Sandra Matos: Mudar de carreira (e de vida) depois dos 40

De operadora de call center a diretora de operações da SIBS, o percurso profissional de Sandra Matos foi construído de forma sólida e apaixonada nas maiores empresas do pais. Não admira que tenha causado surpresa quando decidiu deixar tudo para trás para se dedicar a uma organização que ajuda novos empreendedores e a estudar Psicologia.

Sandra Matos é diretora executiva da Netmentora.

Sandra Matos ainda estudava Economia quando começou a trabalhar como operadora de call center, na Telecel. Tinha medo de não conseguir encontrar trabalho depois de terminar o curso, mas foi nesta empresa que acabou por fazer carreira na exigente e stressante área do apoio ao cliente, chegando a coordenadora da área de Garantia de Qualidade, líder da equipa de Backoffice e consultora interna, em cinco anos.

A vontade de viajar e de aprender mais sobre diferentes áreas de negócios levou-a à KPMG. Na procura pelo equilíbrio entre a vida profissional e familiar — é mãe de três rapazes — saiu da consultora ao fim de três anos para se estabelecer como profissional independente, até se decidir pelo regresso ao mundo corporativo na TV Cabo – ZON, onde ficou responsável pelo suporte ao cliente e, mais tarde, da área de Conhecimento e Formação. Foram 10 anos em que Sandra Matos ganhou prémios internacionais atribuídos pela Contact Center World, organização a que chegou também a estar ligada mais tarde enquanto júri e membro.

Em 2016, quando soube que a organização sem fins lucrativos Réseau Entreprendre queria estabelecer-se em Portugal, quis juntar a experiência de quase duas décadas no mundo corporativo com a grande vontade de “fazer coisas boas com pessoas boas”, tomando o leme do projeto Netmentora, que dá apoio e mentoria a novos empreendedores e negócios, e de que é hoje diretora executiva.

Desde então, Sandra Matos já foi também diretora de Operações, Formação e Qualidade na SIBS, lançou um grupo para promover o networking entre mulheres e, há 4 anos, decidiu-se por uma mudança de vida radical: voltou aos bancos da faculdade para uma segunda licenciatura, desta vez em Psicologia, onde está agora a fazer mestrado e onde quer fazer carreira. Desde o ano passado dá ainda aulas de High Performance People Management e Liderança Estratégica na Universidade Europeia, que concilia com as suas atividades na Netmentora.

Aos 47 anos, e depois de uma carreira sólida em grandes empresas, Sandra Matos sente que está muito a tempo de mudar de vida. Estamos todas, diz, desde que saibamos responder à terrível pergunta: “o que é que eu estou a fazer com a minha vida?”

O que a entusiasmou a fazer carreira numa área tão exigente e stressante como é o contact center?

O meu primeiro emprego, ainda não tinha acabado o curso de Economia, foi na Telecel, actual Vodafone, porque tinha uma ansiedade grande de que poderia demorar muito tempo a encontrar emprego depois de acabar o curso. Não era de todo a minha pretensão seguir a carreira nos contact centers. A verdade é que foi a área em que acabei por trabalhar mais anos e fazer coisas mais espetaculares. Comecei como operadora de call center, onde aprendi imenso. Os contact centers de hoje não têm nada a ver com os de há 20 anos, até porque os cliente são hoje muito mais exigentes e têm muito mais informação. Mas eu tinha a convicção de que quando fosse para a área das Reclamações, onde ninguém gosta de trabalhar, seria aquela em que estaria mais tempo. E a Telecel era uma belíssima escola, com muita formação e acompanhamento. Foi aí que fiquei pela primeira vez responsável por uma equipa, onde fazia trabalho muito variado, desde a distribuição de trabalho até à revisão de cartas de resposta às reclamações de clientes de score mais elevado.

Tinha vontade de progredir, depois disso, já era mãe, sabia que já tinha o conhecimento em todas as áreas ligadas ao apoio ao cliente. Por isso auto propus-me para ir para uma área mais técnica — na altura estávamos a implementar um novo software — onde ajudaria a mapear os processos. Essa abertura e disponibilidade por parte das organizações faz muita diferença na progressão dos colaboradores. Mas também me colocou uma bitola mais alta. Tive muita possibilidade de progressão na carreira, na Vodafone, numa área muito fascinante, porque no fundo também trata de gestão de operações.

Como se dá o salto para o mundo da consultoria e o que é que ele lhe trouxe?

Esta progressão para a área técnica permitiu-me dar o salto para uma consultora, a KPMG, que nesse momento estava numa fase de implementação também de uma ferramenta de software e por isso precisava de fazer exatamente o que eu tinha feito na Telecel, mapear os processos internos.

