Joana Carneiro: Liderar uma empresa como uma orquestra (ou vice-versa)

Gerir uma empresa e liderar uma equipa para que todos toquem em uníssono é a tarefa da maestrina Joana Carneiro. Numa sessão no Women Leaders Forum, da AESE Business School, desvendou como é a vida de um músico e deixou ensinamentos sobre o papel de um líder, a carreira e a conciliação com a vida pessoal.

Joana Carneiro é maestrina da Orquestra Sinfónica Portuguesa.

A música é a sua forma de expressão. “Quando me perguntam quantas línguas falo, respondo sempre que além do português, inglês e outras, tenho também outra linguagem: a música”, afirmou. “2020, em especial, foi o ano do silêncio. O ano em que nós, artistas, perdemos o oxigénio que respirávamos. E como nós, maestros, que não tocamos um instrumento físico sentimos muito essa privação de oxigénio.” Joana Carneiro, maestrina, já foi considerada pela Executiva como uma das mulheres mais influentes em Portugal. Até final do ano passado, era maestrina titular da Orquestra Sinfónica Portuguesa. É maestrina convidada principal da Real Filharmonía de Galicia e diretora artística do Estágio Gulbenkian para Orquestra, um projeto que tem funcionado na criação de experiências artísticas entre os jovens de quem tanto gosta. Casada e mãe de quatro filhos – três deles gémeos – faz questão que a acompanhem, sempre que possível, nas suas viagens de trabalho.

Numa sessão no Women Leaders Forum, da AESE Business School, desvendou como é a vida de um músico e deixou ensinamentos sobre o papel de um líder, a carreira e a conciliação com a vida pessoal. Eis o essencial da sua palestra, a que a Executiva assistiu.

 

Planeamento e regras

A forma como nos organizamos dentro da orquestra é extremamente hierárquica – até a maneira como nos sentamos nos ensaios é determinante para que o nosso trabalho seja automatizado e tudo corra bem, uma vez que o posicionamento dos instrumentos no palco faz parte do equilíbrio musical.

Existem muitas regras a que temos de obedecer. O  reportório e o plano de ensaios é definido com seis meses de antecedência e as alterações só podem ser feitas, no máximo, até dois meses antes. Não há alterações posteriores, a não ser que exista um motivo de força maior. Nos Estados Unidos isso é ainda mais estanque. Os maestros são obrigados a começar pelas peças nas quais intervêm o maior número de músicos e depois fazem-no por ordem decrescente, para que os instrumentistas não tenham de ficar à espera. Por norma, é algo que faço sempre, mas agora, com a pandemia, é ainda mais importante, para que os músicos possam terminar o ensaio e irem para casa sem circularem nos edifícios.

Num ensaio de orquestra quando está estipulado que começamos às 15 horas, o concertino levanta-se e afina, às 15h01 começamos a tocar, às 18 terminamos, e às 18H01 já não está ninguém na sala. Se eu chegar um minuto atrasada a um ensaio de orquestra, ligo logo a avisar porque o faço e mal entro no palco vou encontrar toda a gente a bater na estante ou com os pés no chão. É humilhante. E tenho de justificar sempre porque chego atrasada, tem de haver uma razão.

Nos Estados Unidos, há inclusivamente um diretor de pessoal de orquestra que avisa o maestro que tem de parar, pois já está em over time e, como consequência a orquestra terá de pagar aos músicos esses 5, 10 ou 20 minutos extra, sendo que os músicos não são obrigados a ficar; saem, se assim o entenderem. Existem também os sindicatos de cada país. Por norma, os músicos não podem tocar mais de 90 minutos seguidos, o que significa que temos de fazer um intervalo passado esse tempo e por cada hora de trabalho os colaboradores têm direito a 10 minutos de pausa.

A organização da orquestra é extremamente definida. Dentro da orquestra existe o maestro, que é considerado um líder. É ele o responsável pelo produto final. Normalmente, as únicas pessoas que falam na sala, além do maestro, são o primeiro violino – que é o único que reporta ao maestro e faz a ponte entre o maestro e a orquestra – e os chefes de naipe, que são os responsáveis por cada secção instrumental dentro da orquestra. Imaginem o que sera se, nas onze horas que temos para preparar um concerto de hora e meia, no final de um ensaio perguntava”: “O que acham? Um andamento mais rápido (allegro) ou um mais lento? (adágio)”? Seria o caos. Por outro lado, o maestro é o único que tem a partitura completa; cada músico tem apenas acesso à parte da música que vai tocar. E mesmo que os músicos tivessem acesso a toda a informação, não poderiam intervir da mesma maneira qualificada de um maestro. No fundo, uma orquestra é um conjunto de pessoas altamente especializadas numa área, que estudam previamente as suas partes e se juntam no mesmo momento.

