Carla Rebelo é diretora-geral do Adecco Group em Portugal
O século passado foi uma época imunológica, um período em que se traçou uma clara distinção entre o espaço interior do exterior, amigo e inimigo, próprio e estranho. Todo o mundo imunológico se definia em função da ideia de ataque e defesa. Tudo o que era estranho seria eliminado, o objeto da defesa imunológica é a estranheza enquanto tal.
Segundo Byung – Chul Han qualquer época tem doenças específicas. A época bacteriana terminou com a descoberta dos antibióticos, a viral foi ultrapassada pelas técnicas imunológicas e o início do século XXI, do ponto de vista patológico, será sobretudo de violência neuronal provocado pela depressão, as perturbações de atenção devidas a hiperatividade e à síndrome do desgaste profissional.
No seu livro “A sociedade do cansaço”, publicado muito antes de qualquer nova pandemia, em 2014, o autor descreve várias violências que emergem na sociedade. Entre elas, a violência da positividade em que como elabora, “quem vive do idêntico morre pelo idêntico”, a violência do consenso, sendo esta violência viral, na medida em que não opera de modo frontal, mas antes por meio de contágio, da reação em cadeia e através de um processo de eliminação de toda e qualquer imunidade.
O excesso de positividade manifesta-se igualmente sob a forma de um excesso de estímulos, informações e impulsos, transformando radicalmente a estrutura e a economia da atenção. Vivemos de facto uma era de aumento de défice de atenção ou simplesmente um excesso de divisão da atenção?
Sabendo que o dom da escuta assenta precisamente na capacidade de prestar uma atenção profunda e contemplativa (não dividida), esta capacidade fica vedada ao ego hiperativo dos nossos dias. Só a atenção profunda refreia a inconstância dos olhos. Uma das correções que urge, pois, fazer ao carácter da humanidade é desenvolver o seu lado contemplativo. Uma reforma do sistema educativo e de preparação para o mercado de trabalho não pode deixar de integrar este aspeto.
Desta obra de reflexão decorre que, o estado de cansaço é causado pelo excesso de positividade. O cansaço da sociedade de produção é um cansaço individual, um cansaço que separa e que isola. No entanto, o paradoxo é que a redução do EU possibilita um aumento de Mundo.
O cansaço habilita o homem para uma serenidade especial, para um não fazer sereno. O cansaço clarividente que permite o acesso a um tipo completamente diferente de atenção, o acesso àquelas formas lentas e morosas que se subtraem à hiperatenção fugaz e acelerada.
Tudo se torna espanto na serenidade do cansaço. O cansaço profundo afrouxa o espartilho da identidade. A rígida demarcação que separa umas coisas das outras parece suprimida. O cansaço desarma. Por isso, prefiro olhar para o fenómeno como a “sabedoria do cansaço” pelo tanto que nos permite descobrir quando o desgaste é coletivo.
Façamos desta época um momento de transformação que nos mude a perspetiva e nos permita a reconstrução como humanos numa versão avançada.
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