Ser (super)mulher em tempos de pandemia

À crise sanitária, social e económica, soma-se uma grave crise de saúde mental a nível mundial. As mulheres são as mais afetadas. A médica psiquiatra Sónia Oliveira explica porquê.

Sónia Oliveira é médica psiquiatra.

“Ao fim do dia, podemos aguentar muito mais do que pensamos que podemos.”
Frida Kahlo (1907-1954)

 

Sou mulher, sou médica (psiquiatra) e sou mãe. Neste atual contexto de pandemia COVID-19 consigo reunir três atributos que me colocam numa posição de maior risco em termos de saúde mental. É verdade que nós mulheres aguentamos muito mais do que pensamos conseguir. A capacidade de superação faz parte da identidade feminina. Contudo ser uma super-mulher nem sempre é uma vantagem, particularmente em períodos tão duros como este que vivemos.

Cerca de 49,2% da população portuguesa relata um impacto moderado a grave a nível psicológico do surto do novo coronavírus.

Com a chegada da Pandemia, chegaram também o distanciamento físico, o confinamento, o medo de ser infectado, o desemprego, a disrupção do orçamento das famílias,   a solidão na doença e na morte, os lutos adiados e uma total incerteza em relação ao futuro. Todos tiveram que reajustar a sua vida e a cada dia reinventar-se no trabalho, na escola, em casa,  no lazer e até nos afectos. Vivemos num verdadeiro palco de “guerra” e isso traz-nos naturalmente sentimentos de medo e angústia, com um aumento do stress, da ansiedade e da tristeza. Por isso, à crise sanitária, social e económica, soma-se uma grave crise de saúde mental a nível mundial.

Humor deprimido, irritabilidade, ansiedade, níveis elevados de stress e insónia são alguns dos outcomes negativos em termos de saúde mental e que surgem como consequência de vivermos numa situação pandémica. A longo prazo o isolamento contribui também para o abuso de álcool e/ou de outras substâncias, bem como para um aumento da taxa de violência doméstica.

Um estudo epidemiológico realizado em Portugal revelou que cerca de 49,2% da população relata um impacto moderado a grave a nível psicológico do surto do novo coronavírus (M. Paulino et al., Agosto 2020).

É sabido que a doença mental em geral é mais prevalente entre as mulheres. No entanto, a razão das mulheres serem as mais afectadas no contexto da pandemia é mais do que biológica. O encerramento dos locais de trabalho, escolas e outros serviços veio acentuar as disparidades sociais, inclusive as relacionadas com o género.

Em todo o mundo, homens e mulheres descrevem um aumento dos desafios associado à realidade atual, nomeadamente o teletrabalho, o contacto prolongado e forçado entre os membros da família nuclear, a alteração das rotinas, a escassez de entretenimento, o tédio, a maior raridade no contacto com a família alargada e com os amigos, as dificuldades económicas, o medo de ser contagiado, o medo de contagiar, a total sensação de perda de controlo. Todos estes factores de stress são ainda exacerbados pela exposição constante a notícias ao minuto sobre números, incertezas e contradições acerca deste vírus que teima em manter-se por cá.A pandemia COVID-19 e o confinamento podem desencadear o início de um distúrbio mental ou levar à exacerbação de uma doença pré-existente. São as mulheres que mais se queixam do impacto negativo desta nova realidade. A população feminina é, de facto, aquela que está a ser mais afectada e a sofrer mais em termos psíquicos com a pandemia SARS-CoV-2. São vários os estudos que já foram realizados nestes últimos nove meses que mostram que a mulher tem níveis mais elevados de ansiedade e depressão. Contudo não são só os estudos que comprovam essa realidade.  A cada dia, cada um de nós, psiquiatras e psicólogos, ouve relatos na sua prática clínica que também o vêm confirmar.

É sabido que a doença mental em geral é mais prevalente entre as mulheres. No entanto, a razão das mulheres serem as mais afectadas no contexto da pandemia é mais do que biológica. O encerramento dos locais de trabalho, escolas e outros serviços veio acentuar as disparidades sociais, inclusive as relacionadas com o género.

