Licenciada em Direito, Leonor Sampaio Santos lidera a Direção Jurídica da José de Mello Capital, a holding do Grupo José de Mello, onde entrou há 20 anos, depois de dois anos de estágio na PLMJ.
É mãe de dois rapazes e leitora compulsiva. É voluntária da Livraria Déjà Lu, em Cascais, desde a sua fundação. Tem dois bookclubs e um grupo de vinhos ou “uma desculpa para se reunir com as amigas à volta de bons vinhos”.
Corre para se livrar do stresse, e o ano passado deve ter corrido muito, pois foi da sua responsabilidade toda a componente jurídica da venda de uma participação maioritária na Brisa pela José de Mello, uma das transações de M&A [Mergers & Acquisitions] mais relevantes de 2020, assinada em pleno confinamento.
Desejava que o dia tivesse 48 horas para poder fazer tudo o que gosta. Como consequência, dorme pouco. Apesar das circunstâncias preocupantes que vivemos, sente-se feliz e realizada.
O diretor jurídico tem uma influência cada vez mais abrangente nas empresas. Qual é hoje o seu papel na organização?
A direção jurídica é a garante última da integridade jurídica do negócio e da organização. É esta a nossa responsabilidade, que vem assumindo cada vez mais importância porque nos últimos anos temos assistido a uma complexificação do mundo jurídico.
Quando comecei a trabalhar, há 20 anos, precisava do Código das Sociedades, da legislação laboral, da legislação fiscal, do Código Civil e pouco mais. Hoje, assistimos a mil e uma vertentes do Direito. Surgem novos cursos, novos ramos, com linguagem e regras muitos próprias, institutos jurídicos distintos, que cobrem quase todas as áreas da atividade.
Sendo a nossa função a de acompanhar toda a componente jurídica, quer do negócio quer da organização, isto implica que o diretor jurídico seja um player muito ativo na gestão do negócio de modo a garantir o seu full compliance. Tem de conhecer o negócio, saber quais são os seus objetivos, os seus desafios, bem como a organização, para poder antecipar e dar as melhores soluções jurídicas para todos.
Tem de ser proativo e não aquela figura de antigamente que praticamente só era chamada a intervir num grande negócio quando ele chegava à fase final do contrato.
Nesta função é muito importante saber dizer que não, porém, tenho aprendido que é muito importante fazê-lo de forma construtiva, ou seja, se fecharmos uma porta, temos que abrir uma janela.
Hoje, o diretor jurídico participa nas grandes operações praticamente desde o seu início.
Há sempre uma tensão entre a área jurídica e as outras áreas, especialmente as comerciais. Porque a área jurídica pode causar entraves a uma negociação. Se não houvesse leis, era só uma questão de escrever o que as partes tinham combinado. Mas, por vezes, as leis obrigam a uma recontextualização dos contratos e dos negócios, aliás, cada vez mais, em virtude da tal complexificação.
No entanto, a área jurídica é uma área acessória, não é core numa empresa e, no limite, até pode ser entregue a um escritório externo. Mas se eu estiver próxima do negócio desde o início, eu sei como é que ele surge, qual é o seu objetivo, e consigo ir guiando o processo, antecipando os obstáculos legais e incluindo tudo aquilo que sei que vai ter de estar contemplado.
Devo ter todas as informações para as saber verter nos institutos jurídicos próprios. Esse acompanhamento deve ser feito de forma proactiva, em antecipação e não de forma reativa. Nem sempre assim é, porque, às vezes, os intervenientes nem se apercebem da complexidade jurídica dos processos mas, mais cedo ou mais tarde, eles vêm parar à nossa área. Mas, quanto mais cedo vierem, melhor.
Às vezes, a nossa função é desgastante porque parecemos a direção que levanta problemas — “Cá vêm os jurídicos dizer que temos de fazer assim e assado”. É difícil a nossa presença não ser vista como um incómodo. Corremos o risco de parecer um polícia do que se anda a fazer, embora não seja nada isso o que se pretende.
Nesta função é muito importante saber dizer que não, porém, tenho aprendido que é muito importante fazê-lo de forma construtiva, ou seja, se fecharmos uma porta, temos que abrir uma janela. É preciso apresentar, sempre que possível, uma ou mais soluções que conduzam aos mesmos fins, com menos risco jurídico.
Como é que se mantém atualizada com todas estas novas situações que vão surgindo?
É um pesadelo. Basta pensar no exemplo da Covid-19, em que todas as semanas há nova legislação. Além dos estados de emergência, que nos afetam a todos, há legislação setorial quase todos os dias. É uma pandemia legislativa!
A nossa produção legislativa insana em todas as áreas é uma preocupação constante, pois tenho que manter a equipa atualizada e, às vezes, é muito difícil coordenar a atualização com o trabalho do dia a dia . E repare que temos de estar atualizados para fazermos bem a nossa função, mas também para podermos transmitir as novas regras às outras direções da empresa, para formar in house.