Naquilo que faço e no trabalho de uma orquestra para oferecer o ‘produto’ aos nossos clientes e ouvintes temos de ter, na mesma sala, um conjunto de pessoas altamente especializadas numa área – que são os seus instrumentos – que estudam previamente as suas partes para desempenhar a sua função e tocam todas juntas, no mesmo momento, para a realização de um bem comum.

Há uma singularidade naquilo que fazemos, que tem que ver com a construção de um bem comum. No momento em que fazemos música, toda a gente faz o seu melhor – ninguém pode estar a meio gás – porque se não o fizer, a música não vai soar bem e todos vamos reparar, o que acaba por funcionar como uma pressão social. Isto independentemente das nossas convicções pessoais, daquilo que pensa, faça ou sinta em relação ao outro. Por exemplo, o maestro Daniel Barenboim (israelita e Edward Said (palestino) criaram a West-Eastern Divan, uma orquestra formada por músicos de várias religiões. Nela, o maestro – que se tem focado nas questões do Médio Oriente – juntava, por exemplo, judeus com árabes, muçulmanos com palestinianos, católicos com judeus. E os músicos diziam: “nós tínhamos discussões, conversas, mas enquanto nas ruas falaríamos com armas, aqui somos obrigados a criar beleza.”

Penso que estes aspetos do funcionamento de uma orquestra se podem transferir para as empresas: a ultra organização, o facto de não podermos alterar as regras, de termos de respeitar o outro, de nunca podermos chegar atrasados, quando o trabalho acaba, acaba.

 

Liderar um conjunto de pessoas com personalidades e talentos distintos

Para chegar ao público, o primeiro papel do maestro é convencer a sua orquestra. Numa orquestra há músicos que tocam durante muito tempo e são a cara da orquestra, e há outros que não o fazem durante muito tempo, mas são igualmente importantes. Isso lembra-me uma carta de S. Paulo, que fala muito do corpo inteiro: a mão não pode viver sem a outra mão, o pé não pode viver sem o outro pé; o corpo só é todo ele se tiver todos os membros.

Imaginem que há um músico que está sentado durante três horas para tocar um excerto mínimo da pauta. Por exemplo, na 6.ª sinfonia de Gustav Mahler há um martelo construído propositadamente, para tocar só uma vez, e há uma pessoa encarregue de fazer esse batuque. Se não o fizesse ou não a colocasse no sítio certo, a peça não teria o mesmo significado. E esse músico estudou muito para tocar aquelas notas na perfeição

Tenho uma ternura enorme pelas pessoas que estão atrás do palco e que tanto sofreram com a pandemia. São as primeiras a chegar e as últimas a sair, para que no dia seguinte tenhamos as estantes direitas, com a partitura aberta na primeira página, e possamos começar logo a ensaiar. Essa pessoa, o maestro ou o primeiro violino…. todos são igualmente importantes.

E, claro, tenho um carinho enorme por todos os músicos da minha orquestra porque sei que sem eles nunca poderei expressar quem sou como artista.

 

Convencer a comprar o produto que tem para vender

Se trabalharmos com uma instituição, como maestros titulares, temos também de convencer a estrutura da nossa visão, como aquela que vai beneficiar a empresa.

O modelo americano é radicalmente diferente do europeu, porque a forma como uma orquestra se financia faz com que seja tudo muito diferente. Por exemplo, a Orquestra Filarmónica de Nova Iorque, além do diretor artístico, tem um CEO, que está ao mesmo nível do maestro titular e também integra o board.

Trabalhei durante muitos anos nos Estados Unidos e, como maestro titular, tinha de convencer a Administração da minha visão artística. Anualmente, reunia com a Administração para apresentar a minha visão a um, três, cinco anos, transmitir o que estava a ser feito ou informar que precisava de ajuda para qualquer assunto. Depois, tal como a Administração – que nesse país não é formada por pessoas nomeadas pelo governo, mas por membros da sociedade, mecenas, que contribuem para a orquestra –, fazia fundraising. No modelo americano, angariar fundos faz parte do meu trabalho.

