O mundo da hotelaria fascina Lúcia Cunha desde criança, quando observava a movimentação de hóspedes no hotel em frente ao restaurante onde a mãe trabalhava, na sua Viseu natal. Quando chegou a altura de decidir a formação universitária, a escolha recaiu naturalmente no curso de Gestão Hoteleira na Universidade de Coimbra.
Hoje, aos 40 anos, tem um invejável currículo construído ao longo de 18 anos de carreira. Começou como assistente de direção do spa do Ritz Four Seasons de Lisboa mas, dois anos mais tarde, já se candidatava a dirigir o spa do Marriott Praia D’El Rey. Aos que diziam que era jovem demais para gerir estes espaços respondia com a confiança de quem nunca achou que a idade fosse necessariamente certificado de competência. Desde então, em Portugal, foi a responsável pelos spas do Ritz Carlton Penha Longa, dos hotéis Vilalara, Lake Resort e Tróia Design, da Amorim Turismo.
Os convites para trabalhar no estrangeiro não demoraram: foi diretora de Spa e Fitness no Six Senses de Barcelona, passou quatro anos na China — onde arrecadou o prémio de melhor spa chinês com seu trabalho no Ritz Carlton Shangai — e esteve à frente do Spa e Club des Berges do Four Seasons de Genebra. Regressou a Portugal há pouco mais de ano para dirigir o cluster Spa & Wellness no grupo Tivoli Hotels and Resorts, por causa das saudades, mas também porque este é o momento de “dar ao seu país aquilo que sabe fazer de melhor”: receber bem e transformar problemas em oportunidades.
Como é que se apaixonou pela hotelaria?
A minha mãe era chefe de cozinha e trabalhava imenso. Eu até reclamava um bocadinho porque ela só folgava ao domingo, mas às vezes ia lá ajudá-la e ficou-me o ‘bichinho’ dos clientes, mais até numa vertente de restauração. Em frente do restaurante também ficava um hotel e eu achava aquilo tudo muito interessante.
Gostou do curso, direcionou-a para aquilo que queria?
Sim. Podíamos escolher entre as agências de viagens e a hotelaria e já na altura achava que as agências de viagens iriam ser uma coisa do passado. E eu adoro hotéis; todos os dias são diferentes, logo os desafios também. Gostei muito do curso, preparou-me bem, mas, honestamente, não há nada como o trabalho.
Como é que do trabalho de front office do hotel passou para o spa?
Estive um ano no Hotel do Chiado num estágio remunerado. Nessa altura, o meu chefe de receção foi para o Ritz Four Seasons e chamou-me para uma entrevista. No final, quando o diretor do hotel me deu as boas-vindas à frente de toda a equipa, senti-me como um jogador de futebol que acabou de ser contratado. Era a primeira vez que me ia despedir e fiquei tão nervosa que não consegui dormir nessa noite. Ainda passei mais de 2 anos a fazer front office — concièrge, PBX, reservas… Fazíamos meio ano só de ambientação e formação antes sequer de irmos para a receção. Foi das melhores escolas que já tive, adorei trabalhar lá. Talvez por isso ainda hoje me considere a mim própria como uma hoteleira, acima de tudo.
Quando abriram o spa do Ritz, uma amiga incentivou-me a candidatar-me a assistente. Gostei muito e comecei a trabalhar na abertura do spa meio ano antes da inauguração. O meu diretor na receção dizia-me: ‘Ó Lúcia, não vás! Vais para lá dobrar toalhinhas…’
“O diretor da Six Senses disse-me que [aos 26 anos] que eu era muito jovem para dirigir um spa; toda a equipa tinha muito mais experiência e idade do que eu. Perguntou-me como iria lidar com esse desafio. Respondi-lhe: ‘Com respeito. Tenho muito para aprender com eles e, de certeza, que também tenho algo para ensinar’.”
O seu primeiro cargo de spa manager foi no Marriott Praia D’El Rey. Como chegou até lá?
