Era um pequeno negócio de venda de vinhos a granel. Em menos de 20 anos, Leonor Freitas transformou a empresa agrícola dos pais, numa das maiores vitivinícolas da península de Setúbal. Com uma capacidade inata para aprender e empreender, a empresária, que aos 64 anos diz ainda ter muitas ideias por concretizar, foi fazendo crescer a sua casa, procurando novos clientes e novos mercados, ao mesmo tempo que ia investindo, de forma sustentada, em vinhas, instalações e equipamentos, e colaboradores.
Hoje, está um pouco por todo o lado, em Portugal e em várias dezenas de países. Nem os problemas de pagamentos que teve no mercado de Angola, a fizeram voltar a cara à luta. Já está, com a filha, Joana, a encontrar alternativas para escoar os seus vinhos, em países como Moçambique, Cazaquistão, Coreia do Sul ou Singapura. Para o Luxemburgo, vende para uma cadeia de distribuição, proprietária de 28 estabelecimentos, mais vinho do que aquele que a população do país pode absorver, pois os clientes de países limítrofes abastecem-se nessas lojas.
Leonor Freitas está à frente de um negócio de vinhos que já foi várias vezes gerido por mãos femininas.
Tem sido nos últimos dez anos que o crescimento da Casa Ermelinda Freitas se intensificou, desde que a sua atual proprietária se dedicou em exclusivo ao negócio. Hoje, a empresa produz 10 milhões de litros de vinho, 40% dos quais para exportação. Investimentos recentes nas instalações cumpriram o objetivo de facilitar o processo logístico no seio da empresa, contribuindo para melhorar a sua resposta às solicitações do mercado.
Problemas burocráticos, ligados com o plano diretor municipal de Palmela, impediram Leonor Freitas de construir a nova adega junto das primeiras instalações, de forma a ligar todo o processo, desde a vinificação, ao estágio, engarrafamento, armazenamento e expedição. Só no início de 2016, após vários anos de esforços para resolver o problema, é que as instalações foram inauguradas, com a presença do anterior Presidente da República, Cavaco Silva. O custo total das duas fases de construção foi de 8 milhões de euros.
Gerações de gestão feminina
Leonor Freitas é a quarta geração de mulheres à frente dos destinos da empresa agrícola fundada em 1920 por Leonilde Assunção, na freguesia de Fernão Pó, concelho de Palmela. A gestão feminina manteve-se pelas mãos de Germana Freitas, a avó da presente proprietária, e depois pela mãe, Ermelinda, que Leonor homenageou no nome atual da empresa. Joana, a responsável pelos mercados internacionais, perspetiva-se já como a sucessora desta longa casta de mulheres de fibra aos comandos de um negócio de vinho.
Durante mais de 20 anos Leonor Freitas trabalhou no Ministério da Saúde. A morte inesperada do pai fê-la regressar à terra.
Esta forma de gerir feminina sente-se também na forma afetiva como Leonor trata de tudo o que faz. A proprietária e gestora da Casa Ermelinda Freitas nasceu e cresceu em Fernão Pó, onde fez a escola primária. Prosseguiu os estudos em colégios internos, pois os pais queriam que tivesse uma vida melhor, fora do mundo rural. Só vinha a casa aos fins de semana e nas férias.
Tirou o curso de Serviço Social, no Instituto Superior de Serviço Social, em Lisboa, e trabalhou durante mais de 20 anos para o Ministério da Saúde, em Setúbal, onde se dedicou, em particular, à prevenção do alcoolismo e de outras toxicodependências.
Não pensava regressar à terra. Mas a morte inesperada do pai, no final da década de 90, e o apelo da mãe, que se sentia incapaz de levar o negócio no bom caminho, trouxeram-na de volta a Fernão Pó, quase 20 anos após ter começado a trabalhar para o Estado. A ligação à terra fez o resto. “É, por isso, que estou aqui e que existe, hoje, a Casa Ermelinda Freitas”, explica a empresária.