Numa ocasião, depois de ter passado a mock audition, , que são as entrevistas de treino para fundraising, consegui a direção de orquestra. Em seguida, perguntaram-me qual a minha opinião acerca do fundraising e respondi que achava óptimo que o fizessem para que me pudesse concentrar integralmente na preparação dos meus concertos. Perdi esse emprego por causa disso – o que foi muito bom porque sem isso provavelmente teria chegado às entrevistas de trabalho seguintes e teria cometido o mesmo erro.

Na Europa, a direção artística não depende tanto do board. Trabalhamos sempre em conjunto, com imenso respeito, mas quem toma todas as decisões são os diretores artísticos dos teatros e das orquestras. Os maestros titulares têm menos intervenção global no projeto. É mais fácil ter mais vida para além da orquestra e trabalhar com outras orquestras. Claro que tenho de ter uma visão a um, três ou cinco anos. Se tivermos uma visão definida, conseguimos vendê-la ao nosso board que depois terá de vendê-la ao ministro, ao secretário da cultura ou aos mecenas de uma orquestra.

Essa visão traduz-se na escolha das peças que penso que vão ajudar ao crescimento da orquestra, que lhe vão dar mais vigor. Ou identificar se a orquestra está demasiado envelhecida, ou demasiado rejuvenescida, com músicos mais ou menos experientes, para saber se é preciso reforçar determinada faixa etária. Ou, ao nível de marketing, que público queremos ter e como o convencer? Por exemplo, seu queremos conquistar um público mais jovem, temos de fazer concertos mais curtos, ou comentados.

 

A arte do maestro

Depois de tomar todas essas decisões, de saber todas notas, é preciso decidir, por exemplo, o quão rápido ou lento é um andamento; se devemos dar mais tempo a um solo para tocar; o que ajudará a orquestra… Há tantas decisões que só o maestro pode tomar. Tudo isso é tão difícil! Antes de passarem os primeiros cinco segundos de uma peça já pensámos em tantas decisões que temos de ter tomado.

Além de toda essa capacidade intelectual, emocional e espiritual, temos de ter a capacidade de reproduzir isso através das nossas mãos, de mostrar a cada um dos instrumentistas o que é claramente aquela música. Em seguida, fazer com que os músicos – com todos os seus talentos únicos, experiência, técnica, estética – interpretem tudo o que lhes disse e mostrei, e o reproduzam fisicamente nos seus instrumentos. E isso tem de ser homogéneo, pois há tantas maneiras de dizer “a mesma palavra”: mais enfática, mais lenta, ou mais rápida.

Ser maestro é um caminho longo, especializado e difícil. É mesmo muito difícil, pois não só temos de saber, mas também de orientar e estimular todos os músicos a tocarem da mesma maneira – e isso é algo muito especial e complexo.

A liberdade é a interpretação, mas só vem do conhecimento. A única coisa que posso levar para a orquestra é a minha preparação e a minha inspiração, que vem sempre da música. Quando chegamos a um ensaio de orquestra temos de ter uma preparação tal que nos permita responder a todas as questões que nos vão colocar, quer sejam musicais ou não. Pode ser um som que é heterogéneo que temos de transformar em homogéneo, uma nota, um timbre ou uma articulação que está errada e que temos a obrigação de detetar, mas também pode ser alguém que não está contente com a interpretação. Nós temos de conseguir responder a essa pergunta ou saber explicar o que é que o compositor quis fazer numa determinada passagem e, como tal, há uma razão para eu o estar a fazer de uma forma e não de outra.

 

O que faz a excelência profissional

Músicos excelentes há em todo o lado. A excelência não é só tocar as notas certas, a excelência é todos tocarmos da mesma forma.

Ao longo de 25 anos de experiência profissional, tenho-me perguntado porque é que há orquestras que tocam melhor que outras. O poder de observação é fundamental, por isso é tão bom ter uma carreira internacional, pois permite-nos transportar para as nossas instituições aquilo que encontramos de melhor. As orquestras americanas tocam mesmo muito bem, mas ensaiam muito pouco. O modelo americano é ultra eficiente: os músicos já sabem as notas todas, chegam ao ensaio e passado duas horas já estão prontos para fazer um concerto. Muitas vezes fazemos dois ensaios para dois concertos. Em Londres isso também acontece, e tem que ver com pressões económicas.