Foi o desafio de entrar num mundo onde temos contacto com empresas de vários setores, negócios e realidades diversas que me fez aceitar a proposta da consultoria. Também tinha o interesse em viajar. Era ouro sobre azul, para uma jovem profissional que queria aprender mais com a realidade do que se fazia lá fora. As minhas formações inicialmente estavam planeadas para ter lugar nos Estados Unidos. A verdade é que isto acabou por coincidir com o 11 de Setembro, as viagens pararam e acabei por ter formação em Portugal. Fiz projectos para empresas de comunicações. Mas o fascínio de conhecer outras realidades empresarias e internacionais acabou por ficar um pouco abaixo das expectativas, apesar te ter aprendido também muito aqui. Quando me deparei com outras realidades percebi que na verdade já tinha tido uma escola muito boa no meu primeiro emprego, sem ter a noção disso; que afinal sabia muito dessa área.

 

“A angústia de saber se estamos realmente a tomar a decisão correta persegue-nos a nós, mulheres, continuamente”

 

E como se deu a sua passagem para a ZON?

Na altura ainda era TV Cabo. Já tinha tido o meu segundo filho e ainda tentei abrandar o ritmo, antes disso. Fiz alguns trabalho como freelance, porque sempre tive essa vontade de ter alguma atividade paralela e estava sempre a pensar em planos B que pudessem funcionar se eu precisasse. Fui promotora de crédito à habitação numa instituição bancária, participei em estudos com empresas que tinham recebido fundos comunitários.

Mas isso também me angustiou — é engraçado como a angustia de saber se estamos realmente a tomar a decisão correcta nos persegue a nós, mulheres, continuamente. Pensei se estava certa em apenas fazer actividades como freelance, porque depois pode vir a faltar a segurança financeira.

Por isso, decidi que teria de voltar ao mercado corporativo e fui para a TV Cabo, que na altura enfrentava desafios no sentido da percepção da qualidade. Eu tinha tido uma experiência grande na área da qualidade e da gestão de reclamações na Vodafone. Por isso, fui cheia de confiança, ainda mais robustecida pela minha experiência em consultoria. Eu estava à procura de mundo, de experiências internacionais, e essa área, à partida, seria aquela que menos mundo me iria oferecer. Mas foi na TV Cabo – ZON que mais acabei por viajar a trabalho. Voltei à área do contact center, mas para mim foi uma escolha baseada no desafio de sentir que poderia fazer a diferença e contribuir para a melhoria de um projecto, numa equipa muito jovem e operacional. E eu sou mais operacional e isso acabou por afastar-me da consultoria, em que não acompanhamos todo o projeto. Na TV Cabo senti que demos a volta como equipa, implementámos coisas fantásticas.

Que fatores contribuíram para esse sucesso?

O segredo diferenciador penso que esteve no facto de me darem muita autonomia e de eu não ter medo de falhar e de propor. E foi um percurso muito criativo, que me levou a procurar novos caminhos e soluções. A minha criatividade foi muito desafiada.

Comecei na área da Qualidade, e depois passei para a da Formação e dos Incentivos, o que é o trajecto natural. Com base no que sabemos de qualidade, faz sentido começarmos a olhar para outra área, que não é a nossa especialidade mas para onde a nossa experiência pode ser muito relevante. Tentamos muitas vezes defender a nossa área e posto e vemos a progressão muitas vezes olhando para cima na pirâmide hierárquica, quando às vezes o caminho é para o lado.

 

Porque decidiu sair do mundo corporativo?

Antes de sair da TV Cabo/ZON, já queria fazer coisas boas com pessoas boas que quisessem causar impacto e ajudar os outros. Foi com esse mote que fui tirar o mestrado em Economia Social e Solidária. Os meus amigos e colegas perguntavam-me porque não tirava antes uma especialização em Finanças ou um MBA, uma pós graduação de gestão. Mas eu queria aprender o que se fazia nessa área. Por isso fui fazer o mestrado em horário pós-laboral, no ISCTE, quando já tinha três filhos.

Quando sai da NOS disseram-me que era a maior asneira que estava a fazer na vida, que nunca mais ia conseguir encontrar emprego quase aos 40 anos, muito menos nas condições que tinha. A verdade é que passado uns tempos tive uma proposta de um antigo fornecedor, que cobria o que eu estava a ganhar antes. Mas não aceitei e pensei que isto era a vida a testar se eu queria mesmo manter-me fiel a esta decisão.

Como surgiu o projecto Netmentora, na sua vida, e o que implicou em termos de novas aprendizagens?