No início, há 18 anos, eram apenas três pessoas, incluindo Leonor Freitas, numa casa agrícola com 60 hectares de vinha. “A maior parte estava plantada com a casta tinta tradicional da região, a Castelão. Além disso, havia cepas brancas Fernão Pires, que apenas representavam 5% do total”, recorda. Naquela altura, a adega era, como muitas outras em Portugal, tradicional, estruturada essencialmente para a vinificação de tintos.
A falta de preparação não a impediu de abraçar o projeto. Aos poucos foi investindo em mais vinhas e hoje tem 440 hectares.
Apesar de não se sentir preparada para se envolver no projeto, abraçou-o “muito motivada”. Mas acumulou prudentemente a gestão da empresa com o seu trabalho no Estado, continuando a vender vinhos a granel, tal como o tinham feito os seus antecessores.
Estimulada pela sua capacidade inata de empreender, começou por alargar o seu património vitícola. As primeiras aquisições foram feitas, por motivos afetivos, a parentes. “Assim fui juntando, de novo, a herança partilhada da minha avó”, explica Leonor Freitas. Mais tarde adquiriu mais vinhas porque precisava, para assegurar a produção que desse resposta às crescentes solicitações do mercado. Hoje, o património vitícola que possui estende-se por cerca de 440 hectares, nas proximidades da adega. As duas castas iniciais passaram a ser 29, apesar do Castelão ainda se manter como principal variedade da empresa. “Gosto de ser a Senhora do Castelão”, explica.
A criação de marcas
Vendia produtos de qualidade, certificados para Indicação de Proveniência Regional (IPR) ou Denominação de Origem Protegida (DOP) como vinhos reserva pela Câmara de Provadores da Comissão Vitivinícola Regional de Setúbal. Escoava estes vinhos a granel quando visitou, pela primeira vez, a Vinexpo, em Bordéus, a sua primeira feira internacional. “Foi um marco na minha vida”, diz Leonor Freitas, por ter sido o seu primeiro contacto com o universo dos vinhos engarrafados do mercado global. Sentiu “que tratavam os vinhos como joias” e ficou fascinada com o cuidado que os produtores tinham com a imagem das garrafas.
Quando visitou vários châteaux de renome da região bordalesa, em conjunto com Jaime Quendera, o enólogo da empresa que conheceu nessa viagem, deu-se conta de que “estava a desperdiçar património”. As áreas de vinha eram, em média, muito inferiores à sua, mas estavam muito mais valorizadas, dado o prestígio das suas marcas. “Tinha de passar a vender vinho engarrafado e, para o fazer, tinha também de investir em instalações e equipamentos para produzir ainda com mais qualidade”, lembra Leonor Freitas.
Do vinho a granel deu o salto para os vinhos em bag in box nos ano 90. Fê-lo de forma envergonhada mas a opção revelou-se certeira.
A primeira marca própria, Terras de Pó, foi lançada ainda na década de 90. Mas foi apenas quando o seu principal comprador de vinhos a granel não adquiriu a sua produção, como habitual, em 2002, que decidiu lançar-se exclusivamente na produção e comercialização de vinhos engarrafados.
“Foi um grande susto porque dependia da venda a granel.” Mas dois dias depois de receber essa informação, decidiu criar mais marcas e vender vinhos em bag in box. “Fi-lo de forma envergonhada, pois a imagem deste tipo de embalagens, na altura, não se coadunava com vinhos de qualidade.” A opção revelar-se-ia acertada, pois a comercialização de vinhos de qualidade, dentro de bag in box, foi a principal razão do sucesso inicial da empresa, dentro e fora do país.
Atualmente, 4 milhões de litros de vinho, que representam cerca de 40% da sua produção, são vendidos neste tipo de embalagens, principalmente de 5 litros, o formato mais apreciado pelo mercado. Foi tão bem aceite que começaram a aparecer na empresa pequenos revendedores interessados em comercializá-lo em diversas zonas do país. Hoje, são mais de 20 em território nacional, diz Leonor Freitas. Para eles, a empresa criou a marca M. J. Freitas, vendida em restaurantes e cafés, que não se encontra na distribuição moderna. Ainda hoje é a marca mais vendida em bag in box.