Como é que a digitalização tem impactado a sua função?
Se olharmos para os últimos 20 anos, há uma evolução muito grande. Hoje fazemos registos online, em menos de uma semana conseguimos criar uma empresa e tê-la a funcionar, quando antigamente demorávamos três meses só para a constituir. Isto poupou tempo e libertou recursos.
Mais, se pensarmos que a Covid-19 nos colocou quase todos em casa e conseguimos continuar a trabalhar sem problemas, é inevitável concluir que demos outro grande passo.
Porém, a digitalização não alterou assim tanto a essência do meu trabalho, que ainda está muito ligado à componente humana, ao risco, à negociação, ao conhecer e verter isso para instrumentos jurídicos, com a tal capacidade de as melhores soluções em cada momento. E isso, creio, não é transponível para uma inteligência artificial.
Embora saiba que já há empresas com necessidades de contratação em massa, que estão a fazer contratos estandardizados, até determinados valores, com softwares próprios, com recurso à inteligência artificial. Acompanho isso com algum fascínio e curiosidade, para perceber que tipo de desafios se colocam e até onde conseguem ir sem ter falhas.
Vivemos numa sociedade muito dinâmica, em que o progresso é constante, e se não acompanharmos estas novas realidades, corremos o risco de estagnar e ficar obsoletos. Mas, na minha área específica e no negócio em que estamos, na essência do nosso trabalho, não sinto uma grande diferença em virtude da digitalização.
Encontrar o que é que motiva cada pessoa de maneira a extrair o seu melhor, levá-la a superar-se, a orgulhar-se do seu trabalho e a conseguir o reconhecimento que merece é o que mais me apaixona.
Na José de Mello Capital quais são os principais desafios da sua função? Sendo a holding de um Grupo muito diversificado, como é que se consegue acompanhar as várias áreas?
Esse é um desafio constante. Temos de dar apoio ao acionista, ao negócio, e a outras sociedades ligadas ao universo da holding que não têm dimensão suficiente para ter uma área jurídica própria. As outras empresas do Grupo têm direções jurídicas próprias, completamente autónomas, apesar de existir um ótimo relacionamento e entreajuda entre todas.
Desde o início deste ano, passámos a dar apoio jurídico ao universo da José de Mello Residências e Serviços, por exemplo. Deste modo, temos um universo considerável de sociedades, com atividades distintas, o que representa cada vez mais trabalho em diversos ramos do Direito.
Ao mesmo tempo, há novas vertentes do compliance, que não existiam. O compliance em sentido amplo é a nossa missão, garantir que cumprimos a lei, mas há o compliance em sentido restrito, agora tão em voga, o do beneficiário efetivo, da proteção de dados, do branqueamento de capitais, de códigos de conduta. Este compliance em sentido restrito na José de Mello também está na Área Jurídica. Em outras empresas é obrigatório estar em áreas distintas e eu já tenho essa separação funcional dentro da nossa área, para poder autonomizá-la caso venha a ser necessário. Tenho de antecipar estas questões e tenho de ir reestruturando a equipa à medida do acompanhamento legislativo e das necessidades que vão surgindo. Acabámos de contratar o sétimo elemento da equipa, uma jovem de 30 anos. Temos uma equipa com uma diversidade etária muito grande, que varia entre os 30 e os 65 anos.
Qual o seu papel enquanto líder de uma equipa com essa diversidade etária?
Esta é a parte que gosto mais! A liderança, a coordenação e encontrar a motivação certa para cada um dos seus elementos. Como é obvio, uma advogada na casa dos 30 anos tem uma motivação diferente de uma pessoa de 60 anos. Encontrar o que é que motiva cada pessoa de maneira a extrair o seu melhor, levá-la a superar-se, a orgulhar-se do seu trabalho e a conseguir o reconhecimento que merece, é o que mais me apaixona. E fazer isso em harmonia, conseguindo que cada um alcance os seus objetivos e, ao mesmo tempo, que trabalhando em equipa, a Direção atinja os seus objetivos comuns, é o mais desafiante.
Este ano, o meu grande desafio é conseguir um melhor equilíbrio entre vida pessoal e profissional para toda a equipa. Os dois últimos anos foram muito intensos, com a grande operação da Brisa, o que exigiu um esforço muito grande de todos, mas esse ritmo não pode ser a regra. Um dos valores do Grupo é o desenvolvimento pessoal, e o equilíbrio entre vida pessoal e profissional está subjacente, por isso temos que voltar a pôr isso em prática na nossa equipa.
Este é um cargo em que as pessoas põem muito o foco no jurídico, mas esquecem-se da gestão. O diretor jurídico tem de gerir o tema jurídico, mas também tem de gerir pessoas e os projetos.
Além da capacidade de liderar a equipa, que outras caraterísticas considera fundamentais na sua função de diretora jurídica?
Este é um cargo em que as pessoas põem muito o foco no jurídico, mas esquecem-se da gestão. E é isso que o torna muito diferente do trabalho de um advogado de escritório. O diretor jurídico tem de gerir o tema jurídico, mas também tem de gerir pessoas e os projetos, perceber quem é que vai responder melhor a cada desafio.
