A entrada para os escritórios da Gelpeixe mostra as marcas de uma história de família que orgulham Lídia Tarré Fernandes, 37 anos, administradora executiva da empresa: um painel de azulejos evoca o passado rural daquele mesmo sitio, na localidade de Sete Casas, Loures, retratando dois casais trabalhadores, bisavós de Lídia Tarré, e a nora construída por um deles (que ainda se ergue mesmo ali ao lado); a casa onde a avó nasceu e onde mais tarde surgiria a segunda câmara frigorífica da fábrica; a mesma Igreja que ainda se avista ao fundo da povoação. E no lobby está a escultura de uma árvore em madeira reciclada, em que cada folha tem inscrito o nome de um funcionário que entrou para os quadros da empresa — do fundador, o avô Francisco Tarré Fernandes, até aos operários das linhas de produção. Hoje trabalham ali 186 pessoas.
O negócio que veio do frio
Lídia Tarré, terceira geração da família à frente da Gelpeixe, tem em mãos a gestão de pelouros como a exportação ou marketing, decisivos para o crescimento desta empresa de processamento e comercialização de alimentos congelados. “Há 40 anos, quando a empresa nasceu, havia património e terrenos, mas não havia dinheiro. Foi aqui, nas hortas dos meus bisavós, que foi possível construir a Gelpeixe. Achamos que é importante lembrar as nossas origens. É muito bom sabermos para onde queremos ir, mas também de onde viemos.” Tudo começou com a Casa Fernandes, uma pequena loja de eletrodomésticos localizada na rua principal de Loures, que Francisco Tarré, avô de Lídia e proprietário, juntamente com os filhos, Manuel e Joaquim, foram transformando num nome importante da indústria alimentar. “Sempre tivemos no nosso ADN, a parte comercial, de relações humanas e networking”, conta Lídia.
Em 1977 viram uma oportunidade de negócio na venda de arcas frigoríficas para armazenar gelados da Olá e produtos congelados da Gelmar. Depois começaram a vender os gelados, para garantir que os comerciantes não devolviam as arcas. Para contornar a sazonalidade do negócio, passaram à comercialização de peixe congelado. Inicialmente, contavam apenas com cerca de 15 operários que cortavam e embalavam o peixe, distribuído depois por pequenos comércios nos arredores de Lisboa. No início da década de 1990, com o advento das grandes superfícies, já vendiam para todo o país. Em 2014, Manuel Tarré, presidente da Gelpeixe, comprou a parte do irmão na empresa.
A caminho da expansão
Hoje a Gelpeixe é uma das PME de referência do setor alimentar em Portugal, com 8% da quota de mercado nacional. Diariamente, saem da fábrica de Loures 40 toneladas de pescado para venda. Em 2017, o volume de negócios da empresa ultrapassou os 50 milhões de euros, 20% dos quais provenientes da exportação para um total de 20 países. De entre os produtos destinados a mercados internacionais, 50% são outros alimentos ultracongelados que não pescado, valor que até há pouco tempo rondava os dois terços. Os maiores mercados no exterior são Angola, Polónia e Espanha, absorvendo cerca de 60% da exportação. “Aproveitamos também o conceito Portugal à mesa”, explica Lídia. “Além da sardinha, carapau, polvo ou pescada, também promovemos outros produtos típicos da gastronomia nacional, como o pastel de nata, pastel de bacalhau, rissol de leitão, ou seja, funcionamos como embaixadores da nossa cultura.”
Em 2017, a empresa iniciou um processo de modernização e expansão: estão a construir novas câmaras frigoríficas, a montar equipamentos que vão aumentar a sustentabilidade energética da fábrica, fizeram um rebranding dos seus produtos e assinaram uma parceria com o armador sul-africano, Sea Harvest.
Os 40 anos da empresa, comemorados o ano passado, marcaram também o início do processo de expansão e modernização da Gelpeixe. O projeto a 4 anos, a que chamaram ‘Moving Forward’, compreende etapas como o rebranding dos produtos (que aconteceu o ano passado), a construção de novas câmaras frigoríficas que vão permitir a Gelpeixe não depender de armazéns externos à fábrica para armazenar produtos congelados; a montagem de novos equipamentos produtivos e painéis solares para aumentar a sustentabilidade energética, além da transferência de todo o sistema de informação. Estão também a automatizar alguns processos de produção e assinaram uma parceria com a Universidade do Minho para o desenvolvimento de nova tecnologia a aplicar na fábrica. O investimento total para todos estes projetos ronda os 7 milhões, segundo Lídia Tarré.