Gosto de tocar com todas as orquestras, mas aquelas com quem mais gosto de trabalhar são as do Norte da Europa porque são as mais felizes. São aquelas que se sentam na ponta da cadeira e tocam com essa convicção –  que é o que dá mais prazer a um músico –,  como se a sua vida dependesse disso. Isso acontece no interior da Suécia como em Copenhaga ou em Estocolmo. E trabalham menos horas que as outras. As orquestras no Sul da Europa, nomeadamente em Portugal, ensaiam das 10h às 13h e das 14h30 às 17h30. No Norte da Europa, a não ser que seja para uma grande produção – uma ópera, por exemplo – as orquestras trabalham das 10h às 14h ou das 10h às 14h30, sem interrupção grande para almoço. E porque é que isso traz felicidade às pessoas? Em primeiro lugar, as pessoas vêm mais bem preparadas e tocam melhor porque, se ao fim de três semanas chegamos à conclusão que não estamos preparados, voltamos ao modelo antigo e ninguém está interessado em que isso aconteça e não possam ir buscar os filhos à escola, por exemplo. Há uma responsabilização das pessoas e uma optimização do tempo. Há outro fator importante: o clima. Como anoitece muito cedo e faz muito frio, isso levou-os a repensar e a surgir com um modelo diferente.

 

A felicidade no trabalho

Nos países escandinavos, os músicos têm muita flexibilidade. As orquestras permitem que os seus instrumentistas trabalhem noutras orquestras – no país e no mundo -, pelo que podem cultivar o seu instrumento e a sua arte noutros espaços e trazer aquilo que aprenderam para a sua terra.

Acredito a híper-organização, os horários de trabalho, e essa flexibilidade trazem uma alegria e uma felicidade no trabalho que não encontro em mais lado nenhum do mundo. Quando, em Lisboa, uma das instrumentistas me para pediu um ano sabático para ir trabalhar na Orquestra Gulbenkian, disse-lhe logo que sim, pois sabia que a minha orquestra iria beneficiar com isso, embora ela me fizesse muita falta durante um ano.

 

Dilemas de liderança

Muitas vezes, temos de nos confrontar com vários dilemas. Por exemplo se um músico me diz que está muito frio e, por isso, não consegue trabalhar tenho de decidir se o ensaio continua ou não. Se não continua, não conseguimos preparar o concerto a tempo; mas se continua os músicos vão pensar que não sou um bom líder porque não estou a defender os seus interesses. Outras vezes tomei decisões que me deixaram mal vista diante do promotor. Já me aconteceu não fazer um concerto porque estava muito frio e tive de zelar pelos instrumentos, que poderiam rachar.

 

As orquestras são equipas muito unidas

As orquestras são corpos muito unidos. Fazem tudo uns pelos outros, são uma família, com os seus dissabores, há pessoas que gostam mais de uns e menos de outros, mas protegem-se sempre até ao fim. É algo muito comovente,

Os maestros vão e vêm. Um maestro titular está numa orquestra 10 a 12 semanas por ano, durante 6, 7, 8 anos, há casos raros em que estão mais de 10 anos. Já os músicos estão juntos todos os dias.

 

As empresas e a maternidade

Houve algumas empresas que me surpreenderam pela negativa. Uma despediu-me no dia a seguir a dizer que estava grávida do quarto filho. Outras orquestras informaram-me que não iriamos manter a nossa relação porque sabiam que nos próximos dois anos eu iria estar muito ausente.

Mas muitas outras agiram de outra forma. Por exemplo, quando o meu filho mais pequeno tinha seis meses, pediram-me para fazer uma “Carmen”, em Estocolmo. Disse que só iria se pudesse continuar a amamentar o meu filho. Pediram-me para lhes dizer qual o horário que pretendia e arranjaram um assistente para me substituir sempre que eu precisasse sair do ensaio, quando tinha de amamentar levava o bebé para o camarim, e tinham babysitters durante as récitas. Houve empresas que me despediram, outras que adaptaram. Muitas orquestras acarinharam a minha maternidade porque perceberam que dirijo melhor quando estou com a minha família.