O meu trabalho já não é tanto o de fazer, mas o de coordenar. Este não é um trabalho de advogada, é um trabalho mais de gestão e parece-me que, para a maioria das pessoas, isto não é evidente, nem os cursos de Direito as preparam para isso. As soft skills têm de ser trabalhadas porque podem ser tão importantes como a parte jurídica. Este foi um aspeto que descobri à medida que fui evoluindo na carreira, nem sempre foi evidente para mim.
Especialmente, desde que assumiu a direção jurídica?
Sem dúvida. Antes de assumir esta função, em 2017, fazia o meu trabalho sem me preocupar com estas questões. Estive 15 anos na mesma função e ia dando sinais de que queria algo mais.
Na José de Mello Capital faz-se mais gestão de participações e de parcerias, Direito Financeiro, por isso quando me deram a possibilidade de ir para a Bondalti [empresa do Grupo que desenvolve a sua atividade na indústria química] foi muito interessante. Ali preocupava-me com os objetivos da empresa, fazia contratos com os clientes diretos, foi uma experiência diferente e, por isso, muito enriquecedora.
Foi um salto na minha formação mas, só quando assumi a Direção jurídica é que descobri esta parte da liderança, que é onde hoje mais me realizo.
Tínhamos três escritórios de advogados todos a remar na mesma direção. Graças à enorme entrega de todos, a trabalharmos de noite e de dia, conseguimos fechar o negócio em 20 dias.
Quais os principais desafios da operação de venda da participação maioritária na Brisa, não apenas pela sua dimensão, mas pelo facto de ter sido concretizada em pleno confinamento?
Foram meses alucinantes. Quando confinámos já estávamos a trabalhar há um ano e meio com um ritmo de trabalho muito intenso. Excetuando os bancos de investimento e os advogados externos de M&A que têm uma vasta experiência nestas operações, para todos os outros envolvidos esta foi a maior operação das nossas carreiras.
Em qualquer situação esta seria sempre uma operação muito exigente, mas o confinamento aumentou bastante o nível de exigência. Esta operação foi complexa porque estávamos a vender a nossa participação, juntamente com o nosso parceiroe, do outro lado, tínhamos um leilão internacional.
Estávamos precisamente na fase de analisar a componente jurídica das várias ofertas [as propostas de compra dos diferentes oferentes], à qual se seguiriam reuniões presenciais para as discutir, quando a 18 de março se inicia o confinamento. Recordo-me de o nosso diretor-geral dizer “Não sabemos se a operação vai para a frente nestas circunstâncias, temos que nos mentalizar que podemos ser como a banda do Titanic, que continua a tocar enquanto o navio se está a afundar” o que nos deixou devastados. Vínhamos de ano e meio de dedicação total aquela operação e não queríamos que tudo tivesse sido em vão. Creio que naquele momento decidimos todos que não seria por nós que a operação não se realizaria.
A questão seguinte foi juntar esta enorme vontade de prosseguir o processo ao facto de trabalharmos a partir de casa, com a família presente e os colegas à distância. E se hoje o Zoom já é normal para todos, naquela altura os contactos entre colegas e entre as diferentes equipas jurídicas era quase todo feito por telefone, sem imagem. A primeira coisa que fiz foi comprar um adaptador que permitisse carregar o telemóvel ao mesmo tempo que usava os headphones, pois estava sempre ligada.
Depois surgiu uma outra dificuldade, todos os oferentes tinham recorrido a financiamento para a operação e os prazos de negociação foram encurtados drasticamente. Mas, como há aspetos positivos em tudo, este aspeto conduziu a que a negociação fosse muito rápida e construtiva porque as duas partes queriam o negócio, por isso não se levantaram entraves desnecessários de parte a parte, houve um esforço conjunto muito positivo para que tudo corresse muito bem. Tínhamos três escritórios de advogados todos a remar na mesma direção. Posso dizer-lhe que graças à enorme entrega de todos, a trabalharmos de noite e de dia, conseguimos fechar o negócio em 20 dias desde a apresentação da proposta vinculativa até à assinatura, o que é verdadeiramente surpreendente
Foi difícil para todos, mas, para as mulheres, exigiu ainda mais multitasking, para tentar gerir a situação familiar sem impactar a operação. Muitas tinham filhos pequenos ou em idade escolar e foi dificílimo, mas houve muita colaboração e entreajuda, até pelo facto de a equipa jurídica ser exclusivamente feminina.
Quando tudo terminou foi muito estranho. Não houve aquele momento de alegria e de brindarmos todos juntos e o meu telefone, que quase não parou nas três semanas anteriores, não tocou o dia inteiro, até pensei que tivesse avariado.
Não vou ter outro desafio como este. Tive sempre a sensação de estar a nadar em alto mar, completamente fora de pé, mas orgulho-me de o ter vivido.