Um colega que estava a trabalhar no Marriott disse-me que procuravam um spa manager e que, se calhar, estava na altura de eu dar um passo em frente na carreira. Enviei o currículo, fiz a entrevista e fiquei. Saí de Lisboa e da minha zona de conforto. Fui spa manager pela primeira vez aos 25.
Em 2005 o diretor da área de spas da Six Senses veio a Portugal e decidi ir falar com ele, quando soube que procuravam uma diretora para o spa do Penha Longa Hotel. Eu tinha acabado de fazer 26 anos, mas acreditava que era capaz. Disse-me que eu era muito jovem para dirigir um spa, que toda a equipa tinha muito mais experiência e idade do que eu. Perguntou-me como ia lidar eu com esse desafio. Respondi-lhe: ‘Com respeito. Tenho muito para aprender com eles e, de certeza, que também tenho algo para lhes ensinar’.” Assim, depois de um ano no Marriott Praia D’El Rey fui trabalhar para o spa Six Senses no Penha Longa Hotel — mas não foi assim tão fácil consegui-lo.
Fez ainda uma formação específica em gestão de spas, na Tailândia…
Sim, fiz duas formações no Chiva Som Academy — spa operations & treatments e gestão de spa — enquanto ainda trabalhava como assistente de direção do spa do Ritz Four Seasons de Lisboa. Penso que vi o anúncio numa revista especializada e achei que devia investir nisso. Foi um desafio grande, mas a minha família, particularmente a minha mãe, sempre me apoiou nas minhas decisões. Foi um investimento financeiro grande; fiquei lá cerca de um mês suportando todas as despesas e precisei de pedir um empréstimo, mas foi um ótimo investimento em mim própria. Creio que devo ter sido das primeiras portuguesas a fazer o curso, mas nos três anos seguintes começaram a ir mais portugueses.
Também deu aulas de gestão de spas na Universidade do Algarve. Como foi essa experiência?
Já estava a trabalhar no spa Penha Longa, em 2006, quando soube que existia esse curso. Decidi propor-me para dar aulas. Saía do hotel à sexta-feira depois de almoço, para começar a dar aulas por volta das 18 horas no Algarve. Adoro dar aulas! É uma experiência que gostaria de retomar em Portugal. Não falo só de teoria, dou os exemplos concretos da minha experiência e os alunos gostavam de os ouvir e vinham ter comigo no final das aulas para saberem mais. Na altura já viajava para a Ásia e eles tinham muita curiosidade. Começava sempre as aulas com uma parte mais interessante, com vídeos que tinha trazido da Tailândia ou artigos de revistas, para motivar os alunos a chegar a horas. No segundo ano, já me puseram como coordenadora científica do curso, que redefini. Mas depois fui trabalhar para Barcelona, onde estive dois anos, e tive de deixar de dar aulas.
“Na China tinha uma professora privada de mandarim e aulas depois do trabalho, três vezes por semana. Foi muito difícil; só a partir do segundo ano é que a língua começou a fazer sentido.”
Trabalhou em Barcelona, na China, na Suíça. Que diferenças encontrou nesses três países?
Adorava trabalhar no Six Senses do Penha Longa, a minha equipa, o local maravilhoso, e aqui em Portugal estava tudo a correr bem, mas em Barcelona não estava. Por isso deram-me a missão de ir para lá e disseram-me “isto depende muito de ti”. Comecei a corrigir muitas coisas, a ligar mais o spa e o hotel e as coisas começaram a fluir. O hotel tinha 500 quartos e todos os dias via gente famosa, de músicos como a Beyoncé e o Moby a atores de Hollywood. Correu muito bem, mas ao fim de dois anos cumpri o prometido à minha família e voltei para Portugal. Já por cá e a trabalhar na Amorim Turismo, fui contactada pelo Ritz Carlton na pessoa do Victor Clavell, um grande senhor da hotelaria, que me desafiou porque estavam a crescer muito na Ásia. Esperaram três meses por mim. Sinceramente, quando me falaram em Ásia nunca pensei que ia parar a Xangai, mas era o hotel flagship, onde eu era mais precisa. A partir de lá viajaria para outros hotéis asiáticos da cadeia, onde ajudava a fazer as aberturas de spas, dando formação às equipas. Acabei por ficar 4 anos na China; falo mandarim. A equipa foi sempre muito forte, muito coesa, funcionámos lindamente. A nível cultural, a China é um mundo totalmente diferente: os clientes não tinham nada a ver com os de Barcelona — eram maioritariamente chineses, muitas empresas. Durante esse período ganhámos o melhor spa da China.
