Depois da licenciatura em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em 1988, Sofia Galvão manteve-se na Universidade até 2003, como docente. Paralelamente, exerceu advocacia, onde se haveria de notabilizar pela especialização em temas do Direito do Território. Depois de criar de raiz e liderar departamentos vocacionados para a área do Urbanismo em grandes escritórios de advogados, aos 51 anos decidiu usar estas competências na sua própria sociedade. “Até agora é uma aposta ganha”, conta.
Ex-Secretária de Estado da Presidência do Conselho de Ministros e Secretária de Estado da Administração Pública (2004-2005) do Governo liderado por Pedro Santana Lopes, a atual vice-presidente do PSD afirma que não quer perder o seu tempo com a “política partidária, intestina, do poder pelo poder”, mas interessa-se pela “política transformadora da condição de vida das pessoas”. “Isso eu faço como imperativo moral, cívico”, assegura.
Quando é que decidiu que faria carreira na área jurídica?
No final dos anos 70, havia muitas discussões políticas. No rescaldo da alteração do Código Civil houve uma série de debates na televisão acerca de temas jurídicos, que me interessaram imenso. Um dos personagens era a Dr.ª Leonor Beleza, ela própria a iniciar a sua carreira jurídica. Escolhi Economia, que fiz até ao 11º ano, mas depois mudei para Humanísticas para fazer Direito.
Gosto muito de Direito. Acho que tem a ver com o gosto pelas questões da organização da sociedade e da vida no coletivo, de acordo com regras, de as definirem e respeitarem, e de as adaptarem ao seu tempo.
Quais é que considera serem as características necessárias para se ser um bom advogado?
A primeira, e mais importante, é saber Direito. De preferência, saber muito de Direito: ter um conhecimento correto da ordem jurídica, do seu funcionamento, daquilo que deve ser a aplicação devida das regras. Alguns advogados acham que se pode ser advogado sem verdadeiramente saber Direito, tendo uma lista de telefones, tendo algum conhecimento do mundo, da vida e dos circuitos. Mas isso não chega.
O Direito serve valores, dos quais o prinicipal é a justiça.
Ser sério é absolutamente fundamental. Ter um apego incondicional à justiça e perceber que o Direito serve valores, de entre os quais o principal é esse mesmo, a justiça. Tem de ser um Direito sempre axiologicamente determinado. O Direito não é neutro, o Direito tem de realizar fins que são fins fundamentais e definidores da sua própria função, a justiça é seguramente o primeiro.
Acho que é fundamental ver-se na profissão de advogado um papel de construção de soluções, em que o Direito é usado para contribuir para a descoberta da solução que é adequada, justa e idónea para resolver o caso. Pode-se olhar para o Direito para descobrir nele limites, problemas, dificuldades. Ou pode-se olhar para o Direito para descobrir nele caminhos, objetivos e soluções. Acho que para se ser um bom advogado é preciso ter este segundo olhar.
Considera que é uma advogada diferente pelo facto de ser mulher? Ou o género não tem qualquer influência?
Repare, eu sou de uma geração em que, rapazes e raparigas, fomos sempre preparados para os mesmos caminhos, as mesmas saídas. O que acho é que, por exemplo, tomando a minha vida nas grandes sociedades como referência, há uma dimensão da vida profissional como advogado, que tem de ver com projetos corporativos, circuitos de poder dentro das próprias organizações, que a mim me interessa muito pouco. Mas não sei se isso se deve ao facto de ser mulher. Apesar de tudo, embora seja um jogo travado sobretudo no masculino, também há mulheres empenhadas nessas cruzadas.
Conheço advogados que são muitíssimo intuitivos e são capazes de um olhar que se diz mais tipicamente feminino.
Agora, mais emocional ou menos emocional, mais intuitiva ou menos intuitiva… É preciso conhecer as pessoas, perceber exatamente o que é que, naquela ideia de construção jurídica da solução, é possível com esta pessoa e com outra já não é, neste contexto é viável naquele outro já não é. Portanto, há uma dose de intuição, de inteligência emocional, que é muito importante. Isso normalmente é visto como característica mais feminina. Espero tê-la, na medida em que essa intuição me parece ser muito importante para qualquer advogado. Mas há homens que também a têm. Conheço advogados, homens, que são muitíssimo intuitivos e são capazes de um olhar que se diz mais tipicamente feminino, aquela inteligência emocional que acho fundamental para a profissão.
Como surgiu o interesse pela área do Direito do Imobiliário, do Território e do Urbanismo?
