Fátima Carneiro: “A Anatomia Patológica é muito menos sossegada do que se julga”

Dirige o serviço de Anatomia Patológica do Centro Hospitalar de São João, no Porto, é investigadora especializada em cancro do estômago e professora universitária. Em 2018, Fátima Carneiro foi distinguida pelos seus pares internacionais como a patologista mais influente do mundo.

Fátima Carneiro dirige o serviço de Anatomia Patológica do Centro Hospitalar de São João, no Porto.

O dia da patologista Fátima Carneiro não tem horas suficientes mas a própria admite que a sua resistência “se calhar é um pouco acima do habitual”. Grande parte delas são passadas a dirigir um serviço hospitalar e uma equipa de especialistas e a analisar amostras ao microscópio para determinar diagnósticos. Especializou-se na investigação em cancro do estômago, um dos que mais mata em Portugal, área em que trabalha também enquanto investigadora no Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto (IPATIMUP). Ainda consegue arranjar tempo para dar aulas na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP) e presidir a Academia Nacional de Medicina. Se lhe sobrar tempo, dorme umas horas. Mas a gratificação que ainda hoje sente na atividade que escolheu compensa tudo.

Em setembro passado, a influente revista científica The Pathologist enviou um convite aos leitores e colegas da especialidade em todo o mundo, que a elegeram como a mais influente, uma distinção que a deixou “surpresa e orgulhosa” mas que como diz, decorre da atividade de uma equipa de excelência internacional. É a segunda vez que tal acontece com um patologista nacional: o primeiro foi o Professor Sobrinho Simões, em 2015, fundador do IPATIMUP e hoje seu colega na investigação daquela instituição, tal como na FMUP.

Fátima Carneiro nasceu em Angola, em 1954, e licenciou-se em Medicina, em 1978, pela FMUP. Dirigiu vários projetos internacionais na sua área, foi presidente da Sociedade Europeia de Patologia, entre 2011 e 2013 e coordenou a Rede Nacional de Bancos de Tumores. Nesta entrevista, fala-nos da importância que a sua especialidade tem na atividade clínica, sobretudo no diagnóstico de doenças graves, e alerta para a falta de recursos humanos numa área decisiva em que as contrapartidas são menores que para outros clínicos, que decorre tantas vezes longe do olhar dos doentes, mas que salva muitas vidas… até porque os patologistas não fazem só autópsias, como nos explica.

Um patologista está cada vez mais próximo da resolução final dos problemas dos doentes ou das propostas de soluções.

Qual a sua reação e como viveu a sua distinção internacional, no final do ano passado?
Ainda estou a vivê-la. A primeira reação foi de franca surpresa. Claro que fiquei orgulhosa, mas penso que isto demonstra, antes de mais, que a patologia portuguesa tem projeção internacional – o Professor Sobrinho Simões já tinha recebido a mesma distinção em 2015. Há muitos patologistas portugueses a participarem ativamente em fóruns, o que nos fez subir a uma escala de representação internacional que me parece ser aqui o aspeto mais interessante. Os aspetos que podem dar essa visibilidade em concreto decorrem da atividade científica dentro de um grupo organizado e com algum track record em investigação, especificamente em cancro do estômago, e isto reflete-se nas publicações internacionais. Temos um trabalho de grupo em investigação feito com qualidade e marcamos presença em diversos fóruns científicos internacionais. Além disso, fiz uma trajetória de muitos anos, na Sociedade Europeia de Patologia, uma estrutura europeia com muita atividade, e a posição de presidente acarreta mais exposição.