Precisou de investigar muito sobre a cultura chinesa?
Sim, claro. É preciso ter muita atenção a pormenores de protocolo, como a forma correta de dar um cartão de visita — sempre com as duas mãos, olhando atentamente para mostrar respeito, etc. Tinha uma professora privada de mandarim e tinha aulas depois do trabalho, três vezes por semana. Foi muito difícil; só a partir do segundo ano é que a língua começou a fazer sentido. Lembro-me do momento exato: ia dentro de um táxi e, de repente, percebi que o motorista ia a falar-me da filha. A minha equipa no hotel tinha muito orgulho em dizer aos clientes que a chefe falava mandarim. Eles valorizam muito isso porque não há assim tantos ocidentais a aprender a língua.
Foi muito difícil para si, em termos pessoais?
Foi e por isso acabei por me vir embora. É muito longe! Ao fim de dois anos já sentia muito esse peso, mas acabei por ficar por mais dois e fiz mais aberturas de spas em Macau, Bali, Okinawa. É uma das coisas de que tenho mais saudades, dessa emoção e energia sem comparação. Requer muito trabalho, mas íamos de coração cheio, conhecendo novas equipas e ensinando-lhes os nossos modos de funcionamento.
Quando quis voltar para a Europa, soube que estavam a precisar de um diretor de spa para o Four Seasons em Genebra. Numa segunda-feira disse-lhes que estava interessada, entrevistaram-me a uma quarta e na sexta já estava a assinar o contrato. Na Suíça a minha equipa era quase toda portuguesa, com muitas terapeutas e osteopatas. O hotel tinha muitos clientes árabes. Estive lá durante um ano até o Rui de Sousa, que tinha sido meu ex-diretor do Ritz Four Seasons de Lisboa, me enviar um email a perguntar se estava interessada em dirigir o spa do Tivoli, que ia abrir. Primeiro disse-lhe que não estava disponível, mas pouco tempo depois vim de férias a Portugal e quando regressei à Suíça já não tinha vontade de lá ficar. Decidi voltar a falar com ele e aceitar a proposta.
“Somos afáveis, boas pessoas; toda a gente gosta dos portugueses lá fora porque somos bons trabalhadores, arregaçamos as mangas, falamos imensas línguas.”
Quando regressou a Portugal, depois de cinco anos e meio a trabalhar fora, encontrou um país diferente? O setor hoteleiro tinha mudado?
Notei que os portugueses estavam mais positivos, que havia muita coisa a abrir, o turismo estava a florescer. Senti que estava a acontecer tanta coisa no meu país e que era a altura de estar a viver cá este bom momento, ajudando com aquilo que sei fazer melhor. Tomei a decisão certa em regressar, não me arrependo minimamente. Dou valor a coisas simples; ver um pôr do sol na Graça, para mim, vale milhões. Adoro esta cidade, já viajei muito e nunca vi uma luz como esta. Além disso, somos afáveis, boas pessoas; toda a gente gosta dos portugueses lá fora porque somos bons trabalhadores, arregaçamos as mangas, falamos imensas línguas — eu falo sete: português, inglês, francês, espanhol, alemão, mandarim, italiano. A nível da indústria hoteleira, noto que também estamos a melhorar muito, mas isso também acontece porque começamos a ter clientes mais exigentes, que viajam muito. Parece que toda a gente nos descobriu de repente e estamos nas bocas do mundo.
Como é que se põe um spa a dar lucro?
