Rita Annes cresceu entre livros, mas não propriamente os de aventura ou de histórias de encantar que se leem na infância. Em vez disso, eram manuais de Medicina, Engenharia ou Informática, editados pela empresa que o avô, Frederico Annes, fundou em 1963. Rita, 39 anos, está diretamente ligada à gestão da Lidel desde 2006, primeiro como diretora de marketing e vendas diretas para Portugal, depois como diretora comercial internacional para o Brasil e PALOP e, desde março de 2011, no cargo de diretora comercial e de marketing do grupo. É ainda partner da empresa e membro da direção da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros.
Na adolescência, era nos escritórios da editora que passava grande parte das férias da Páscoa e do Natal, ocupada com “tarefas rotineiras e repetitivas que, no dia a dia, as pessoas não têm muito tempo para fazer”, como mailings, ordenar arquivos e, mais tarde, cancelamentos das fichas de artigo no sistema informático. “Sempre tive um espírito independente e gostava de ganhar o meu dinheiro. Além disso, tinha prazer em vir trabalhar para cá por ser a empresa criada pelos meus avôs. Eu fui a primeira neta, numa família onde há muito tempo não nasciam crianças e tinha uma ligação muito forte com eles.”
Cresceu a conhecer de perto o negócio livreiro, dentro e fora de portas. No fim do 12º ano, passou um mês em França a estagiar num grupo editorial parceiro da Lidel há alguns anos. O objetivo era tomar contacto com várias áreas da empresa, mas Rita rapidamente “estacionou” na livraria, onde gostava do contacto com o público. Logo em seguida, fez o mesmo durante mês e meio em outro grupo editorial inglês. Foi uma espécie de Erasmus dos estágios.
Quando chegou a altura da universidade, ainda pensou inicialmente num curso de Gestão, mas as voltas da vida levaram-na para Relações Públicas no Instituto de Novas Profissões. Mesmo enquanto estudava, trabalhou a tempo parcial na Lidel, sobretudo no primeiro e no quarto ano. Mais tarde, ainda fez uma pós-graduação em E-Business no ISEG e um curso de gestão comercial no INDEG-ISCTE. E a vontade de aumentar a formação académica continua, confessa.
“O meu avô nunca pensou fundar uma empresa de livros”
No próximo mês de março a Lidel completa 55 anos – é a segunda editora familiar 100% nacional mais antiga. Mas esta é também a história de uma criação quase involuntária. Frederico Annes era dono de uma empresa de distribuição de produtos farmacêuticos manipulados, importados sobretudo de França. Um dia, um dos seus contactos na embaixada de França falou-lhe de uma editora gaulesa de enciclopédias de Medicina que procurava distribuidora no nosso país, pedindo a Frederico Annes para assumir esse papel. A princípio ainda recusou, justificando que não percebia nada de livros ou de empresas editoriais, mas pouco tempo depois lembrou-se de um amigo que regressara de Angola recentemente e precisava de trabalho. Sugeriu então à embaixada que fosse o amigo a encarregar-se dessa missão.
“O meu avô nunca pensou fundar uma empresa de livros, lutou bastante contra isso, mas os franceses tinham tão boas referências dele e tanto insistiram, que resolveu criar a Lidel”, recorda Rita Annes, diretora comercial e de marketing da Lidel.
No entanto, a vida viria a trocar-lhe as voltas quando o amigo resolveu voltar a emigrar pouco depois. O avô da Rita voltou à embaixada, explicou a situação, e ficou descansado, pensando que o negócio ficava sem efeito, mas já era tarde: um camião cheio de enciclopédias francesas estacionava à porta do seu estabelecimento lisboeta, dias depois, quando Frederico Annes estava em viagem de trabalho. “O meu avô lutou bastante contra isso, mas os franceses tinham tão boas referências dele e tanto insistiram, que ele resolveu separar o negócio dos livros do negócio da empresa farmacêutica, fundou a Lidel e acabou por ficar muito amigo do dono da editora de enciclopédias. Ainda hoje somos distribuidores exclusivos deste produto em Portugal, embora a escola francesa tenha já muito pouca influência na Medicina no nosso país, atualmente”, conta Rita.