Em 2017, a Gelpeixe tornou-se ainda um dos 22 parceiros privados a integrar o programa operacional Mar2020 que, sob a alçada do Ministério do Mar, se destina a promover a competitividade, bem como a sustentabilidade económica, social e ambiental do sector da pesca e da aquicultura, aumentando o emprego, a coesão territorial e a qualificação dos profissionais do sector. O ano passado, a empresa assinou ainda uma parceria estratégica com a Sea Harvest, um dos maiores armadores sul-africanos, que lhe permite entrar no mundo das pescas, passando a estar presente também na origem da cadeia de produção.
“Sempre pensei em vir trabalhar na Gelpeixe”
As memórias que Lídia Tarré tem da Gelpeixe remontam a toda a vida. “Lembro-me de vir para aqui com 7 ou 8 anos e ver o meu pai a descarregar contentores, de ver chegar a primeira impressora de faturas. Criamos conexões, deixamos de ser os filhos dos patrões para estarmos ali a trabalhar, lado a lado. Ganha-se outro carinho, porque sabemos dar valor ao trabalho, conhecemos a história dos funcionários e isso é fundamental quando gerimos pessoas.” O pai fazia questão que ela e os dois irmãos conhecessem o negócio por dentro, desde cedo, e trabalhassem para ganharem dinheiro para o que queriam ter. Aos 16, Lídia já estava na sala de produção. “Adoro indústria, máquinas, produtividade, otimização…”
Toda a sua formação académica e profissional parece ter sido, aliás, talhada à imagem das necessidades do negócio. “Sempre pensei em vir trabalhar na Gelpeixe, nunca tive outra ideia.” Em criança frequentou a Academia de Música de Santa Cecília; fez depois o ensino secundário na Escola Alemã de Lisboa, mas foi em Gestão que se licenciou pelo ISEG, com especialização em fiscalidade. Seguiram-se uma pós-gradução em controlo de Gestão e Qualidade (Overgest/ISCTE), o programa executivo GAIN da AESE, além de múltiplas formações complementares em matérias como a direção de empresas familiares, lean management, marketing do setor alimentar ou auditoria de qualidade. “Atualmente, a formação passa muito mais por participar em congressos, encontros, seminários que nos fazem estar alerta para as melhores práticas de mercado — e também é muito importante fazer networking. Não deve passar um mês sem que eu faça qualquer coisa.”
“Temos protocolos que nos incitam a trabalhar primeiro em outras empresas, pelo menos durante 3 ou 4 anos. Acredito que é essencial para acrescentar valor quando vimos para a empresa familiar, já com uma visão mais alargada de outros negócios e formas de gerir.”
Antes de se estrear no negócio familiar, Lídia “quis muito ir trabalhar para empresas internacionais”. Fez o estágio na DCSI-IBM, na área de Formação, Recrutamento e Seleção, trabalhou em contabilidade na firma António Borges, entre 2003 e 2004, e em seguida em auditoria e consultoria na Macedo, Caldas & Bento, até 2006. “Na Gelpeixe temos protocolos que nos incitam a trabalhar primeiro em outras empresas, pelo menos durante 3 ou 4 anos. Para mim foi muito importante, porque acredito que é essencial para acrescentar valor quando vimos para a empresa familiar, já com uma visão mais alargada de outros negócios e formas de gerir.”
Há 12 anos na Gelpeixe, a experiência diz-lhe que o segredo do sucesso está na forma como se gere o talento humano. “Sempre achei que tudo começa nas pessoas: se elas estiverem motivadas e formadas, tudo o resto acontece. É muito importante estar ao lado delas e arregaçar as mangas.” Basta dar uma volta pela fábrica com Lídia para perceber que o põe mesmo em prática. Com o sorriso aberto que lhe é habitual, cumprimenta grande parte dos funcionários pelo nome próprio, conhece-lhes as histórias. Mais de metade da força de trabalho está na empresa há mais de 10 anos. Ali aposta-se em políticas de conciliação entre vida pessoal e profissional e apoios variados. As refeições são grátis na cantina da empresa e, uma vez por mês, há mesmo um pequeno-almoço gourmet reforçado. Os funcionários da produção não trabalham à sexta-feira à tarde, fazendo mais uma hora nos restantes dias. Atribuem-se cabazes de natalidade a quem acabou de ser mãe ou pai e existem ainda programas de formação em academias comerciais, de liderança ou business schools. “As pessoas dão valor a isso, veem aqui um porto seguro e acabam por marcar a nossa história de forma especial.”