Um antigo fornecedor que trabalhava com a TV Cabo soube que este projeto queria vir para Portugal e procuravam contratar alguém que tivesse experiência no mundo corporativo, mas tivesse também sensibilidade para os projetos sem fins lucrativos. Quando ouvi isto pensei “Sou eu! Não procurem mais”. Ofereciam-me toda a estrutura de uma grande organização — os processos todos organizados, uma equipa de apoio — e oferecia-me mundo porque era internacional — podia comparar-me com o que se fazia em Paris, Milão, Madrid.

Foi o emprego da minha vida porque correspondia ao que eu sou como pessoa e que gosto de fazer: ajudar pessoas dentro de uma estrutura profissional e organizada, sempre na base do desafio e da comparação das melhores praticas do que se fazia nas organizações afiliadas em outras cidades lá fora.

Isto aconteceu em 2016, era uma coisa nova, foi difícil. Saí de uma realidade em que planeava ações e as articulava para 3 mil pessoas, numa equipa, com um orçamento que eu geria, para uma realidade em que era a única colaboradora e onde tenho vários “chapéus” —se for preciso ir pôr uma carta aos Correios, vou eu; se for preciso negociar com um CEO também vou eu. O que no fundo é o que um empreendedor também faz quando começa o seu negócio.

O maior choque foi trabalhar sozinha, o que era uma coisa que eu já queria antes. Queria trabalhar remotamente já, o que não era uma realidade em 2016. E também não ter orçamento, isso teria de ser eu a obter. No setor social, trabalhamos com muito poucos recursos, ao contrário do que acontece nas empresas, mas isso estimula muito a criatividade e graças a isso, ainda consegui implementar na NOS, projectos com custos baixíssimos.

“Percebi que tinha de trabalhar mais 20 anos até me reformar e comecei a pensar qual o estilo de vida que queria ter.”

 

Como funciona a Netmentora?

A Netmentora faz parte da rede Réseau Entreprendre, organização sem fins lucrativos que se dedica a apoiar novos empreendedores e projetos de negócio. Tem 30 anos de experiência, está implementada em 10 países, com 126 associações. Eu tinha que convencer CEO’s ou empreendedores com sucesso a darem o seu tempo para ajudarem empreendedores que estão a começar, bem como a pagarem uma quota para pertencerem à Netmentora. E eles não poderiam investir nos novos negócios que iriam ajudar, para que isso não prejudicasse a relação entre mentores e novos empreendedores. Os mentores têm de ser também de empresas de setores diferentes do empreendedor, nunca do mesmo.

Chegámos a ter mais de 40 empresas associadas, empresas robustas como a Cofidis, BNP Paribas, Abreu Advogados, a Delta, a Auchan, Leroy Merlin — a Reseau nasceu com a família que detém o Grupo Auchan.

Desde 2016 ajudámos 12 empreendedores na zona da Grande Lisboa, em ciclos de dois anos. Por cada empreendedor que ajudamos necessitamos de sete empresas mentoras — só podemos ajudar quando crescemos em múltiplos de sete. O empreendedor precisa de ter o foco de criar novos postos de trabalho. E temos de ter a certeza de que é um plano daquela pessoas e não um negócio que pretende vender daqui a uns tempos. Tipicamente os empreendedores que recorrem a nós têm cerca de 40 anos e fazem-no por três motivos: ou já tinham aquele sonho (não são muitos), ou ficaram desempregados e o emprego próprio é a única saída, ou herdaram um negócio familiar e querem dar o seu cunho pessoal. Quando são empreendedores que perderam o emprego, temos pessoas que são muito especialistas em uma área, mas depois não sabem de legislação, recursos humanos, pricing ou outras competências de gestão.

É preciso saber envolver pessoas e empresas, ter muita paciência. As organizações sem fins lucrativos não são a prioridade de ninguém, estas pessoas das empresas mentoras têm os seus horários, os próprios empreendedores têm as suas preocupações e negócios e recorrem a nós quando têm problemas.

E o que é os mentores que doam o seu tempo e conhecimentos ganham?

Ganham na visão de novos negócios e mercados. Em França, a secretária de um CEO que acompanhava um empreendedor contou-nos que sempre que acabava uma sessão de mentoria, o CEO disparava em todas as direções e pedia para a sua própria equipa rever coisas, pôr novos planos em ação. Pensava “estou a dar este conselho a este empreendedor, mas há quanto tempo não faço isto para mim?” Os CEOS das empresas mentoras muitas vezes partilham que naquela idade também gostariam de ter sido ajudados. E ganham também no orgulho de ver que empresa que ajudaram já cresceu, tem mais colaboradores e até já exporta.

 

Porque é que, aos 43 anos, decidiu voltar à faculdade para estudar Psicologia, uma área completamente diferente?

