise mundial, mais parecia uma tempestade perfeita.

Grandes crises, mudanças ou desafios vão moldando a nossa forma de pensar e de agir e nem sempre é fácil apontar exatamente onde ficamos melhor, ou até  perdermos alguma capacidade que tínhamos. Uma coisa podemos ter a certeza – cada vez vão existir mais mudanças, mais rápidas e mais extensas. E como já Darwin dizia: “não são os mais fortes que sobrevivem, mas sim aqueles que se conseguem adaptar às mudanças”.

 

A TMG Automotive é a empresa dos seus sonhos? O que é que falta cumprir para o atingir?

Em parte sim, em parte não. Se fosse hoje a empresa dos meus sonhos, eu deixaria de sonhar e de tentar ir mais longe. Eu diria que é parte de um sonho, mas ainda não totalmente realizado – e espero que nunca deixe de assim ser. Há tanto ainda para explorar e tanto para fazer.

 

Pertence a um grupo familiar de que também é gestora. Quais foram as principais transformações no grupo desde que começou a participar na gestão?

Uma empresa familiar é uma empresa que pensa a muito longo prazo, numa perspetiva geracional, muito mais preocupada com a criação de riqueza do que lucros. E aqui o conceito de “riqueza” é de legado, não só atendendo à importância que cada decisão pode ter para as gerações seguintes, mas também ao impacto que causará na comunidade em que se insere.

Ora, as decisões da TMG ao longo das últimas décadas refletem muito esta forma de estar. Um bom exemplo disso mesmo foi a decisão fundamental de concentrar a TMG Automotive exclusivamente no setor automóvel e de, desde então, esta empresa fazer um percurso contínuo e consciente de muito investimento, de muito reforço em formação, inovação, e políticas e processos de sustentabilidade. Tudo isto implicou diversas transformações muito grandes, umas mais arriscadas do que outras, mas todas com enorme impacto presente e futuro, sobretudo.

 

A quarta geração já está a ser preparada para a gestão do grupo?

Já temos a quarta geração a trabalhar no grupo.

 

“Este Prémio reconhece, finalmente, que em Portugal há muitas mulheres que assumem o risco e a dedicação que uma empresa lhes exige”

 

Como é foi a conciliação de vida pessoal e profissional quando começou a ser mãe?

Eu fiz um percurso um pouco diferente dos que as jovens, normalmente, hoje fazem. Aos 25 tive o meu primeiro filho e aos 30, tinha três. Não foi um início fácil, até porque, sendo eu casada com um médico, o meu marido estava a iniciar a especialidade, fazia imensas urgências e eu tinha os três miúdos muito pequenos.

Decidi que iria assumir um cargo de direção na empresa só depois dos meus filhos já andarem na escola, e assim fiz. De qualquer forma, nas duas primeiras gravidezes trabalhei até ao dia em que os meus filhos nasceram… a terceira, nasceu durante as férias.

 

Durante a sua vida e a sua carreira sobretudo, sentiu que o facto de ser mulher lhe dava as mesmas oportunidades profissionais e nas mesmas condições?

Ser mulher nunca foi questão na minha família. De tal forma que eu apenas me apercebi das dificuldades com que se deparam algumas mulheres em relação à progressão na carreira, ou mesmo na escolha de cargos de direção, muito mais tarde.

 

O que representa para si ser a primeira a receber o Prémio Empresária do Ano, da Executiva?

O prémio da Executiva, sendo atribuído apenas a mulheres, tem um sentido especial não propriamente por eu ser a primeira a recebê-lo – o que muito me honra, naturalmente – mas sim porque finalmente surge este Prémio, que reconhece e honra as muitas mulheres que dedicam as suas vidas às organizações que lideram.

Este Prémio reconhece também, finalmente, uma realidade há muito existente em Portugal: que há muitas mulheres empresárias, que há muitas mulheres empreendedoras e que há muitas mulheres que assumem o risco e a dedicação que uma empresa lhes exige, tanto nas suas vidas profissionais como pessoais.

 

Qual é a relevância que um prémio pode ter para uma carreira?

Fui ensinada que os prémios são todos diferentes, todos especiais, não se pedem, não se rejeitam e, acima de tudo, devem ser agradecidos e honrados. Por isso, é sempre com grande dignidade e humildade que recebo um prémio quando me distingue pela minha carreira.

 

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