A entrada do pai de Rita nos negócios familiares trouxe uma diversificação maior do catálogo, passando a distribuir também edições técnicas inglesas e, mais tarde, brasileiras. A Lidel torna-se assim a maior distribuidora nacional de livros técnicos.
É em 1989 que se dá a grande viragem, com a Lidel a tornar-se editora e a publicar livros técnicos de académicos e especialistas nacionais. “Mantemos algumas distribuições, umas por nossa vontade e outras porque as editoras estrangeiras não nos querem deixar.”
Hoje, o grupo é líder na edição de livros de Medicina, Informática e no ensino de Português para estrangeiros, editando ainda publicações de Gestão e Economia, Engenharia, Ciências da Terra, Ciências Sociais, Forenses e da Educação. A única área técnica em que não atua é o Direito. É uma referência mundial em métodos de ensino de português como língua não materna, o primeiro dos quais datado de 1989, direcionados sobretudo a estrangeiros, bem como a filhos de emigrantes portugueses. A ideia de investir nesta área veio, mais uma vez, por influência externa e por um feliz acaso. “O meu avô almoçava muitas vezes com o diretor da escola de línguas Cial, que lhe disse que o português para estrangeiros era cada vez mais procurado, apesar de não existir absolutamente nada publicado nessa área. A escola tinha formadores e até uns manuais. Assim surgiu mais essa parceria, com o primeiro método estruturado, o Português Sem Fronteiras, que levámos um pouco por todo o mundo.”
“As empresas familiares são muito mais ligadas aos seus timoneiros”
Hoje, a Lidel tem um extenso catálogo nesta área. “Em 2017 fizemos um acordo com uma editora indiana que fez uma edição do nosso Português XXI e das Gramáticas Ativas. Onde quer que alguém queira ensinar ou aprender português pelo mundo fora, nós queremos estar presentes com os nossos livros.” Recentemente, celebrou também um protocolo com o Instituto Camões, tornando-se empresa promotora da língua portuguesa. “É um reconhecimento que nos deixa muito felizes. Fomos uma das empresas pioneiras a aderir a este protocolo. Escolhemos algumas áreas de atuação para este primeiro biénio de apoio, como a formação de professores.”
“Nas empresas familiares, acabamos por fazer sempre um bocadinho de tudo e somos a referência para fora. É um desafio habituar as pessoas a que não tem de ser o dono da empresa a tratar de tudo com elas.”
Um dos maiores desafios de trabalhar em família é, para Rita, desligar da empresa quando estão juntos. “Há menos histórias e ideias de outras empresas para trocar”, sorri. “Para mim sempre foi muito natural, porque cresci neste contexto, mas tenho aprendido a desligar mais, nos últimos anos, porque acredito que também precisamos de tempo para sermos os pais, filhos, primos e tios uns dos outros.” Por outro lado, as empresas familiares são muito mais ligadas aos seus timoneiros do que outras organizações não familiares, onde a rotatividade de diretores é muito maior e onde a relação com os donos da empresa é muito maior e direta, observa Rita. “Nas empresas familiares, acabamos por fazer sempre um bocadinho de tudo e somos a referência para fora. É um desafio habituar as pessoas a que não tem de ser o dono da empresa a tratar de tudo com elas. O meu avô trabalhou até aos 85 anos. O meu pai também gosta muito de trabalhar e certamente não irá desligar-se completamente de um dia para o outro. Mas, ainda assim, há a preocupação de pensar como se vai fazer a transição, quando há figuras tão fortes que as pessoas reconhecem além da marca.”
“Tivemos de convencer os autores portugueses a escrever”
Nada se faz, no entanto, sem a contribuição dos autores — académicos, cientistas e especialistas. “Tivemos que convencer os autores portugueses a escrever. Antes, tudo o que vinha de fora é que era considerado bom. Muitas pessoas nem sequer pensavam em publicar o seu próprio conhecimento, muito menos vê-lo aceite pela comunidade científica nacional. Depois, foi preciso convencer os professores a recomendar livros de autores portugueses e os profissionais a reconhecer a sua qualidade. Foi um processo bastante longo e arriscado, que os meus pais e e o meu tio conseguiram desenvolver. Tivemos que aprender os processos editoriais e as suas boas práticas, bem como ajudar os autores a organizar um livro, de modo a que seja uma ferramenta prática de aprendizagem.”