A patologia é, então, uma área em que somos fortes sem que o público em geral tenha muita noção disso?
Penso que o público não tem muita noção daquilo que é a nossa atividade de investigação porque não é aquilo que mais lhes toca diretamente, em termos do que os pode afetar. Tenho-me esforçado por dar visibilidade à vertente da anatomia patológica, que é muitíssimo importante. Os patologistas responsabilizam-se por estudar amostras retiradas de doentes, para fins de diagnóstico – líquidos para exames citológicos, painéis de biópsia ou de órgãos para exame histológico, pequenos fragmentos para estudos moleculares ou mesmo autópsia. Portanto, o nosso papel é muito central na cascata de procedimentos que vão da observação do doente à procura do diagnóstico e hoje, cada vez mais, a Medicina tem uma base multidisciplinar para a análise, o diagnóstico mais completo e decisões terapêuticas, especialmente no domínio do cancro. Tudo isto é feito em grupos onde participam cirurgiões, enfermistas, gastroenterologistas (mas também podem ser neurologistas, etc..). Um patologista faz parte obrigatória dessas equipas e está cada vez mais próximo da resolução final dos problemas dos doentes ou das propostas de soluções, o que é, antes de mais, muito gratificante para quem é médico.

O que a continua a apaixonar no seu trabalho?
Gosto muito da minha atividade em termos de diagnóstico, tal como gosto muito do que faço no âmbito de ensino e no âmbito da investigação. É fruto da visão e força do Professor Sobrinho Simões, que conseguiu criar este ambiente onde conseguimos, apesar das adversidades, conjugar a atividade hospital com a de ensino e investigação. Essa é a maneira mais eficaz e que vejo como mais gratificante, de onde pode advir conhecimento mais sólido e capaz de ser reproduzido para a aplicação clínica.

Esta atividade é muito menos sossegada do que habitualmente se pensa e todos os dias sentimos uma responsabilidade imensa. Quando estou a fazer o diagnóstico de um caso concreto, sinto o gosto pela descoberta com que se faz uma investigação, usando os mecanismos para fundamentar, consolidar e negar, quando vemos lâminas ao microscópio, tentando extrair do que observo o máximo de informação possível e conjugando-a depois com a informação clínica. Cada caso é para mim, por isso um desafio de diagnóstico e eu gosto de desafios.

Não temos uma postura nada distante do doente! Temos sempre como objetivo último encontrar uma proposta para o bem do doente e isso temos todos muito claro.

O distanciamento entre o patologista e o doente é menor do que se pensa então…
Não temos uma postura nada distante do doente! Temos sempre como objetivo último encontrar uma proposta para o bem do doente e isso temos todos muito claro. É por isso que digo que nós, patologistas, temos uma atividade muito central, temos muito orgulho nisso e queremos ainda ter mais. O doente não nos vê normalmente, embora isso vá acontecendo cada vez mais, se for a uma reunião de grupo multidisciplinar onde estão todos os especialistas. Os patologistas têm uma atividade de contacto direto com o doente na realização de biópsias aspirativas, quando se trata de lesões superficiais em que é necessário recolher material rapidamente. Vamos tendo hoje, por isso, mais contacto direto.

Mas antes de chegar a esta especialidade, esteve quase a escolher Pediatria. O que a fez mudar de ideias?
Ah sim! Vivi todo o meu tempo de faculdade a afirmar que ia ser pediatra. Não tinha dúvida nenhuma. Gosto muito de crianças, tenho dois netos, sou uma avó babadíssima e uma mãe muito babada também. Mas percebi entretanto que gosto de ver crianças saudáveis e não consigo lidar com a situação da criança doente. Percebi que não ia conseguir ser feliz e desligar facilmente dessa situação e que ela me iria exigir um esforço de aprendizagem que não iria acabar bem. Mas também porque, em simultâneo, já estava na Anatomia Patológica. Vim para esta especialidade porque recebi um convite para dar aulas numa disciplina básica, e percebi que queria conciliar a clínica com o ensino e a investigação. A pessoa que me convidou, um professor catedrático desta faculdade, disse-me: “Então o ideal é ir para Anatomia Patológica.”