Este foco na gestão de pessoas também já foi reconhecido com prémios como Excelência no Trabalho na categoria de setor alimentar, atribuído pela Heidricks & Struggles, INDEG/ISCTE e Human Resources Portugal, ou o 3º lugar do prémio Melhor Gestor de Pessoas a dois dos seus diretores (produção e recursos humanos).
“É melhor ser um bom acionista que um mau gestor”
Mãe de dois rapazes, com 7 anos e 8 meses, Lídia é uma das poucas mulheres a assumir um cargo diretivo numa indústria tradicionalmente liderada por homens e onde é, muitas vezes, a única mulher à mesa das negociações. “Faltam mulheres com garra em todos os setores, não é só neste”, observa. Para tentar contrariar o cenário, integra a comissão dinamizadora da Rede Mulher Líder, do IAPMEI. “Ouço mulheres que hoje estão na posição do meu pai falarem abertamente das dificuldades que tiveram em lá chegar e dou muito valor a isso.”
Para ela, em particular, o maior desafio de carreira é “conseguir conciliar vida pessoal e profissional — há 8 meses que não durmo bem. Há dias com longas horas de trabalho, mas tenho tentado organizar-me para que nem todos sejam assim. Tenho a sorte de ter uma boa rede de apoio. Adoro ser mãe, tenho consciência que preciso disso para ser feliz, mas também preciso de assumir este projeto de vida que temos aqui. Hoje o meu filho mais velho dizia-me ‘Mamã, quando eu for trabalhar para a Gelpeixe ainda lá estás?’ Isto enche-me o coração, mas mais importante do que virem trabalhar para cá é que eles cuidem disto. É melhor ser um bom acionista do que um mau gestor. Ter essa consciência e humildade é muito importante.”
“O desafio das empresas familiares é, muitas vezes, pôr duas gerações de gestores a falar a mesma língua. Independentemente de termos ou não as mesmas visões, é importante a passagem de conhecimento. Fala-se muito de sucessão nestas empresas, mas sucessão não é um momento e, sim, um processo.”
Com estas preocupações a longo prazo em mente, Lídia assume também funções na direção da Associação Portuguesa de Empresas Familiares, onde faz parte do grupo Next in Line, composto por jovens gestores que estão na linha da frente para a sucessão de negócios de família. “É muito bom ter alguém connosco que esteja a passar pelos mesmos desafios e que quer levar as empresas mais longe. O desafio das empresas familiares é, muitas vezes, pôr duas gerações de gestores a falar a mesma língua. Tenho muita sorte em estar acompanhada por pessoas que estão aqui há 30 e 40 anos. Independentemente de termos ou não as mesmas visões, a passagem de conhecimento é essencial. É o tempo certo para pôr em marcha o projeto Moving Foward, durante este período em que as duas gerações ainda estão cá. Fala-se muito de sucessão nestas empresas, mas sucessão não é um momento e, sim, um processo.”
Os negócios de família têm a particularidade fascinante de serem projetos “muito maiores que a vida”, diz. “Acredito muito no legado, na missão. A sustentabilidade é muito importante, mas são os valores, a ética, a resiliência e uma gestão feita com muita proximidade que fazem com que lá cheguemos.”
Esse legado ultrapassa os muros da empresa e deixa marca em termos de responsabilidade social. Em 2013, criaram a Associação Duarte Tarré, que leva o nome do irmão de Lídia, que morreu inesperadamente, aos 20 anos, em setembro de 2011 — “o momento mais difícil da minha vida”, recorda Lídia. Em seu nome a Gelpeixe já atribuiu mais de uma centena de bolsas de estudo a alunos carenciados de todo o país. “Este ano foram 32, o maior número até agora. Além da parte pecuniária, queremos funcionar como mentores destes estudantes, por isso cada bolseiro tem o seu padrinho ou madrinha na Gelpeixe a quem pode ligar sempre que precisa de um conselho ou têm uma dúvida. Uma das minhas ‘afilhadas’ é açoriana e vive em S. Miguel; ainda ontem estivemos a falar por Skype.”
Leia mais sobre Lidia Tarré.