A aposta em novas castas
Nas viagens ao estrangeiro, à procura de novos mercados e clientes, Leonor Freitas verificou que os consumidores internacionais não queriam vinhos da casta Castelão, mas, sim, das variedades francesas mais divulgadas, como as tintas Syrah ou Merlot.
Os vinhos que produz para quatro grandes grupos de distribuição nacionais ajudam a sustentar o negócio e permitem fazer alguns produtos de nicho.
Como queria produzir vinhos diferentes e precisava de exportar, plantou castas internacionais, mas também as portuguesas mais conhecidas no exterior, como a Touriga Nacional ou a Tinta Roriz. “É preciso mostrar, primeiro, vinhos de castas conhecidas, que funcionam como cartões de visita, para depois apresentar os nossos”, diz.
A Casa Ermelinda Freitas vende diretamente às grandes superfícies e tem uma distribuidora para todo o território nacional, a Prime Drinks.
No dealbar do novo milénio, o primeiro vinho que foi engarrafado estava ainda em barrica, após ter tido uma boa classificação na CVR Setúbal. Os supermercados Pingo Doce, que apostavam fortemente em vinhos, propuseram-lhe fazer uma marca própria para a cadeia. “Ainda hoje os vinhos Palmela Pingo Doce são produzidos por nós”, revela a empresária. Além da marca exclusiva para o Grupo Jerónimo Martins, tem outra para o Lidl, uma só para os Intermarché e, muito recentemente, outra para o Grupo Sonae.
“São vinhos competitivos, fáceis de beber, com uma boa relação qualidade/preço, bons para o dia a dia”, descreve Leonor Freitas. Ajudam a sustentar o negócio de uma adega com a dimensão atual, e permitem-lhe fazer também produtos de nicho, como o moscatel superior, os monovarietais, o Quinta da Mimosa ou o Leo d’Honor.
A Casa Ermelinda Freitas continua a comercializar diversos vinhos monocasta e a empresária quer continuar a ter o epíteto de a “Senhora do Castelão de Palmela”. Os solos arenosos onde se desenvolvem os seus vinhedos são os mais apropriados para a casta e, por isso, mantém 170 hectares desta variedade. É das mais antigas, com 70 anos, que sai, em anos de qualidade excepcional uma pequena produção do topo de gama, o Leo d’Honor.
O nome, Leo d’Honor, ou Leão de Honra, foi sugerido por um historiador a Leonor Freitas, com a explicação de que era um dos símbolos do brasão do navegador que batizou Fernão Pó, onde fica a empresa.
A CASA DOS AFETOS
A Casa de Memórias e Afectos Ermelinda Freitas fica na antiga adega da empresa. Remodelada, ainda mantém os depósitos originais, alguns equipamentos, os primeiros vinhos engarrafados e os prémios, alguns dos mais de 600 que esta empresa obteve desde que Leonor Freitas passou a dirigir os seus destinos. Mas também conta a história da família, em retractos e objectos dos antecessores, e da vida local, em objectos de uso agrícola e de casa. De destacar o espaço original onde se efectuou a destilação de aguardentes, com a respectiva caldeira e uma sala com várias balanças, pesos e medidas.
Trata-se de uma aposta mais forte de Leonor Freitas no enoturismo e na educação, já que, noutros espaços da adega, Leonor Freitas mostra o que são as rolhas de cortiça, num espaço onde tem também casca de sobreiro. Bem perto, na vinha, estão identificadas, numa parcela, todas as suas castas, para os visitantes poderem observar as diferenças. O desenvolvimento do turismo, em Lisboa, e a proximidade à capital, incentivaram Leonor Freitas a investir em instalações para receber visitantes. A ampliação da loja é a próxima obra.