Depois de anos dedicada ao jornalismo generalista e económico e uma segunda fase da carreira na comunicação empresarial e política, Joana Leitão de Barros faz a sua estreia na ficção com Veva, sobre Genoveva Lima Mayer Ulrich, cujo percurso investigou nos últimos anos. Em 2020 recebeu o Prémio Sophia, da Academia Portuguesa de Cinema, pelo livro Leitão de Barros, A Biografia Roubada [Leitão de Barros foi seu avô], que a levou a estudar a década de 1920 e aproximar-se de um sem fim de protagonistas cujo rasto tem percorrido. Para além da biografia, género que continua a trabalhar, é também guionista e produtora de conteúdos. No seu currículo, Joana Leitão de Barros tem também um guia sobre o litoral alentejano e editou a revista de uma fundação ligada ao Alentejo.
Veva é o seu segundo livro depois de uma carreira na comunicação. Quando decidiu que iria dedicar-se aos livros?
O meu primeiro livro aconteceu quando percebi que estava perante um espólio muito rico, não estudado, que tinha sido guardado na arrecadação da minha mãe durante décadas. Foi-me irresistível não o devorar, e nessa altura fazia consultadoria em comunicação. O espólio era composto sobretudo por correspondência com artistas, intelectuais e políticos mas também incluía argumentos de filmes, concretizados ou falhados, dezenas de planos de trabalho e originais de crónicas.
Uma série de caixotes de dossiers e papéis deixados pelo meu avô – cineasta, jornalista, encenador, dramaturgo e ainda mais do que isso – levaram-me à escrita. José Leitão de Barros, que morreu quando eu tinha 5 anos, é um artista complexo que estava longe de ser compreendido, até mesmo pela família, e era com demasiada facilidade associado aos filmes encomendados pelo regime de Salazar, um rótulo que se mostrou redutor.
Tenho hoje a certeza que essa primeira emoção, que é quase uma euforia, a de estar a acordar pessoas e situações que trazem a compreensão de alguém que se torna inevitável para nós, porventura trazendo informação à História, é uma emoção irresistível mas que não tem precisamente nada a ver com “recuperar” uma figura, nem é maior por ela nos ser familiar. Senti uma emoção parecida ao estudar o espólio de Genoveva de Lima Mayer, a quem não me ligam laços de qualquer género. A imperfeição do meu avó, e depois a da escritora Veva de Lima, fizeram de mim escritora.
O que trouxe da sua experiência profissional anterior e o que foi necessário aprender?
Na biografia do meu avó quis ser absolutamente rigorosa, o livro tem mais de três centenas de notas de rodapé que identificam o documento citado. É quase uma tese, que ainda assim tentámos escrever com ritmo e de forma não enfadonha. Fizemos capítulos que podem ser entendidos isoladamente, usámos destaques e títulos desconcertantes. Está lá a minha experiência de edição e de jornalismo.
No livro inspirado na vida de Veva de Lima foi necessário arriscar muito mais, entrei na ficção, zona desconhecida e cheia de desastres. É um romance histórico, alguns consideram-na uma biografia romanceada. Mais uma vez parti de um espólio desconhecido, grande parte correspondência, e comecei a aproximar-me, a relacionar-me com o que ali estava. Li e reli, acabava sempre com mais perguntas, foi preciso juntar as peças porque eram muitos os documentos não datados e sem destinatário. Veva levava sempre a melhor, é absolutamente contraditória e desprotegida, se bem que fosse de uma arrogância e ousadia sem limite.
“O método é o do salve-se quem puder, tudo passa a dizer respeito àquilo que estamos a escrever, tudo se relaciona”
Fez alguma formação específica antes de começar a escrever?
Quando comecei a pensar no primeiro livro a Escrever Escrever tinha um curso dedicado à escrita de biografias familiares. O formador era o José Vegar, que tinha sido meu colega no Semanário, a quem devo ter assustado com o caos da minha intenção. Demorei sete anos a escrever a biografia, um caminho solitário em que o livro foi amadurecendo, o índice que sustem a estrutura da narrativa, que o José Vegar tão bem nos ensinava a fazer, acabou por ter pouco a ver com o livro publicado.