O grupo orgulha-se de ter ajudado a dar reconhecimento ao saber técnico-científico nacional e de as suas edições estarem a par das internacionais, não só a nível científico, como também de apresentação gráfica.
Para se assegurarem que procuram autores que representam, de facto, uma mais-valia técnico-científica, têm também a ajuda de uma equipa de consultores especialistas em cada área. O grupo sente o orgulho e responsabilidade de ter ajudado a dar um novo reconhecimento e respeito ao conhecimento técnico-científico nacional. “Os autores dizem-nos isso frequentemente e tecem elogios ao nosso catálogo e ao trabalho que temos feito. Os primeiros livros que publicámos eram mais introdutórios e nem sequer eram a cores. Mas rapidamente evoluímos e já temos, há muitos anos, edições que — como nos é dito em feiras internacionais, como a de Frankfurt — estão completamente a par dos internacionais, não só a nível científico, como também de apresentação gráfica. Temos muito orgulho nisso.”
A diversificação do catálogo provou ser uma das estratégias mais eficazes da Lidel ao longo dos anos e levou o pai de Rita, Frederico Carlos Annes, a criar outras marcas, como a FCA, que congrega títulos na área da Informática, tecnologias web e industriais. “A FCA foi a primeira editora a participar no maior evento anual da Autodesk Brasil, que reune os profissionais e estudantes de todo o país: o Autodesk University. Na época éramos, já há muitos anos, a única editora de língua portuguesa reconhecida por este fabricante de software como Autodesk Autorized Publisher”, lembra Rita.
“Quando se trabalha com o mundo, temos mais oportunidades”
Foi também a diversificação que os ajudou a fazer face às épocas de crise, encontrando novas oportunidades e públicos. “A Pactor, a nossa editora dedicada às Ciências Sociais, Forenses e da Educação, tem vindo a afirmar-se cada vez mais em especialidades como o serviço social ou a psicologia. Estamos sempre à procura de novas áreas para desenvolver, indo ao encontro do interesse de novos profissionais e estudantes, por isso conseguimos fazer a compensação entre áreas que não estão em alta com outras em que vamos encontrando novos públicos. Além disso, desde que editamos somos também exportadores. Quando se trabalha com o mundo todo, acabamos por ter mais oportunidades.”
Hoje, 40% das vendas da Lidel destinam-se à exportação. O Brasil é um dos mercados em que a editora mais tem apostado.
De facto, 40% das vendas da Lidel destinam-se, hoje, à exportação. O Brasil é um dos mercados mais interessantes para os livros das áreas técnicas da editora. “Apesar das crises recentes, os nossos livros apareceram lá primeiro até do que algumas edições locais. Além disso, temos bastantes temáticas em que até há poucas publicações no Brasil. É um mercado com muitas edições locais, os livros importados chegam sempre a um preço diferente, mas a fama do nosso catálogo chegou lá.” A exploração de oportunidades e contactos, bem como as estratégias de promoção no mercado brasileiro, são uma das conquistas profissionais de que a diretora de comercial e de marketing mais se orgulha.
Muitas das publicações das áreas técnicas do grupo Lidel são também recomendadas nas faculdades angolanas e moçambicanas. “Os PALOP são mercados mais institucionais, as bibliotecas universitárias têm um papel muito importante na disponibilização do material à população. Procuramos acompanhar sempre os países onde os nossos livros estão, fazendo nós próprios a promoção. Visitamos universidades e iniciativas relevantes, como o congresso da Ordem dos Médicos de Angola.”
O ano de 2017 foi de recuperação no setor livreiro. A pensar em crescimento, o grupo aposta em novas estratégias. Uma delas é o desenvolvimento de uma linha de livros de ensino de português do Brasil para estrangeiros. A identificação de oportunidades em profissões de futuro e alta empregabilidade, como a ciência dos dados, também não tem sido esquecida, traduzindo-se num aumento do catálogo da sua chancela dedicada à informática. Querem também fazer chegar mais longe o ensino do português, aproveitando o facto de “Portugal estar na moda” e muito mais gente querer aprender a nossa língua por cá. “É realmente um prazer e orgulho podermos levar os autores portugueses, a nossa língua e agora o nosso lindo país (através dos livros fotográficos da coleção Panorâmico) aos 5 continentes”, reconhece a neta do fundador.