A entrada na Autoeuropa logo a seguir à faculdade não assustou Sandra Augusto. Habituada já a pisar terrenos masculinos – desde o 10.º de escolaridade que era das poucas raparigas da turma -, não se deixou impressionar com as especificidades da indústria automóvel, que ainda hoje tem áreas nas quais as mulheres não se querem especializar. “Já lá vão trinta anos que estou quase sempre inserida em ambientes de homens e sempre me senti perfeitamente à vontade, aliás, durante algum tempo até achei que trabalhar com mulheres seria uma confusão”.
A carreira profissional de Sandra tem sido feita na Autoeuropa. Formada em Engenharia Eletrónica no ISEL começou por dar assistência aos equipamentos que estavam na linha de produção. “Foi assim que comecei, eu e os outros homens da área, e eu era praticamente a única mulher na montagem. A partir daí tive funções muito diferentes, estive em todos os edifícios da empresa, já trabalhei em todas as áreas”, conta.
Sempre gostou de carros, de correntes, sejam elas fortes ou fracas, de energia. A mãe ainda tentou que fosse para Química, mas em vão.
Hoje é diretora de Logística deste gigante automóvel em Portugal e, no conjunto das 119 fábricas da empresa espalhadas pela Europa, Sandra é também a única mulher a exercer esta função.
Desde cedo percebeu que era uma entre muitos. Há 25 anos não era comum as meninas escolherem Engenharia. “Para além da Primeira-Ministra Maria de Lurdes Pintassilgo não devia haver muito mais”, relembra. Mas ela sempre gostou de carros, de correntes, sejam elas fortes ou fracas, de energia. E avançou para uma área onde “nos intervalos das aulas se jogava mais snooker e à bola do que se liam revistas para aprender os truques de maquilhagem”. A mãe ainda a quis convencer a estudar Química, porque “de todas as áreas da ciência esta era a mais feminina”. Mas em vão.
Não são só as mulheres que têm preconceitos de género
Na Autoeuropa continuou em terreno masculino e sempre a dizer que nem por isso as áreas técnicas são piores para trabalhar. Há vantagens e desvantagens. Mas não são só os homens que têm preconceitos de género. “Uma mulher de Recursos Humanos ainda valoriza mais uma opinião masculina, especialmente se falarem de assuntos muito técnicos, e não há dúvida de que uma mulher tem sempre que se afirmar mais. Mas a competência acaba com tudo isto e nós só somos discriminadas se permitirmos que nos olhem assim”. E ela sabe do que fala.
A licença de maternidade trocou-lhe um pouco as voltas na empresa. Acabou por dar um passo atrás, mas não foi tempo perdido.
Quando se aproximou o dia de ir para a maternidade, Sandra avisou o chefe da sua divisão que voltaria passados 3 meses. Na altura a licença parental já era de quatro meses mas ela optou por dividi-la com o marido e regressar um mês antes. E apesar de algumas peripécias – o marido partiu um pé e ela acabou a tomar conta de dois – Sandra fez questão de voltar no dia combinado. Mas quando voltou já tinha o lugar ocupado. “O meu chefe achou que eu não voltaria tão cedo. Como na Alemanha era muito comum as mulheres ficarem dois ou três anos em casa com as crianças, pensou que eu me iria encantar com a bebé e não viria nos próximos meses. Por isso foi buscar um diretor à Alemanha para ocupar o meu lugar”.
O chefe acabou por arranjar uma solução: o colega alemão ficaria “como ministro dos Negócios Estrangeiros” e ela “com a Administração Interna”. “Ou seja, eu comunicava cá dentro e ele para fora”, explica.
Mas na pasta da Administração Interna não se deu bem. “Como é evidente, nunca iria funcionar”, esclarece ela. Felizmente surgiu uma vaga para assessor do diretor da fábrica e Sandra candidatou-se e, mesmo perante a estranheza dos colegas que não entendiam como ia ela aceitar uma posição hierárquica inferior, aceitou.
