Pandemia. O que fazer? Estamos sós: ninguém nos pode aconselhar sobre o que fazer em situações idênticas porque ninguém passou ainda por isto.
Sem manual de instruções nem mapa, ir gerindo os tempos atuais não é fácil: estamos literalmente a fazer navegação à vista sendo que a mais pequena distração, milésimos de segundo para a frente ou milésimos de milímetro para o lado e tudo pode começar a correr mesmo muito mal.
Por isso é preciso concentração e foco para não perdermos o nosso objetivo de vista.
Sobreviver.
Sobreviver com qualidade de vida.
Sobreviver com qualidade de vida e capacidade de amparar outros.
Sobreviver com qualidade de vida e capacidade de amparar outros, enquanto continuamos a desempenhar a nossa profissão.
Mas, estarmos sós não é estarmos sozinhas, porque confinamento não precisa de ser sinónimo de isolamento, porque a distância física não significa necessariamente solidão.
A batalha diária que travamos é dura, mas a maioria continua a ter uma casa para onde voltar ao fim do dia, ou onde ficar a trabalhar em segurança. Continuamos a ter água e eletricidade, conforto e a tranquilidade necessária para pararmos para pensar como queremos que a vida passe a ser depois de atravessarmos o olho da tempestade.
E no meio de tudo isto fala-se da solidão dos idosos nos lares, da importância do convívio para as crianças, da saúde mental nos adultos, e vamos criando grupos e estereótipos, esquecendo-nos de um detalhe: transversalmente em toda a sociedade, seja como idosas, crianças ou adultas, existe o fator género e temos….mulheres.
Sendo que estas representam o grosso da força de trabalho, estão presentes em todas as profissões de forma extremamente representativa, inclusivamente nos serviços essenciais: médicas, enfermeiras, bombeiras, auxiliares de saúde, farmacêuticas, psicólogas, que muitas vezes acumulam esta profissão com a ocupação da maternidade, criando um desafio enorme de conciliação e tudo se complica ainda mais no momento que atravessamos.
Sobreviver.
Ou professoras ou educadoras que entre períodos de isolamento profilático sucessivos e alternados, vão dando aulas presenciais, e depois aulas on-line, enquanto procuram articular o dar aulas e corrigir testes e criar trabalhos, com as preocupações decorrentes do apoio a este ou aquele aluno cuja situação tem contornos complexos, agravados pela atual conjuntura e tudo se complica ainda mais no momento que atravessamos.
Sobreviver com qualidade de vida.
Ou trabalhadoras da indústria ou do comércio a retalho que mantêm a obrigação de diariamente se deslocarem para os seus locais físicos de trabalho, procurando cumprir novos horários estabelecidos com as formas de para ali se deslocarem, expostas a risco acrescido de contágio, depois de terem inventado forma de encaixarem no seu novo turno como deixar os filhos com alguém que os cuide, ou apoiarem, ainda, um familiar de mais idade e tudo se complica ainda mais no momento que atravessamos.
Sobreviver com qualidade de vida e capacidade de amparar outros.
Ou qualquer profissional a trabalhar remotamente que enquanto entrega relatórios e executa o seu trabalho, arranja forma de ajudar o filho mais novo a ligar o computador para as aulas on-line, ou consegue despachar as reuniões da parte da manhã, para poder emprestar o seu computador para outro filho assistir às aulas à tarde porque o irmão ainda não terminou e na pausa de almoço corre, de máscara, até à mercearia para comprar o que precisa para preparar, ainda, já um pouco cansada, o almoço de todos e tudo se complica ainda mais no momento que atravessamos.
Sobreviver com qualidade de vida e capacidade de amparar outros, enquanto continuamos a desempenhar a nossa profissão.
Sem ser fundamentalista, sou feminista, sob a perspetiva de reivindicar para as mulheres os mesmos direitos, deveres e oportunidades que para os homens. Na verdade, que para qualquer ser humano, porque nesta área o género deveria ser irrelevante ou inexistente.
Infelizmente, da forma como a nossa sociedade (à escala mundial) está estruturada, há ainda uma parcela de trabalho imaterial (apoio aos filhos e à família, tarefas domésticas, etc.) que maioritariamente recai sobre as mulheres.
Numa fase pré pandemia, nalguns países do mundo ocidental, davam-se passos importantes no sentido de atenuar tanto quanto possível esta situação, mas de repente, tudo parece ter ficado em suspenso. E sem que tenha propriamente havido regressão, o facto é que o tradicional papel de “cuidadora” tantas vezes atribuído a ou assumido pelas mulheres, acaba por forçosamente vir à superfície em momentos como este, pesando como uma carga adicional que puxa em sentido oposto àquele para onde nos pretendemos deslocar.
Por isso, é imperativo conseguir conciliar todas estas situações como as bolas que o malabarista atira ao ar sem poder deixar cair nenhuma: porque é tão importante assegurar que uma mulher pode ser comandante dos bombeiros, como garantir que não é por sobrecarga das suas situações familiares em momentos como este, que posteriormente, deixar de ser uma profissional capaz de dar resposta ombro a ombro com qualquer outro colega, “apenas” porque, por exemplo, uma estrutura inexistente de creches a funcionar em horário alargado ou contínuo, a inviabiliza de exercer a sua profissão.
A Covid não pode, assim, ser desculpa para as mulheres perderem igualdade de oportunidades, mas é seguramente um desafio acrescido quando pensamos nos cenários descritos.
Se quisermos ser otimistas ocorre-nos pensar que cada obstáculo é um desafio a superar e que é em momentos cruciais como este que muitas barreiras desaparecem. A violência do impacto social causado é tão forte que o “dia depois” é obrigatoriamente diferente, ou porque as protagonistas da história simplesmente não aceitam voltar ao anteriormente.
No entanto, se quisermos ser realistas, bem sabemos que no processo de desaparecem barreiras, o esforço envolvido é tão pesado que não são muitas as que o conseguem suportar. No dia-a-dia, as ideologias são importantes, mas não ajudam, nem amparam, nem apoiam quem já está em esforço.
Por isso é importante repensar como nos queremos de facto comportar todos, homens e mulheres, depois de tudo isto passar. Quando nos encontrarmos do lado de lá do medo vai mesmo continuar a valer a pena este conceito de “nós” e “eles”? Não seria já tempo de união e em conjunto pensarmos como conseguimos (re)construir uma sociedade melhor, mais justa, mais razoável quanto ao esforço e investimento da contribuição que pede a cada um/a?
Não será tempo de lutar pela igualdade de oportunidades de forma diferente? Assumir o que queremos e reivindicá-lo como nosso, demonstrando que não haverá cedências ao que não é justo, que não haverá permissibilidade para o que não é equilibrado e que não existirá medo?
Viver.
Viver com qualidade.
Viver com qualidade e possibilidade de amparar outros.
Viver com qualidade e possibilidade de amparar outros, enquanto construímos uma carreira de sucesso e uma sociedade justa.