Com 20 e tal anos, tornei-me secretária geral da Associação de Promotores Imobiliários, que acabava de nascer e onde estive até 1995. Esse facto determinou a evolução da minha vida jurídica, pois permitiu-me ter contacto com temas como o mercado imobiliário e o urbanismo. O planeamento e ordenamento do território davam, em Portugal, passos importantes nessa altura.
O contacto com a realidade antecedeu aquela que viria a ser, depois, a minha especialização jurídica.
O contacto com a realidade antecedeu aquela que viria, depois, a ser a minha especialização jurídica. A minha vida académica evoluiu do Direito Privado, do Direito Civil, do Direito Bancário (o meu mestrado tem uma componente de direito bancário), para estes temas de Direito Público, especificamente do Direito do Urbanismo. Acabei a vida académica dando e regendo a cadeira de Direito de Urbanismo, várias pós-graduações em Direito do Urbanismo, Direito de Ordenamento do Território e Direito do Mar – áreas ligadas ao território.
O que é que essa circunstância mudou na sua prática jurídica?
Estou muito perto das preocupações de quem está com os problemas em mãos, portanto não faço uma abordagem das leis, dos livros e da jurisprudência para o problema, faço sempre o caminho inverso, do problema para a construção de soluções: o que a lei, a doutrina e a jurisprudência possam dizer sobre ele.
As grandes sociedades são portos seguros, mas achei que era um desafio que valia a pena.
O que é que a levou a lançar o seu próprio escritório?
As grandes sociedades têm méritos indiscutíveis, mas são – e têm de ser – antes de tudo empresas. Portanto, os sócios têm muito trabalho que é virado para a própria empresa: projetos internos e obrigações relativas à própria estrutura. Isso tira disponibilidade para o trabalho que eu gosto de fazer: o trabalho que se faz com os clientes, com a nossa equipa de trabalho… os casos que se têm em mãos.
Começou a tomar forma a ideia, a minha equipa respondeu bem e foi tão ousada quanto eu, aceitando acompanhar-me nessa experiência. O mais velho, o Hugo Nunes, é o meu atual sócio. Foi um desafio, porque me obrigou a sair da zona de conforto. As grandes sociedades são portos seguros para quem está como sócio, mas achei que um futuro autónomo era um desafio que valia a pena.
Nas grandes sociedades, os clientes não têm contacto com os sócios.
Quais é que são as vantagens e as desvantagens de um grande escritório e um escritório mais pequeno?
Nas grandes sociedades, os clientes não têm um contacto permanente com os sócios. Obviamente conhecem-nos, mas no dia-a-dia os seus interlocutores são os colaboradores que integram as equipas, são associados.
Nós somos uma pequena sociedade, uma “boutique”, o que faz com que o trabalho de gestão não pese na afetação do nosso tempo e isso permite-nos usar o tempo naquilo que me parece vital: os clientes e o investimento numa grande proximidade com eles. Mantemos um contacto direto com os nossos clientes. É um trabalho muito mais gratificante para quem gosta da advocacia, tal como eu a entendo.
Como tem corrido esta aventura?
Temos tido um sucesso assinalável. Nós vínhamos já com uma especialização, uma expertise e um nome que eram reconhecidos no mercado. O mercado conhecia-me, a maior parte dos “stakeholders” conhecia o nosso trabalho. Viemos com esse conforto, com essa solidez, com esse respaldo.
É uma aposta ganha com trabalho e sem nenhum descanso à sombra de nada.
Mas não deixou de ser um risco…
Não deixou de ser um risco, claro, mas viemos com uma boa base de clientes. À exceção de apenas dois clientes, que já eram clientes da Vieira de Almeida, o resto dos clientes veio connosco. E, no primeiro ano, nós mais do que duplicámos a nossa carteira de clientes, o que significa que as pessoas aderiram muito bem a este nosso projeto. Temos agora uma carteira de clientes diferente da que tínhamos na Vieira de Almeida, com muitos investidores estrangeiros, quer institucionais, quer individuais, pois fazemos também, e muito, trabalho de real estate, imobiliário puro, transacional e não só.
Fazemos um cruzamento permanente e muito estreito entre o trabalho imobiliário, transacional, e o trabalho do planning, do urbanismo, em termos que são únicos no mercado e são altamente diferenciadores da nossa proposta de valor. E isso tem dado frutos muito importantes.
Pode dar um exemplo?