Como é o seu método de trabalho como escritora?
O que me atou a estes dois livros foi o acesso às suas vozes, às suas palavras. A questão era segui-las. Com Veva de Lima ficcionei alguns episódios que depois vim a perceber que tinham sido assim, na realidade. Houve uma fase em que ela me levou ao colo, acho que já desesperada com a minha vontade de querer dar racionalidade ao que era compulsivo e contraditório.
O método é o do salve-se quem puder, tudo passa a dizer respeito àquilo que estamos a escrever, tudo se relaciona. Alimentamo-nos de tudo o que conseguimos encontrar, livros, filmes, teses académicas, conversas com eventuais fontes. No caso de Veva apaixonei-me pela música da altura, estudei perfumes, cremes e maquilhagem, descobri vinhos e automóveis, para além dos interiores dos lugares fantásticos que a atraíam. Não foi menos importante do que compreender o contexto político ou conhecer as escritoras dos anos 20.
O primeiro livro foi sobre o seu avô e foi escrito a quatro mãos. Quais os principais desafios que enfrentou nessa primeira experiência?
Correu muito bem a co-autoria com a Ana Mantero, minha prima e neta mais velha de Leitão de Barros. Na verdade, o livro parecia não ter fim, estava escrito a três quartos, mas parecia que me faltava imenso. Leitão de Barros é um artista multifacetado, era muito grande a ambição de o biografar.
O Afonso Cortez tinha dedicado a Leitão de Barros a sua tese de doutoramento, não esqueço a tarde em que o encontrei pela primeira vez, estava tão ávida de conversar e trocar ideias que deixei passar as horas, quando dei conta eram 11h da noite e não se tinha falado em jantar. Comecei então a falar com a Ana sobre esta tese e os documentos do espólio, ela interessou-se e vibrava com o que desconhecíamos. Lancei-lhe o repto de se juntar a mim e ela mergulhou a fundo nos Cortejos, no urbanismo abordado nas crónicas Corvos, no lado visionário de Leitão de Barros em matéria de turismo. A entrada da Ana no processo foi estimulante.
“O feminismo não foi apenas feito de associativismo, é também feito com mulheres que não aceitam viver limitadas na sua liberdade”
O que a levou a escrever sobre Veva?
A sua correspondência. A voz moderna e inquieta, o espírito crítico e a opinião firme, tudo de mau tom na sociedade portuguesa. E a sua Casa impensável. Por quase milagre mantém-se como era. É um legado impressionante.
O que mais a marcou na sua pesquisa sobre a vida das mulheres nessa época?
Isso levaria a uma segunda entrevista, de tão espantoso que é o encontro com uma dezena de mulheres que estão completamente à frente do seu tempo.
Quais as principais lições que aprendeu com Veva?
O resto do mundo é o principal inimigo do salazarismo, «ter mundo» condenou, isolou e deprimiu Veva de Lima – e ter mundo é ter cultura, ler imprensa internacional e viajar.
Não é bem uma lição, mas fiquei com maior noção de que o feminismo não foi apenas feito de associativismo, é também feito por dentro do sistema, nas elites, com mulheres que não aceitam viver limitadas na sua liberdade. E Veva tenta o impossível, o equilíbrio entre favorecer a carreira do marido e viver como lhe dá nas ganas.
Já decidiu sobre o tema/personagem do seu próximo livro? O que nos pode adiantar?
Pela frente tenho um desafio enorme, é suposto dizer isso. Mas não sei. Existem muitos personagens provocadores que me cercam, o mais misterioso é saber porque nos fixamos e obcecamos num deles.
Que conselho deixa a alguém que sonhe escrever um livro?
Encontro pessoas que me contam a sua vontade de escrever sobre os avós ou a família. Isso perturba-me sempre. Fico com vontade de ir com essas pessoas para casa e de me instalar lá. Os livros fazem-se eles mesmos, tenhamos inquietação suficiente que os alimente, estou a crer nisso.
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