Temos que escolher muito bem a equipa — gosto de escolher pessoas com uma boa energia e boas mãos, porque mais de 70% dos tratamentos em spa são massagens — e ter bons produtos, de marcas que dêem boa formação para trabalhar com eles. Quando trabalhei na Amorim Turismo, o administrador tinha orgulho em dizer que o spa tinha mais de 70 tratamentos. Para mim, o máximo que deve ter é cerca de 30. Cheguei a Tróia e ao Algarve e percebi que desses 70, a equipa não sabia explicar ou fazer a maioria. O que está no menu tem de ser fazível. Por isso “limpei” o que estava a mais e ao final de meio ano já estava tudo a correr sobre rodas. Desde que regressei em Portugal não tenho feito tanta consultoria, mas gosto desse trabalho; chegar a um spa e ver o que pode ser melhorado, o que pode ser feito na gestão. A nível financeiro, isso pode representar muito para a empresa hoteleira.
“Reparo muito se as pessoas olham os outros nos olhos e se sorriem. Não é a primeira vez que contrato alguém cujo inglês nem é muito famoso, mas que é uma pessoa super agradável.”
Que outras características procura nas pessoas que contrata?
Reparo muito se as pessoas olham os outros nos olhos e se sorriem. Não é a primeira vez que contrato alguém cujo inglês nem é muito famoso, mas que é uma pessoa super agradável. O sorriso é uma linguagem universal. Tenho muito orgulho que me digam que as minhas equipas são sempre muito mimosas. Invisto muito tempo nas pessoas que trabalham comigo. Testo os terapeutas todos primeiro, as mãos deles.
Quais os momentos de que mais se orgulha na sua carreira?
Ter ganho o prémio de melhor spa da China, com o Ritz Carlton de Shangai. Sobretudo por ser longe e pelo esforço que implicou. Sempre disse à minha equipa que íamos ganhar, desde que cheguei. Custou, foi só ao terceiro ano, mas conseguimos. Sou de ideias fixas.
E qual o momento mais difícil?
Também foi na China, quando adoeci e tive que ser operada. Não disse a ninguém na família, que estava em Portugal — é muito longe, para que ia estar a preocupá-los? — mas nestas situações é bom ter o apoio e carinho da família. Foi aí que decidi vir-me embora.
O que o motiva mais na sua profissão, o que gosta mais?
Surpreender os clientes é que o me faz vibrar. Se pudesse vivia só disso. E quando é a minha equipa que o faz e só depois o venho a saber, fico tão feliz! Adoro que me venham falar bem deles; só brilho quando eles brilham também.
Quais são os skills necessários para ser boa naquilo que faz?
Ser muito humana, porque em spa só lidamos com pessoas, equipa e clientes. Depois, é importante ser coerente, fazermos aquilo que dissermos. Por isso, só falo das coisas quando tenho certezas. Temos que ser muito criativos, pensando em novos tratamentos e promoções, ir acompanhando o negócio diariamente — passo muito tempo na receção a guiar quem lá está. O spa é como o próprio hotel, em termos de gestão de tempo: não lhe posso vender a si a noite de ontem. Por isso, se estamos a fazer marcações, vamos tentar vender o mais cedo possível para, no fim do dia, ainda termos tempo de vender mais.
“Para quem quer aprender, o melhor é ir trabalhar com os melhores. Sempre investi nisso na minha carreira para poder aprender com as suas experiências.”
Que conselho diria a uma jovem que está a começar a sua carreira no setor da hotelaria?
Trabalhar comigo! (risos) Para quem quer aprender, o melhor é ir trabalhar com os melhores. Sempre investi nisso na minha carreira para poder aprender com as suas experiências. Tenho muito para ensinar e gosto de ensinar.
Qual é o segredo do seu sucesso?
Dedicação. E o facto de gostar de trabalhar com pessoas, saber lidar em elas e lê-las bem. Para mim, os problemas são oportunidades. Se o cliente não tivesse aquele problema eu não poderia analisá-lo para tentar encontrar uma solução. É tudo uma questão de moldura mental: gosto de os resolver porque não bloqueio. E gosto de parcerias onde todos saem a ganhar, com finais felizes.