“Uma mulher num mundo de homens”, dizem-nos sobre esta engenheira eletrotécnica de 58 anos, formada pelo Instituto Superior Técnico em 1981. Há 10 anos na REN, Maria José Clara é a atual diretora de relações institucionais e representa a organização em vários organismos internacionais do setor da energia, tendo já assumido também os cargos de diretora-geral e diretora de gestão de mercados. Antes disso, foi diretora-geral da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos ERSE, onde esteve entre 1997 e 2007 enquanto directora-geral, responsável pelas direções de regulação, temas europeus, pelas áreas de informática e documentação. Entre 1983 e 1996 fez carreira na EDP, primeiro na área de planeamento da operação do sistema elétrico nacional e posteriormente no gabinete de planeamento estratégico do Grupo.
Numa conversa descontraída, relembrou marcos importantes da carreira, ficámos a saber como funcionam os meandros das decisões europeias na área da energia e ainda quais as suas preocupações com o futuro dos jovens profissionais portugueses.
Quando se formou no IST não existiam muitas mulheres em engenharia eletrotécnica…
Havia mulheres nos anos acima e abaixo, por vezes encontrávamo-nos e cheguei a ter aulas com outras senhoras, mas na minha turma, durante muito tempo, fui a única mulher.
“O meu pai era engenheiro civil e talvez nos tenha influenciado um pouco, a mim e às minhas irmãs — uma é engenheira, outra economista — dando a entender que tínhamos de ser alguém na vida e fazer por nós.”
Uma jovem estudante de engenharia não se se sente solitária numa turma só de homens?
Sente. Gostava de ter tido uma turma mista, até porque passei de um liceu feminino, para uma faculdade com uma maioria masculina. Mas não me custou muito; era diferente. Também fiz muitos bons amigos, muitos dos quais ainda hoje o são. Tinham, acho eu, conversas entre eles que não tinham comigo. Mas acho que correu sempre bem.
O que a levou a escolher a Engenharia?
O meu pai era engenheiro civil e talvez nos tenha influenciado um pouco, a mim e às minhas irmãs — uma é engenheira, outra economista — dando a entender que tínhamos de ser alguém na vida e fazer por nós. Claramente, lá em casa nunca passou pela cabeça de ninguém não ter um curso superior. Talvez todas tivéssemos alguma apetência para a área das ciências. Eu em particular gostava muito de matemática. Lembro-me de perguntar: qual é o curso de Engenharia que tem mais matemática? E de me dizerem: “Eletrotecnia”. Portanto, fui para Eletrotecnia atrás da Matemática, mas sem querer ter um curso de Matemática, porque não queria como profissão ser professora. Hoje a matemática é aplicada nas finanças, na informática, mas naquele tempo não era assim. Quem tirasse Matemática ia para professor de Liceu. Não é que não goste de dar aulas — quando estava no 5º ano do Técnico, dei aulas no liceu, gostei imenso e até acho que foi uma experiência útil para a minha vida, mas não queria fazer aquilo a vida inteira. Tinha de ter uma profissão que me abrisse todos os horizontes, e a Engenharia tem um horizonte completamente diferente.
O que queria fazer quando acabou o curso?
Queria trabalhar na área em que me tinha formado e de que gostava, Engenharia Eletrotécnica — que no meu tempo se chamava “Ramo de Energia”, que é a alta tensão, redes. De facto, foi para aí que consegui ir. Não foi logo inicialmente, porque havia muita falta de emprego em 1981-1982, quando me formei. Apareceu a oportunidade de ir para uma fábrica de material elétrico, em Carcavelos. Estive lá quase dois anos e não desgostei, mas não era aquilo que eu queria. Quando a EDP abriu um concurso para engenheiros eletrotécnicos, respondi. Acho que havia duas vagas e eu fui escolhida para uma. Entrei para uma área de que gostava imenso, planeamento de redes e planeamento da operação do sistema.
“Em Portugal, ainda continuamos com a Engenharia muito estanque, na minha opinião, muito fechada em si própria, com poucas cadeiras de gestão.”
E o que é que faz uma engenheira responsável por essas áreas?
