Vivemos tempos acelerados e perigosos, em que se aceita como bom tudo aquilo que nos chega pela net, sobretudo quando coincide com a nossa própria forma de pensar. De imediato divulgamos informação que nos agrada, ou então que confirma as nossas próprias crenças e convicções, sem nos preocuparmos em verificar a sua veracidade. “Se é igual ao que eu penso, deve ser verdade”. A imagens da guerra entre a Rússia e a Ucrânia têm sido pródigas em mostrá-lo.
Graças a empresas criminosas como a “Cambridge Analytica”, que declarou falência na sequência do escândalo em que se viu envolvida (vasculhou, manipulou e usou nos seus trabalhos os conteúdos e contactos de mais de 50 milhões de usuários do Facebook, sem a autorização e conhecimento dos mesmos), as redes sociais sabem hoje mais sobre nós, e os nossos gostos e preferências pessoais, do que nós próprios e do que quem nos é próximo. Acreditem ou não.
Ao darmos um “like” ao que quer que seja, seja no Facebook, no Instagram, no LinkedIn, etc. estamos a definir, sem ter consciência disso, um padrão pessoal de gostos e preferências. Por exemplo, soube-se recentemente que o Facebook conhece mais dos gostos pessoais, crenças, valores etc. de um usuário que já deu só 150 ou mais “likes” na rede, do que a própria família próxima desse usuário. E portanto aquilo que chega como notícias ou ofertas de compra a esse usuário está talhado à exata medida dos seus gostos, preferências e crenças.
As empresas de analítica preditiva de “Big Data” (grandes volumes de dados), como a tristemente famosa Cambridge Analytica, conseguem portanto, sem que nos demos conta, resumir e interpretar esses “likes” de forma a permitir que aquelas empresas que nos querem influenciar a acreditar nalguma notícia (newsletters, boletins informativos, etc.), ou a comprar algum produto, de qualquer índole, façam um fato à medida para nós. Conseguem portanto aumentar significativamente o êxito na venda de produtos, e também o êxito em fazer-nos crer em notícias falsas (as tais “fake news”). Foi assim que Donald Trump foi eleito, with a little help of his friends Bannon & Putin..
Os dois tipos de ladrões
Vem isto a propósito de um pequeno texto que andou há tempos a circular na net, atribuído a François-Marie Arouet, ou Voltaire como é conhecido, e que voltou hoje, domingo 13 de Março do ano da graça de 2022, retumbantemente à minha memória ao ler o título de um jornal diário: “Contribuintes pagam dívida de Vieira” (sim, o Luís Filipe). O artigo clarifica que o Fundo de Resolução (nós contribuintes), já entregou 290 milhões da dívida do grupo Promovalor de Luis Filipe Vieira ao Novo Banco, que assim já se viu livre de 84% do lixo de Vieira herdado do BES.
O suposto texto de Voltaire, que é curto e didático, rezava mais ou menos assim:
“Existem dois tipos de ladrões :
1) O ladrão comum, que é aquele que nos rouba o dinheiro, a carteira, o relógio, o cavalo…
2) o ladrão político, que é aquele que nos rouba o futuro, os sonhos, o conhecimento, o salário, a educação, a saúde, as forças, o sorriso….
A grande diferença entre estes dois tipos de ladrões é que o ladrão comum é quem o escolhe a si para o roubar, enquanto o ladrão político é quem você escolhe com o seu voto, para ele depois o poder roubar tranquilamente! Há uma outra grande diferença entre estes dois tipos de ladrão. O ladrão comum é perseguido pela polícia, enquanto o ladrão político é protegido pela polícia e pelo sistema!”
Ora bem, não é obviamente inocente que este texto, atribuído a um filósofo, escritor e ensaísta respeitado e brilhante, que faleceu há 244 anos, aparecesse na altura em que o li, há uns anos atrás, antes da pandemia, quando começaram a surgir relatos de escândalos de variada índole que manchavam sobretudo elementos do partido no Governo, quer a nível central, quer a nível autárquico.
Voltaire viveu a maior parte da sua vida no reinado absolutista de Luis XIV, apelidado o “Rei Sol”. Portanto não havia políticos eleitos. Apesar de na definição de ladrão comum aparecer um cavalo (está correto historicamente), em vez de um carro (impossibilidade histórica), quem escreveu o texto e atribui a autoria a Voltaire cometeu outro erro histórico crasso. O relógio de pulso só apareceria umas décadas depois de Voltaire ter morrido (1778). O primeiro de que há registo, feito por Louis Cartier, não surgiria senão em 1814… Portanto, e apesar de a simpática definição de ladrão comum versus ladrão político ser fortemente do agrado de quem está farto de ver os seus impostos espoliados por seitas de bandidos sem escrúpulos, que se apropriam de partes do aparelho de Estado, e não hesitam perante nada para satisfazer os seus desígnios próprios e de clãs afins para a apropriação indevida do património coletivo, o facto é que não foi Voltaire quem escreveu o texto. Foi certamente um simpático brasileiro, farto, como nós portugueses, dos abusos criminosos, diretos ou indiretos, de políticos sem escrúpulos.
As situações de crise são as que mais propiciam os abusos
A guerra da Ucrânia, e antes dela a pandemia, têm dado um descanso noticioso aos portugueses nos temas da corrupção de Estado. Mas não nos deixemos endrominar, nem adormecer por eventos exógenos. As situações de crise são as que mais propiciam os abusos. Vamos passar por tempos muito complexos, em que os contribuintes portugueses, já espremidos até ao tutano, assistirão a um disparar da inflação em produtos essenciais para a sua vida, sem que os salários ou pensões acompanhem o ritmo de aumentos de preços.
Estar a assumir por conta do erário público centenas de milhões de dívidas deixadas por bonzos que andam por aí como se nada fosse, é imoral e pornográfico. Isto no país vizinho levaria os contribuintes às barricadas. Neste meu adorado Portugal dos “brandos costumes”, engole, amocha e siga a festa. Até quando minha gente?
Leia mais artigos de José António de Sousa aqui.