 

Conjugar a vida pessoal com a profissional

Tive os meus quatro filhos num ano. Conjugar a vida profissional com a pessoal é muito difícil. Por exemplo, quando trabalhava e gozava a licença de amamentação, da meia-noite às duas da manhã amamentava, às três tinha de ir com um à casa de banho, às seis decidiam que já não se podia dormir mais lá em casa e às dez tinha de ir dirigir “A Sagração da Primavera” como se nada se tivesse passado. E depois uma pessoa erra e pensa “que horror.” Houve alturas em que dizia a mim mesma: “Não aguento, não dá, é impossível!”

Durante alguns anos cometi muitos erros. Pensei que conseguia fazer tudo: ir ter com os meus filhos, ensaiar até às horas que podia, depois regressar quando conseguia. Tive de me afastar pois não conseguia gerir todas as dimensões de ser um líder, embora estivesse preparada musicalmente.  Houve um projeto que tive de abandonar porque houve uma falta de empatia musical com os instrumentistas – em relação aos andamentos, por exemplo – e não consegui resolver a questão porque terminava o ensaio e não tinha tempo para tentar gerir isso com a pessoa, para tentar resolver a situação. Tinha de ir para casa e nem sequer tinha tempo para pensar no assunto. Tentar fazer tudo ao mesmo tempo fez com que perdesse muitas vezes.

Vou aprendendo como todos nós. Este ano cancelei dois concertos no estrangeiro porque, por causa da pandemia, teria de fazer uma quarentena de dez dias à ida e havia a possibilidade de ter de fazer outra no regresso. Quantas pessoas entenderam a minha decisão? Não foram muitas. Com os meus filhos na idade em que estão, não consegui estar um mês inteiro ausente.

A maternidade muda muito a nossa maneira de ver o mundo e é provável que esta forma de pensar esteja relacionada com o facto ter sido mãe mais velha. Sou mãe geriátrica, depois dos 40, e isso permite-me que só faça exatamente aquilo que quero e que tenha a certeza que vou fazer bem. A vida faz-nos perceber o que é realmente essencial e importante.

Como família tomámos a decisão de estar juntos, sempre que possível, e isso faz com que viajemos sempre juntos. Eu trabalho menos, e faço-o mais na Europa.

A minha agenda está fechada quase até Junho de 2023, mas quando a minha agente me falou num projeto que decorrerá daqui a um ano, disse, de imediato, que não conseguia pensar a essa distância, até porque nessa altura os meus filhos vão entrar na primeira classe. Estes são os problemas bons para se ter: muito trabalho e uma família.  Foi sempre isso que desejei!

 

Reuniões eficazes

Quando tenho uma reunião, sem ser de ensaio, já sabem que têm de me enviar os tópicos, e a hora em que começa e termina. E já sabem que quando está quase a chegar a hora de terminar a Joana começa a olhar para o relógio.

 

Gerir derrotas como um atleta de alta competição

Os meus maiores desaires profissionais aconteceram depois de ter sido mãe, antes disso tive poucas derrotas. Lembro-me sempre do meu pai [Roberto Carneiro, ex-ministro da Educação ]dizer que na primeira vez que tivesse uma derrota grande na música – não ser aceite numa escola ou numa master class, por exemplo — tinha que pensar na minha carreira como o tenista Pete Sampras: “Esta semana ele perdeu em Wimbledon, mas daqui a poucos meses terá de jogar ao mesmo nível em Roland Garros.”

A vida de um maestro, de um líder enquanto maestro, é como um desporto de alta competição. Temos de aceitar, mesmo ao mais alto nível, que de vez em quando vamos ter de lidar com derrotas e aprender a dar a volta. O que interessa é nunca perder um standard de apresentação. Nunca me preparo abaixo de determinado nível.

 

Disciplina Vs. criatividade?

Na minha opinião, as orquestras escandinavas são as mais felizes porque quem toma as decisões artísticas são os próprios músicos. São eles quem escolhem os maestros que os vão dirigir, dão o seu aval à escolha do reportório, fazem sugestões, têm muito tempo livre, e podem tocar em agrupamentos mais pequenos que lhes permitem explorar esse lado mais criativo, de tal forma que muitas vezes os arranjos são feitos pelos próprios músicos que os vão tocar.