Não entrei logo para responsável! Trabalhava mais no planeamento da operação, dando indicações a quem está, 24 horas por dia e em tempo real, numa sala a que chamamos a “sala de despacho”, a controlar a entrada e saída das grandes centrais de produção. Fazíamos o planeamento semanal dessa operação, ou seja, a uma semana de distância dávamos indicação de quais as centrais elétricas que iam entrar ou não no sistema: se era carvão, se eram as centrais hídricas do Norte do país. Agora não é assim, porque há mercados a funcionar que naquele tempo não existiam. As centrais entravam em funcionamento por ordem de mérito em termos económicos: as mais baratas primeiro e daí em diante. Mas para isso era necessário que fosse planeado a uma semana de distância — e até a um ano.
É aí que a Engenharia se junta à gestão?
Sim, claramente! Tínhamos de ter em consideração a central do ponto de vista económico, mas também a rede existente, para fazer escoar a energia. Talvez isso me tenha feito tomar a decisão de fazer um MBA, em 1987. A EDP resolveu promover um programa de MBA (que era recente) na Universidade Nova, para os seus colaboradores. Tínhamos um exame de admissão e só existiam 40 vagas — concorreram, ao todo, mais de 200 pessoas. Dessas 40, 10 foram para a EDP. A partir daí, a empresa mandou sempre muita gente fazer o MBA na Nova, o que julgo ter sido muito positivo.
E em que consistem as suas funções atuais, enquanto responsável pelas relações institucionais?
Faço várias coisas, mas talvez a mais interessante e importante, seja a participação da REN numa associação europeia que se chama ENTSO-E e reúne todos os operadores de rede da Europa. É um órgão criado pela Comissão Europeia, que temos de fazer parte e no qual somos chamados a responder a várias solicitações da Comissão. Neste momento, por exemplo, estamos a responder comentando um pacote legislativo novo para a energia elétrica na Europa. Fazemos, através da ENTSO-E, comentários diretos à Comissão sobre o seu pacote legislativo, mas também à Direção Geral de Energia e ao governo português, de forma a auxiliá-los quando forem discutir o pacote legislativo nas reuniões de energia na União Europeia. Para isso é preciso know-how de gestão, mas também é preciso algum know-how eletrotécnico. Pois, às vezes, há coisas que na legislação que simplesmente não fazem sentido do ponto de vista elétrico.
Os seus congéneres europeus têm a mesma formação ou são mais da área da gestão?
Lá fora já existem muitos cursos que combinam a Engenharia com a gestão e é pena em Portugal não termos isso. Por exemplo, a Alemanha tem cursos de Engenharia na área da economia da energia. Em Portugal, ainda continuamos com a Engenharia muito estanque, na minha opinião, muito fechada em si própria, com poucas cadeiras de gestão. A maior parte dos engenheiros em Portugal, mais cedo ou mais tarde, precisam de adquirir conhecimentos de gestão, não é obrigatório ser um MBA. Um engenheiro conhece a produção, mas precisa também de olhar para os seus custos e isso não se faz sem noções de gestão.
“Lembro-me quando me pediram pela primeira vez para ir a reuniões da Eurelectric, em Bruxelas, ainda estava na EDP. Era uma jovem de 30 anos e o resto dos colegas do grupo tinham para cima de 50. Lembro-me de pensar “será que eu estou bem aqui?” e de as primeiras reuniões serem muito difíceis.”
De todos os cargos que ocupou, qual foi o mais desafiante?
Talvez a ida para a ERSE, porque fui iniciar em Portugal o regulador da eletricidade, mais tarde da energia — também teve o gás. Quando lá cheguei, eram três administradores e eu. Isso permitiu-nos criar uma entidade de raiz, da logística aos sistemas informáticos; depois arrancar com o trabalho e criar o know-how que lá existe hoje, criar as equipas, escrever todos os regulamentos, cumprir todas as funções que a legislação tinha atribuído à entidade reguladora. Adorei! Foi uma experiência única na vida e, talvez, a mais gratificante porque acho que, ao mesmo tempo que é um grande desafio, é também uma grande oportunidade para organizarmos uma entidade como achamos que ela deve funcionar, sem constrangimentos. Conseguiu-se criar uma estrutura, na minha opinião, muito flexível, informal e dinâmica, em que as equipas que trabalhavam mudavam sistematicamente de acordo com os assuntos. Foi uma forma de trabalhar muitíssimo interessante e que eu acho que criou escola.