Por exemplo, quando um investidor nos apresenta um ativo imobiliário em que está interessado e nos pede que façamos uma due diligence para saber se o ativo está ou não em condições de ser por ele adquirido, para além de vermos se o imóvel tem a sua situação cadastral e fiscal regular, e se não tem ónus nem encargos, nós também fazemos sempre uma análise do potencial construtivo urbanístico daquele ativo: “além do que aqui tem à sua frente, as regras hoje em vigor, nos planos que são aplicáveis, permitem que, nesta localização, este edifício, possa vir a transformar-se nisto ou naquilo”, significando com isso que pode mudar de usos, pode ou não pode aumentar a área, que pode ou não vir a ter mais estacionamentos, pode ou não pode ocupar o logradouro. Este cruzamento tem aportado muito valor ao nosso contributo para a formação da vontade do investidor e isso tem sido muito recebido e premiado.
É uma aposta ganha?
Até agora sim, uma aposta ganha. Ganha com trabalho e sem nenhum descanso à sombra de nada: nem de estatuto, nem de resultados passados. Nós trabalhamos muito. Acho que o mérito é esse.
A tertúlia de Sofia
Já lá vão quinze anos. Desde maio de 2001 que, na última terça feira de cada mês, um grupo de cerca de 35 pessoas reúne-se para debater temas de interesse coletivo tão variados como “a eleição do papa Francisco”, “o papel e o valor económico da língua portuguesa”, “a liderança feminina” ou políticas concretas de saúde, segurança social, ou educação. “Temas que nos obrigam a todos, enquanto cidadãos, a ter sobre eles uma visão e opinião críticas”, resume Sofia Galvão, a mentora desta ideia.
Em volta de uma mesa de jantar única, a tertúlia começa com uma exposição do tema, apresentada por um dos membros, a que se segue um debate organizado, em que cada pessoa fala à sua vez. Nestes quinze anos, foram raras as vezes em que houve um orador externo. “A ideia não é ter um especialista a fazer uma conferência, é ter um cidadão ou cidadã conhecedor, observador, de uma determinada temática que por alguma razão lhe interessa, sobre a qual dará uma visão, uma opinião, posta à discussão por todos. É uma tertúlia que já vai sendo mais conhecida do que eu própria, suponho”, afirma.
As profissões jurídicas – a advocacia, o notariado, a magistratura…-, registaram nos últimos tempos uma enorme feminização. Porque é que isso aconteceu?
Tenho a tentação de responder com uma explicação que me foi dada há uns anos por uma especialista em temas femininos, a Professora Teresa Beleza. Ela explicava isso, com um ar de graça, mas que não deixa de ter um fundo de verdade, com o facto de as profissões jurídicas estarem a ser progressivamente mais mal pagas e, portanto, os homens tinham que encontrar profissões mais rentáveis.
Além disso, são cursos com uma matriz de Letras, tendencialmente mais procurados pelas mulheres do que os cursos de engenharia ou as ciências em geral. E, talvez, pela enorme gama de possibilidades de carreira que oferece, a possibilidade de fazer escolhas do caminho a seguir e da ocupação do tempo, em diferentes fases de vida, o que pode ser importante para boa parte das mulheres, sobretudo se quiserem ter família e filhos.
As estruturas partidárias estão tomadas por homens; há tendência para quererem preservar esse domínio.
Ao contrário, poucas mulheres manifestam apetência para a política ou, pelo menos, conseguem lá entrar. Por que é que há tão poucas mulheres na política? Qual a sua visão: é falta de interesse delas, são as estruturas que não facilitam esse acesso?
Acho que são as duas coisas combinadas e, portanto, o efeito é sinérgico. Por um lado, como as estruturas partidárias estão, sobretudo, tomadas por homens, há uma tendência para quererem preservar esses seus lugares e esse domínio.
Por outro lado, a “política política”, que permite fazer coisas, quer ao nível central do governo quer ao nível local, tem um apelo para as mulheres, porque as mulheres gostam de ter a mão na massa, gostam de coisas concretas, gostam de ver a realização. Os homens entretêm-se com outra facilidade em estruturas partidárias, em que discutem coisas mais abstratas, etéreas, muito importantes para a estrutura, mas muito pouco importantes para a vida concreta. Há uma temática, que continua a ser muito dominante na politica, que tem de ver com as próprias estruturas do poder, os circuitos de decisão e do poder, que não atrai tanto as mulheres como atrai os homens.
É obvio que estas generalizações são sempre complicadas. Mas tendencialmente há traços que nos levem a ter de reconhecer que as mulheres preferem ver coisas concretas, palpáveis, feitas, do que estar a perder noites e noites. Esse aspeto também é importante: muitas vezes a política faz-se em horários pós-laborais e, apesar de hoje em dia terem uma vida diferente no sentido da partilha de responsabilidades, os homens continuam, também tendencialmente, a ter maior facilidade em dispor de noites do que as mulheres, que têm, a maior parte delas, crianças em casa e outro tipo de afazeres e pressões.