Um dia, quando fui ao site da Segurança Social e percebi que tinha de trabalhar mais 20 anos até me reformar, comecei a pensar qual o estilo de vida que queria ter e fiz alguns pontos de auto-análise: queria ser melhor profissional aos 80 anos do que era aos 40 (e nem todas as profissões permitem essa certeza), queria trabalhar sozinha, mas numa profissão que pudesse ter algum impacto financeiro. Também tinha de ser algo para o qual sentisse que tinha jeito. Esta minha vertente na Netmentora também está muito próxima da Psicologia porque passa muito por perceber quais são os problemas e desafios de quem nos procura.

Percebi então que teria de começar uma carreira nova. E não é fácil. Mas pensei que isso me permitiria viver a minha vida de outra maneira: podia dar consultas, dar aulas, queria ter tempo para ler, para passar mais tempo com os meus filhos e para manter a a NetMentora.

Falei com duas pessoas, uma delas era psicóloga, que se riram muito e me perguntaram se eu tinha noção do que estava a fazer porque iria começar a minha nova profissão quase com 50 anos. Respondi: “eu vou ter sempre 50 anos nessa altura, portanto convém começar já”.

Foi tão difícil comunicar essa decisão aqui em casa, fiz um enquadramento tão grande, que acho que a minha família pensou que eu ía emigrar para o Suriname! Pensei que isso me iria afastar dos meus filhos, porque seria em horário pós-laboral e não estaria em casa para jantar com eles. A verdade é que nos aproximou imenso. Os meus filhos mais velhos estão na Faculdade também, por isso em época de exames estamos todos a estudar em casa, desabafamos uns com outros das dificuldades e falo muito com eles daquilo que aprendo.

O ano passado acabei a licenciatura e estou agora a fazer mestrado. Foi aterrorizador a princípio, mas acabou per se revelar uma agradável surpresa. Um terço da minha turma eram pessoas como eu e mais ou menos da mesma idade, o que me ajudou a ter a certeza de que não estava maluca. Tinha colegas que já eram licenciadas em Direito ou Veterinária e que agora procuravam outra especialização.

Vou fazer estágio profissional e curricular não remunerado (o que é uma coisa que assusta bastante) numa escola de futebol. O que quero fazer é Psicologia Clínica e não uma vertente voltada para a Psicologia das Organizações.

 

“As mulheres convivem pouco, em comparação com os homens, que vão beber uma cerveja ou jogar à bola. Grande parte das oportunidades de emprego surgem nessas ocasiões.”

 

Outro dos seus grandes interesses é o networking feminino. De que forma se envolveu com esse tema?

Mais ou menos na altura em que saí da NOS, tinha a perspectiva de que as mulheres convivem pouco, em comparação com os homens. Nós tipicamente saíamos do trabalho e íamos para casa, tínhamos os filhos. Os meus amigos não: iam beber uma cerveja e jogar à bola. Acontece que grande parte das oportunidades de emprego surgem nessas ocasiões. Queria juntar um grupo de mulheres interessantes, que eu até costuma dizer que idealmente seriam “mulheres com mau feito”, que se reunissem para falar e debater questões.

No início foi difícil convencer as pessoas, perguntavam-se e eu ia vender colchões ou Tupperware, achavam estranho. Mas acabei por conseguir e o grupo durou cerca de um ano, com reuniões mensais em que escolhíamos um tema para debater. Essas tertúlias permitiram-me conhecer mulheres incríveis e super interessantes, fora da minha esfera profissional, porque eram recomendadas por outras pessoas. Um dos temas que era muito comum era o do sentimento de culpa omnipresente, e se nos sentíamos inteiras e completas — a grande pergunta de “O que é que eu estou a fazer com a minha vida?”

Que conselhos deixaria a uma jovem empreendedora ou jovem executiva?

Precisamos de audácia e coragem, sim, mas não temos de ser sempre guerreiras, daquelas que dão murros na mesa. Dediquem tempo a perceber bem quem são e para onde querem ir, quais as vossas fragilidades — e não tenham medo delas. E procurem sempre ajuda e apoio. Há outras pessoas, e mulheres sobretudo, com experiências de vida similares, que já tiveram os mesmos problemas e dúvidas, não devem ter vergonha de partilhar.

É bom ter também a flexibilidade para fazer ajustes. Às vezes temos a certeza que o nosso caminho é aquele, mas o facto de mudarmos não significa que somos vulneráveis — aliás, a vulnerabilidade pode ser algo positivo. Não tentem ser pessoas que não são: se são mais introvertidas e não são naturalmente audazes, não há mal nenhum em perceber em que área estão mais confortáveis. Procurem alguém com essa audácia e coragem para aprender com ela. Confiem que há sempre alguém com algo para nos ensinar e que as pessoas, na maioria, são boas e disponíveis para nos ouvir e aconselhar.

 

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