E qual o momento mais difícil que enfrentou até agora?
Vamos tendo dificuldades diferentes ao longo da vida e carreira, seguranças e inseguranças diferentes. Lembro-me quando me pediram pela primeira vez para ir a reuniões da Eurelectric, em Bruxelas, ainda estava na EDP. Participei em grupos de trabalho que discutiram a primeira diretiva comunitária para o sector da energia, em 1992. Quando entrei, era uma jovem de 30 anos e o resto dos colegas do grupo tinham para cima de 50. Lembro-me de pensar “será que eu estou bem aqui?” e de as primeiras reuniões serem muito difíceis. Além de ser jovem, era mulher e vinha de um país pequeno, várias coisas que não facilitavam a minha presença ali. Mas, passado algum tempo, já me sentia bem e ganhei o respeito das outras pessoas.
Qual é o grande desafio das funções que ocupa agora?
Acho que a participação da REN na ENTSO-E não só é desafiante como extremamente importante, porque fomos perdendo um pouco a autonomia em termos de política energética. Portugal deixou de poder dizer “bom, isso é lá em Bruxelas, depois nós aqui logo vemos!” Acabamos por ter de redefinir legislação nacional que implementa a legislação europeia. Depois, tenho outros desafios de que gosto. Sou representante da REN no Conselho do Operador de Mercado Ibérico, MIBEL. Outro que também acho um grande desafio é a participação enquanto representante da REN no board do Coreso, uma empresa internacional, criada há uns anos pela França e Bélgica, e cujos acionistas são operadores de rede como a REN. Hoje inclui o operador de rede francês, belga, inglês, italiano, espanhol, português e um alemão — na Alemanha há quatro operadores. Essa empresa tem uma Sala de Despacho, como aquela que eu falei há bocado, a funcionar 24 horas por dia, por turnos. Tem um mapa gigante com a rede europeia e supervisionam as redes de todos estes países. Era uma função que até agora não existia.
“O meu trabalho não é rotineiro. Vou tendo as várias solicitações vindas da Europa, os temas que estão em debate, os grandes papéis que estamos a preparar e, de certa forma, até a investigar modelos futuros de funcionamento do mercado e do setor. Chego a ir uma vez por mês a Bruxelas, por vezes duas, e muito a Madrid, para as reuniões do MIBEL.”
Como é que é um dia típico de trabalho seu?
É muito variável, porque o meu trabalho não é rotineiro. Vou tendo as várias solicitações vindas da Europa, os temas que estão em debate, os grandes papéis que estamos a preparar e, de certa forma, até a investigar modelos futuros de funcionamento do mercado e do sector. Não tenho propriamente uma agenda marcada. Chego a ir uma vez por mês a Bruxelas, por vezes duas, e muito a Madrid, para as reuniões do MIBEL. Também sou membro do board, em nome da REN, no MIBGas, também em Madrid. A única parte que às vezes, me cansa um bocadinho, confesso, é passar tanto tempo nos aviões.
Ainda sente que ainda é uma mulher num meio de homens?
Sou, infelizmente, e às vezes tenho pena. Mas até brinco com isso. Quando entrei para representante da REN nos Conselhos de Administração dos operadores de mercado – do OMIP e do OMEL -, havia apenas outra senhora, que tinha sido diretora geral de energia em Espanha. Duas mulheres em 15 ou 16 administradores. Depois ela saiu e eu fiquei sozinha naqueles Conselhos, há uns anos. Mas sinto-me sempre muito bem tratada e respeitada.
Faz falta mais diversidade no sector?
Faz imensa. Mas não é só aqui, não é? As senhoras têm uma forma de estar e uma forma de gerir substancialmente diferente dos homens. Não é melhor nem pior, é diferente. Não gosto muito de generalizações, porque há sempre exceções. Mas na análise que faço ao longo da minha vida e carreira, tenho notado que os homens são muito mais focados num tema ou dois de cada vez; as mulheres conseguem ser mais polivalentes e gerir dez temas ao mesmo tempo. Portanto, a mistura claro que é útil. A forma de estar e de se relacionarem, também é diferente e eu acho que o equilíbrio é muito importante e ajuda.