Por esta razão, bem ou mal (é uma discussão que não está acabada) as quotas acabaram por se impor e por ter o seu papel. De resto, mesmo sem quotas, o caminho vai-se fazendo. O CDS-PP e o BE são liderados por mulheres, a recém-eleita Comissão Permanente do PSD é maioritariamente feminina.
(A plítica) não é nada “deles”, é nosso! É meu também.
O que a atraiu na política foi meter as “mãos na massa”?
Foi. Eu não tenho nenhuma apetência para a pequena política partidária. Nenhuma. Essa discussão do poder pelo poder, de cargos, esse tipo de protagonismos e pequenas vaidades não só não me interessa minimamente, como me maça. Para mim é uma pura perda de tempo. Eu tenho muito a noção de que o meu tempo aqui é finito e, portanto, há coisas em que eu não quero perdê-lo, e essa é claramente uma delas.
A política com P grande, a política como a história a fazer-se, a política transformadora da condição de vida das pessoas, essa interessa-me imenso. A nossa responsabilidade, ou co-responsabilidade, perante o nosso tempo e futuro coletivos, isso interessa-me imenso. Isso eu faço como imperativo moral, cívico. É uma coisa que não posso, porque não devo, deixar de fazer. Todos aqueles que tiveram condições, tiveram oportunidades, sorte em terem nascido onde nasceram, na família em que nasceram, de se diferenciarem, não podem olhar para o coletivo com falta de compromisso e falta de empenho. Têm de estar atentos e dar o seu contributo.
A minha ligação à política sempre teve só por base este eixo de preocupações e de compromisso. Posso não ter nenhuma responsabilidade, e na maior parte da minha vida não tive, efetiva e formal na política, mas estou sempre atenta, sempre crítica, com a consciência plena de que aquilo que se passa me envolve. Não consigo ter, perante a politica e perante aquilo que são as nossas grandes escolhas e dinâmicas coletivas, a visão de um sistema abstrato que é indeterminado, que não tem a ver comigo e é “deles”. Não é nada “deles”, é nosso! É meu também.
Qual foi a vitória profissional que lhe deu mais prazer conquistar?
É uma pergunta difícil, porque há várias. Na vida académica, cada aluno que eu tenha conseguido despertar para um gosto genuíno e empenhado pelo Direito e pela sua aplicação justa foi seguramente uma vitória e algo de que me orgulho, em que valeu a pena gastar tempo de vida. Todavia, se este meu atual projeto vingar, se daqui a dez anos nos encontrarmos para reconhecer que é um caso de sucesso, acho que será seguramente esta a grande vitória de que me vou orgulhar.
Tem alguma máxima de vida?
Acho que talvez possa partilhar uma frase que o meu pai me disse, quando me formei e que guardei para sempre. A respeito da nova fase da vida que então começava, disse-me: “pensa-a com inteligência e rigor e terás sucesso, vive-a com amor e compaixão e serás feliz”. Acho que é uma boa máxima de vida, ilumina-me sempre que preciso.
CV tripartido
Advocacia
Foi sócia responsável pelos Departamentos de Urbanismo, na PLMJ, e de Imobiliário, Urbanismo e Ambiente, primeiro na Sérvulo Correia & Associados e depois na Vieira de Almeida & Associados, finalmente de Urbanismo e Turismo, na Vieira de Almeida & Associados. Lançou-se por conta própria com a Sofia Galvão Associados, uma “boutique” com apenas dois sócios.
Foi distinguida como Portuguese Lawyer of the year, pelo Directório Best Lawyers, em Real Estate (2013) e Planning (2014 e 2016), no Recommended Lawyer pelo Legal 500 (Real Estate, 2015 e 2016) e como Star Individual, na categoria de Planning, pelo Chambers Europe (2014, 2015 e 2016) e Recommended Lawyer, pelo Chambers Europe (2016).
Docência
Após concluir a licenciatura na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em 1988, desempenhou funções docentes, como assistente, na mesma Faculdade, com a qual mantém até hoje uma colaboração assídua em pós-graduações e seminários. Foi professora convidada na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. É oradora em diversas conferências e cursos sobre matérias da sua especialidade.
Política
Entre muitas outras funções desempenhadas em diversos organismos, foi Secretária de Estado da Administração Pública e Secretária de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, no XVI Governo Constitucional. É, actualmente, Vice-Presidente do PSD.