Mas não há uma melhor forma de gerir a disciplina e a criatividade. O modelo ideal deve ser inclusivo. Stokowski ou Toscanini, que são maestros míticos do início do século XX, não deixavam os músicos falar, eram muito autoritários. Agora há um certo diálogo, o maestro não é o fim do conhecimento. Existe uma forma de estar do maestro; é impossível eu pedir a opinião. Tem de saber tudo e saber dar resposta a tudo, mas existe uma abertura muito diferente, mesmo na forma de ensaiar e de escutar a orquestra. São coisas subtis, mas que fazem diferença na parte estrutural e na espiritualidade da música. Vejo como os maestros mais velhos e os mais jovens ensaiam e dirigem as orquestras e constato que há uma forma mais inclusiva e menos inclusiva.

Há pequenas coisas que podemos fazer, tanto no trato como na nossa visão, que podem trazer mais liberdade e mais motivação aos músicos, permitindo aos músicos maior criatividade e flexibilidade: fazer projetos de música de câmara, ou seja criar agrupamentos dentro da orquestra onde podem tocar mais, tocar a solo com a orquestra ou terem os seus próprios projetos educativos dentro da própria orquestra. Mas isto é o limite que nós, maestros, podemos fazer numa instituição que, por uma questão económica, tem tão pouco tempo para ensaiar, pois há um número limitado de horas que os músicos podem trabalhar por semana.

 

O líder dispensável

A figura do maestro apareceu, precisamente, porque a música se tornara tão complexa que já não era possível as orquestras tocarem sozinhas, mesmo que o maestro desse a entrada, mesmo que a orquestra ensaiasse 100 vezes sozinha, não conseguiria produzir um resultado. Com metrónomo também não daria porque a música não é um metrónomo. O que o maestro veio fazer passa também pela optimização, pela eficácia: não há dinheiro nem tempo; as orquestras não podem ensaiar tempo infinito.

Claro que num mundo ideal, o sucesso do maestro é tornar-se dispensável. Por exemplo inclusivamente na minha própria orquestra, há reportório que já não dirijo, porque na sua origem não tinha maestro.  Nestes casos retirarmo-nos é uma das maneiras de trazer felicidade aos músicos, promover a criatividade e a responsabilidade. Há algumas formas de nos retirarmos, quando atingimos essa maturidade e essa relação com a orquestra: já nos conhecemos, partilhamos os mesmos valores musicais, eles já sabem como é que eu dirijo uma peça, eu já sei como eles a tocam.

 

A liderança coerente

A liderança tem muito que ver com padrões e precedentes. Quanto mais coerente e consistente eu for, quanto mais precedentes bons criar, se tiverem lógica, se forem em prol da visão, que é clara, vão sempre apoiar. Os meus valores que têm de ser coerentes e permanentes em todas a decisões que tomo, quer seja medir a temperatura da sala, a licença de amamentação, ou visão que defendo junto do board da minha orquestra.

Quantas vezes já dirigi orquestras com músicos muito mais sapientes e apresentei soluções profissionais com as quais eles acabaram por concordar. Se viam que tinham lógica, que estava empenhada, iam atrás de mim. E isto é assim para qualquer coisa.

Não sou responsável pela felicidade de ninguém, assim como ninguém é responsável pela minha felicidade. O meu papel é criar um ambiente do maior rigor a nível musical e humano, para que a única coisa com que os músicos tenham de se preocupar seja a música, seja fazer coisas bonitas, independentemente de tudo o resto. Nem sempre as orquestras com os melhores músicos são as melhores orquestras porque pode haver alguma coisa que não funcione muito bem e que os impede de ter esse entrosamento entre eles.

 

Confiar na intuição e em si

Há algo que tenho aprendido, que só a nossa experiência nos dá: por norma o nosso instinto está correto. Na verdade, já não é uma intuição, é um instinto muito informado. Uma pessoa que trabalhe há 20, 30 ou 40 anos tem de aprender a confiar nele e a fazer apenas as coisas que realmente acha que vai fazer bem. O mundo é tão competitivo que no dia a seguir ao nosso falhanço há dez outros.

Além de confiar no meu instinto, tenho também de confiar no meu trabalho. Tenho de acreditar que há suficientes orquestras no mundo que partilham os mesmos valores que eu e estão interessadas naquilo que tenho para oferecer.


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