Em primeiro lugar, as mulheres surgem em maior número na linha da frente, nomeadamente nos cuidados de saúde, no comércio alimentar e noutras indústrias comerciais. As mulheres médicas a nível hospitalar estão em maior risco de burnout, uma vez que estão sujeitas a uma maior carga de trabalho, quer no emprego, quer em casa. Para além disso, têm um medo constante de contrair a doença e dessa forma vir a expor os seus familiares, o que lhes causa stress acrescido. São também assoladas frequentemente por sentimentos de culpa, uma vez que sentem que não têm a disponibilidade que gostariam para a sua família.

As mulheres têm a seu cargo mais cuidados adicionais aos filhos, particularmente a supervisão das atividades escolares. Neste campo a sobrecarga é ainda maior, atendendo a que deixou de existir o habitual apoio dos avós, de outros familiares ou de outro tipo de cuidadores, quer pela necessidade de protecção dos mais velhos, quer pelo isolamento social imposto pela elevada contagiosidade deste vírus.

Acresce ainda que as mulheres desempenham com mais frequência o que equivale a uma dupla jornada de trabalho. Ao seu emprego, soma-se o trabalho doméstico, cabendo-lhes geralmente a  gestão da casa, as compras, as refeições, a limpeza, o cuidado das roupas, etc. Estando mais tempo toda a família em casa, é obviamente colocado um fardo acrescido sobre as suas costas a nível das tarefas domésticas.

Nas famílias mais pobres, o facto de terem menos recursos afecta geralmente as mulheres em primeiro lugar e de uma forma mais intensa. As mulheres têm também uma maior probabilidade de perder o emprego e a independência económica quando os recursos são mais limitados, como acontece numa pandemia.

A violência doméstica, psicológica, física ou sexual, é outro dos factores que infelizmente tem contribuído para uma maior incidência de patologia mental na mulher durante a pandemia COVID-19. A violência doméstica vem associada a maior risco de homicídio e suicídio. O lar que devia ser um “abrigo” da pandemia COVID-19, para estas mulheres passa a ser sentido como fonte de angústia e insegurança.

A violência doméstica, psicológica, física ou sexual, é outro dos factores que infelizmente tem contribuído para uma maior incidência de patologia mental na mulher durante a pandemia COVID-19. Por um lado, vítima e agressor passam muito mais tempo juntos num confinamento obrigatório, com os media a transmitir informações desanimadoras constantes, com consequente agravamento do stress e instigando o comportamento agressivo no perpetrador. O aumento de consumo de álcool e/ou outras drogas associado ao confinamento também é responsável pelo aumento da violência nos lares. Por outro lado, o agravamento da crise económica faz com que seja mais difícil as vítimas se conseguirem separar dos seus parceiros agressores. Também o afastamento de familiares e amigos, bem como a maior dificuldade de acesso a estruturas de suporte às vítimas, faz com as mulheres tenham mais dificuldade em libertar-se do agressor. A violência doméstica vem associada a maior risco de homicídio e suicídio. O lar que devia ser um “abrigo” da pandemia COVID-19, para estas mulheres passa a ser sentido como fonte de angústia e insegurança.

Sendo as mulheres as mais afectadas em termos de saúde mental durante os momentos  de crise, nomeadamente numa pandemia, torna-se urgente encontrarmos estratégias eficazes que as protejam nesses períodos.

Por fim, ter uma gravidez e um parto durante a pandemia do novo coronavírus traz também riscos acrescidos em termos de saúde mental, uma vez que a susceptibilidade à doença mental, que já existe por si só em condições normais, pode ainda aumentar mais. Por um lado, em caso de infeção ainda há muito desconhecimento acerca do comportamento do vírus. Por outro lado, o  impedimento do pai estar presente em ecografias e/ou no parto pode ser outro factor de angústia. Há também uma maior vulnerabilidade pelo isolamento e pela falta de suporte social, quer na gravidez, quer no pós-parto. É também de referir que em contexto de pandemia é maior o risco de gravidezes indesejadas, quer pelo maior tempo de convivência, quer por maior dificuldade em obter os contraceptivos normais ou de emergência, o que constitui outro fator acrescido de doença mental.

Sendo as mulheres as mais afectadas em termos de saúde mental durante os momentos  de crise, nomeadamente numa pandemia, torna-se urgente encontrarmos estratégias eficazes que as protejam nesses períodos. A mim, como mulher e como psiquiatra, cabe-me o dever de alertar para estas disparidades e de lembrar que a prevenção é a nossa maior arma porque “não há saúde sem saúde mental” (Nações Unidas e Organização Mundial de Saúde).

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