O cancro do estômago, a sua área de especialidade, é um dos mais prevalentes. Foi por isso que começou a fazer investigação nesta área? Queria mudar o panorama em Portugal?
Comecei a fazer investigação em cancro da tiróide, porque fui orientada pelo Professor Sobrinho Simões e essa era a área a que ele sempre deu mais atenção. A certa altura, o professor chamou-nos à atenção para a realidade do cancro do estômago, que é o 5.º mais frequente em Portugal e ocupa o 3.º lugar em termos dos cancros que mais matam. Apenas uma pequeníssima parte tem origem genética, mas tem muita importância porque se pode fazer muito. Cerca de 90% dos casos são esporádicos, qualquer um de nós pode desenvolver. Está dependente da nossa relação com um ambiente. Em 10% dos casos, há agregação entre famílias em que aparece mais do que um caso. Estima-se que apenas 1 a 2% tenham base hereditária – a palavra “hereditário” tem de ser usada com muito rigor e muitas vezes as pessoas não o fazem e inflacionam a sua dimensão. Significa que a alteração que ocorreu no genoma de uma célula foi muito precoce e ocorreu ainda no ovo e, portanto, quando o indivíduo nasce, todas as suas células têm aquele defeito. Essa é a primeira modificação para aumentar o risco de desenvolver o cancro. Se ocorreu uma segunda, estão criadas as condições para que ele se desenvolva. A forma de cancro pela qual me tenho interessado mais nos últimos tempos é o cancro hereditário do estômago associado a um gene que codifica uma proteína chamada Caderina E. Apesar da expressão ser pequena, a sua importância é grande porque, se uma equipa conseguir identificar um indivíduo com este efeito herdado e que tem a expressão clínica de cancro do estômago, a equipa fica com a responsabilidade de tentar oferecer aos restantes elementos da família esse teste para verificar se há elementos com o mesmo defeito genético. As doenças hereditárias, mesmo o cancro, podem estar silenciosas durante muito tempo. Os que têm a mutação têm que entrar num programa de acompanhamento para identificação precoce do cancro, para remoção do órgão afetado, com isso vindo a salvar aquela vida. Quem não a tem pode fazer uma vida normal, liberto do pânico de vir a desenvolver cancro.

Acho que, muitas vezes, as pessoas pensam que os patologistas só fazem autópsias. E infelizmente para a Patologia, fazemos cada vez menos.

Quais as concepções mais erradas que as pessoas têm acerca daquilo que faz?
Acho que, muitas vezes, as pessoas pensam que os patologistas só fazem autópsias. E infelizmente para a Patologia, fazemos cada vez menos. Um dos grande problemas da Medicina de hoje, é a diminuição drástica das autópsias, ao longo do tempo. Nós, patologistas, só fazemos autópsias clínicas, solicitadas pelo clínico e autorizadas por um familiar direto. Num caso de morte súbita, por exemplo, será uma autópsia do foro médico legal, tal como as mortes violentas por acidente ou por agressão. A nossa atividade é mesmo de diagnóstico clínico para melhor esclarecimento da doença das pessoas. Não tem nada a ver com a Medicina Legal.

A maior parte das autópsias que fazemos dizem respeito a autópsias de fetos ou pediátricas, porque é um grupo em que os pediatras têm muita noção da responsabilidade que é esclarecer cabalmente a causa de morte de uma criança ou de um feto, porque só assim podem ajudar a família a prevenir que situações do mesmo tipo voltem a acontecer. Hoje há muitos meios de diagnósticos complementares e muitos métodos de imagem e exames séricos feitos no sangue dos doentes, mas é incrível a quantidade de coisas que ainda não se fazem. Participamos uma vez por mês em teleconferências com o Brasil, porque temos tão poucas autópsias em Portugal e na Europa em geral, que sentimos necessidade de discutir casos de autópsia onde se aborda toda a patologia de um doente – é importantíssimo determinar o que causou a morte, mas há um conjunto de outras patologia que nunca foram valorizadas porque nunca foram alvo de intervenção clínica recente, mas que são uma fonte de aprendizagem inesgotável. Há mesmo quem afirme que os hospitais que têm maior índice de autópsias são aqueles que apresentam também o maiores níveis de auditoria clínica, o que revela a preocupação de se certificar que os diagnósticos feitos em vida correspondem às doenças verificadas durante o ato necrópsico.