Que características são necessárias para se ser uma boa Engenheira Eletrotécnica?
Os conhecimentos que se adquirem no curso têm de estar consolidados, o que nem sempre acontece. A partir daí, depende da vontade de cada um de cumprir o melhor possível e todos os dias aprender. É preciso ir alargando o leque de conhecimentos — os conhecimentos necessários para um engenheiro eletrotécnico trabalhar na EDP não são exatamente iguais aos que são necessários, por exemplo, na Efacec, onde se constroem transformadores. Muito importante também é a aprendizagem do relacionamento humano. Há uma estrutura hierárquica e o relacionamento entre colegas, com os colaboradores, com os chefes é fundamental no crescimento profissional. O trabalho em equipa, o saber relacionar-se, ensinar, mas também ser ensinado, é fundamental. A partir de certa altura na carreira, temos de criar equipas. As pessoas que se limitam apenas a trabalhar por si — e conheci vários ao longo da carreira — não são capazes de criar equipas de trabalho nem de descentralizar as suas funções. Muitas vezes, porque acham que só eles é que sabem fazer e isso é um erro gigante, pois não permite que as pessoas cresçam. Sempre procurei criar equipas e ensinar-lhes o que sei, mas quando vejo que as pessoas têm possibilidades de voar, às vezes em voos até mais altos que os meus, é preciso deixá-las também ir. A maior parte das chefias tem tendência para dizer logo: “Não! Não posso prescindir!” Eu digo imediatamente sim: se é melhor para a pessoa e é melhor para a empresa, é melhor para nós todos.
“Neste século, os jovens têm de pensar que também podem criar os seus próprios empregos, sozinhos ou com outros colegas, e ter um grau de empreendedorismo que não se exigiu tanto a nós. Portugal tem de seguir esse caminho do jovem empreendedor.”
Que conselho daria a uma jovem engenheira que se forma nesta área?
Continuaria a dizer — aliás digo-o aos meus filhos — ganhem alguma experiência de trabalho e depois complementem a vossa formação como eu fiz, com gestão, Economia, o que quiserem. Hoje em dia, aos jovens, eu diria mais: se arranjarem um bom emprego que vos faça felizes e onde vejam perspetivas de carreira, ótimo; mas se não conseguirem — que é o que está a acontecer muito, inclusive a jovens engenheiros — e for preciso irem lá para fora, não vejo drama nenhum nisso. Já tenho um filho a trabalhar no estrangeiro. Neste século, os jovens têm de pensar que também podem criar os seus próprios empregos, sozinhos ou com outros colegas, e ter um grau de empreendedorismo que não se exigiu tanto a nós. Portugal tem de seguir esse caminho do jovem empreendedor. A grande aposta será no desenvolvimento da nossa economia através de pequenas empresas, que depois algumas se transformarão em médias.
Quantos filhos tem?
Tenho três. Um está em Londres a fazer doutoramento, com uma bolsa de estudo atribuída por uma universidade inglesa, e está na área de Finanças. Tenho uma filha cá a fazer o mestrado em Educação de Infância, depois de se formar em Serviço Social. Há imenso trabalho na área social; não há empregos. O outro está em Engenharia Civil, uma das engenharias que hoje está um bocadinho em crise em Portugal. Também lhe aconselho: ou vais para fora, como o teu irmão quis ir, ou arranjaremos forma de criares o teu próprio emprego por cá, se não quiseres ir.
E quando não está a trabalhar e a pensar em energia, o que gosta de fazer? Quais as suas outras paixões?
Tenho uma casa de fim-de-semana que me entretém muito, porque gosto de fazer coisas, quer no jardim quer em casa — gosto imenso de restaurar coisas antigas, móveis, brinquedos antigos que tenho lá. Herdei montes de coisas que eram da minha mãe e dos meus tios, algumas estão velhas e eu vou restaurando. Também leio, vou ao cinema, vou à praia, como toda a gente. No inverno, divirto-me a fazer aquele tipo de coisas.