Na altura era gestora de produto, tinha três equipas sob a sua responsabilidade, mas não teve outra opção. Aceitou e diz que esta foi uma das suas melhores decisões. “Gostei imenso daquela função que me deu uma visão completamente diferente da fábrica. Já tinha trabalhado em processo ligado à produção, já tinha trabalhado em produto, e como assessora consegui ter outra noção do funcionamento da fábrica. E ainda consegui melhorar imenso o alemão”.
“[Se tenho um furo] mudo eu o pneu, tenha ou não unhas de gel”, garante Sandra.
Sandra não gosta de dramatizar e resume este “incidente de percurso” de uma forma pragmática: são consequências a que estamos sujeitas e a que os homens não estão. E nem tenta “tirar proveito de ser mulher”. Nem quando tem um furo no pneu do carro. “Mudo eu o pneu, independentemente de ter ou não unhas de gel. Aliás, consigo mudar o pneu e não estrago as unhas e quando não há tanta força salta-se mais em cima da chave de rodas”.
Um ambiente hostil aos vestidos
Agora na direção do departamento de Logística, onde está há pouco mais de cinco anos, Sandra Augusto continua a gerir bem as discriminações de género. Num evento recente da Volkswagen na Alemanha, destinado a funcionários da empresa candidatos a funções disponíveis na China, confrontou-se com outra situação embaraçosa. Não para ela, que diz já reagir com naturalidade, mas para o colega que a acompanhava e que trabalha no equipa que ela dirige. “A senhora que explicava as possibilidades de integração no país falava comigo como se eu fosse mulher do meu colega e não parava de me referir as imensas atividades com que eu poderia ocupar o tempo. A verdade é que ela não percebeu logo que eu também era candidata a um lugar para trabalhar”. O colega, claro, estava constrangido por ver a chefe assim tratada mas ela diz que já aprendeu a divertir-se com isso.
As feiras em que tem de participar são outro exemplo. “Acontece muito não falarem diretamente comigo porque eu estou acompanhada por um colega e nesse caso dirigiram-se diretamente a ele”, comenta.
Mas se há algumas experiências constrangedoras, outras há muito mais complicadas de gerir e nem por isso lhes vira a cara. Como já aconteceu em alturas de greves dos trabalhadores prestadores de serviços (a logística operacional dos que transportam peças na linha de montagem não é feita por funcionários da Autoeuropa) e Sandra já teve de intervir. “Uma vez alguém me avisou que eles não iam arrancar com o trabalho e sem peças a Autoeuropa não produz. E eu tive que descer ao local do plenário, onde estavam maioritariamente homens, e dialogar com eles. Mas os assuntos têm de ser tratados independentemente do género e também aqui ele não faz diferença”.
Sandra confessa que não se incomoda por estar num meio ainda muito masculino. Situação mais difícil para ela foi quando chegou ao liceu e percebeu que só havia três raparigas numa turma de 30 alunos. “Mas claro que gostava de poder ter o guarda-roupa com mais saias e vestidos e aqui não há muitas oportunidades de os usar. A fábrica é um ambiente hostil aos vestidos! Mas há uma coisa de que não abdico: ninguém me tira os saltos altos! E passo o dia a trocá-los por botas sempre que tenho de ir à fábrica mas prefiro isso a abdicar deles”.
A psicologia é uma paixão que deixou para trás, mas uma certificação em business coaching pode dar-lhe agora uma oportunidade.
O departamento de Logística que dirige (composto por cinco divisões e 130 funcionários que lhe reportam diretamente) atingiu a igualdade de géneros. A última estatística indicava uns saudáveis 50-50 e estes números agradaram muito a Sandra, que diz que não gosta do feminismo mas é a favor da paridade.
Mas ela também gostava de profissionalmente conseguir abraçar outro desafio: ter a experiência de exercer uma função no estrangeiro e este é um dos seus cenários de evolução profissional. O outro é o business coaching e para isso já anda a preparar a sua certificação. Finalmente, irá trabalhar mais com a área da psicologia, que sempre a apaixonou mas que ficou parada para poder dar prioridade ao mundo da eletrónica e dos automóveis.