Se tiver um problema de pele, não vai a um urologista; provavelmente, gostaria que fosse um patologista especializado em pele que observasse a amostra para um diagnóstico correto. Mas, pelos vistos, isso não é um entendimento tão consolidado quando o desejável.

Quando da sua distinção, afirmou que esperava que ela também servisse para que olhássemos para a classe médica num momento crítico e para o problema dos recursos humanos. Desde então, tem assistido a alterações mais positivas?
No público, sentiram-se alterações pontuais: as pessoas contactam-nos diretamente, pedem ajuda. Gosto muito de ajudar, é das coisas mais gratificantes. Relativamente às limitações de recursos humanos e infraestruturas, o panorama está muito complicado e a atingir o risco de inviabilização de algumas estruturas. Com a profundidade dos conhecimentos atuais, ninguém consciente pode achar que um patologista pode fazer diagnóstico em todas as áreas ou estar sozinho onde quer que esteja. A patologia configura uma atividade que exige diferenciação: se tiver um problema de pele, não vai a um urologista; provavelmente gostaria que fosse um patologista especializado em pele que observasse a amostra para um diagnóstico correto. Mas, pelos vistos, isso não é um entendimento tão consolidado quando o desejável e leva a uma redução dos recursos humanos que dificulta e isso pode ter consequências muito sérias. Se tiver menos pessoas, e menos diferenciadas, a fazer diagnósticos sobre matérias em que não têm conhecimento suficiente, nem tempo para o preparar porque estão completamente soterrados de trabalho, corremos o risco de o diagnóstico não ser tão preciso.

A minha visão é a de que a anatomia patológica precisa de ser reforçada, porque vivemos uma época em que o papel dos patologistas é importantíssimo no conhecimento científico das doenças. Todos os dias, os clínicos nos pedem a procura de biomarcadores e precisamos de recursos humanos para satisfazer as exigências clínicas. A restrição de recursos limita a participação em consultas multidisciplinares, acarreta atrasos nas respostas, tem implicações nos tempos de internamento. O meu entendimento é que devemos identificar os locais onde existem condições, maximizar as condições de trabalho e estimulá-los a fazerem diagnóstico em anatomia patológica para instituições menores e distantes, onde não haja condições.

 Embora retire muita gratificação da minha atividade profissional nas suas diversas dimensões, não deixo de dar prioridade à família, aos filhos, netos, pais.

Com tantas responsabilidades e estando presente em tantas frentes, quantas horas tem o seu dia de trabalho? Como consegue conciliar tantas atividades?
Sobram-me poucas para poder dormir realmente e algumas noites são muito curtas, mas tento vingar-me ao fim de semana. Quanto à conciliação, uma das grandes razões prende-se com o facto de conseguirmos manter um sistema em que umas áreas fortifiquem as outras, apesar de todas as limitações. Saber estabelecer prioridades é muito importante também. Embora retire muita gratificação da minha atividade profissional nas suas diversas dimensões, não deixo de dar prioridade à família, aos filhos, netos, pais. Para poder respeitar essas prioridades, às vezes acaba por existir algum “roubo” à parte pessoal. Mas tenho alguma resistência, se calhar superior à habitual, mas exagero.

Como se consegue atrair jovem talento na sua área e que conselhos daria a uma jovem que se interesse pela anatomia patológica?
Para mim, esta é uma área muito atraente. Como os doentes não estão à minha espera lá fora, isso permite-me fazer algumas tarefas fora do horário convencional. Saio frequentemente do hospital às 22 horas e não é pela pressão de serviços de urgência. Tenho liberdade de ação e isso foi muito atraente para mim na Anatomia Patológica. O grande problema da atração desta especialidade, no que respeita à atração, é o facto de ser muito exigente. A formação de base exige conhecimento em diversas áreas, muito abrangente; a aprendizagem é muito laboriosa e contínua. Outro problema tem a ver com o facto de não fazermos serviço de urgência ou horário depois das 20 horas, por não termos contacto direto com o doente, e por isso salário é menor para os jovens que vêm para esta especialidade do que para aqueles que escolhem especialidades clínicas com esses complementos.

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