Joana Carrasqueira: “Vou continuar a seguir novas oportunidades sem medo”

Joana Carrasqueira sempre quis trabalhar em projetos de larga escala, que tivessem impacto na comunidade e ajudassem a mudar, para melhor, a vida das pessoas. Pensou que faria isso na área da saúde, mas entretanto descobriu que consegue melhores resultados através da tecnologia. Hoje é responsável na Google pela introdução de novos produtos de machine learning em novos mercados.

Joana Carrasqueira é Head of Community for Developer Relations - Machine Learning na Google.

Joana Carrasqueira licenciou-se em Ciências Farmacêuticas e depois de seis meses em Londres como investigadora, voltou a Portugal para a Ordem dos Farmacêuticos. Quando fez a entrevista de recrutamento o sonho era terminar ali a carreira, mas oito meses foi o máximo que conseguiu, pois rapidamente se desiludiu a trabalhar em Portugal. Joana Carrasqueira entende que deve haver abertura para perceber que as boas ideias devem vir de qualquer um e não apenas do chefe. “Portugal precisa de novos modelos de gestão mais flexíveis e focados em resultados e produtividade”, defende. Foi para a Holanda onde trabalhou três anos na Federação Internacional dos Farmacêuticos. Senti-a que trabalhava mais no campo das ideias do que da prática e mais uma vez mudou. Fez um MBA no IE, interessou-se pela inovação e no final do programa rumou aos Estados Unidos, onde descobriu que ali era feliz. Em menos de um ano estava a trabalhar na Google, na California, onde é hoje Head of Community for Developer Relations – Machine Learning, ou seja, responsável pela introdução de novos produtos de machine learning em novos mercados.

 

O que a levou a licenciar-se em Ciências Farmacêuticas e porque procurou outro caminho pouco depois de começar a trabalhar?

O mestrado integrado em Ciências Farmacêuticas é muito polivalente, ensina-nos competências técnico-científicas e interpessoais e tem várias saídas profissionais bastante apelativas. Esta polivalência e o facto de poder trabalhar em vários settings como a indústria farmacêutica, investigação, laboratório de análises, farmácia comunitária, sempre me aliciou, daí ter escolhido Ciências Farmacêuticas como formação base. Gosto de pensar em carreira como uma evolução dos nossos interesses, pelo que ter várias opções e não estar limitada a um tipo de emprego após a conclusão do curso era muito importante para mim.

Sempre quis trabalhar em projetos de larga escala, que tivessem impacto na comunidade e ajudassem a mudar, para melhor, a vida das pessoas. A área de Saúde Pública parecia um bom match para os meus objetivos, e comecei por trabalhar em política de saúde. Rapidamente o meu interesse evoluiu no sentido de ver as políticas saírem do papel e passarem a ser realidade. Para estar apta a liderar e a implementar este tipo de mudança, precisava de mais competências ao nível da gestão, marketing e empreendedorismo. Foi por esta razão que comecei por fazer uma pós-graduação em Gestão e Marketing na Universidade Católica e posteriormente o MBA.

Quando decidiu fazer o MBA já queria mudar para a área da tecnologia ou foi uma descoberta que fez durante a formação?

Foi uma descoberta durante a formação, a qual continuou posteriormente. O mundo da tecnologia tem muitas opções: desde a consultoria em transformação digital para ajudar empresas a tornarem-se mais inovadoras e competitivas com recurso a tecnologia, o desenvolvimento de software, a introdução de novos produtos mercado em B2B ou B2C, e como tal, também aqui quis alargar horizontes e comecei por trabalhar em consultoria de inovação no Silicon Valley Innovation Center, que me expos a vários desafios completamente diferentes. Estando em Silicon Valley tive a vantagem de não só trabalhar com empresas de várias indústrias, dimensão e nível de maturidade de negócio, incluindo, empresas do top 500 da Forbes, mas também startups, empresas de capital de risco, aceleradoras, etc. Cada tipo de cliente tem necessidades específicas e desenvolver estratégias para tantas empresas foi realmente uma ótima experiência após o MBA.

 

“Quando sabemos em quem não nos queremos tornar, fica mais fácil encontrar o caminho certo”

Como é que surge a Google no seu caminho e o que a atraiu nesta empresa?

Silicon Valley, na Califórnia, é a região onde se encontram as sedes mundiais das maiores empresas de tecnologia. Tendo tido a oportunidade de trabalhar com tantas empresas diferentes, comecei a perceber que cada gigante tecnológica tem uma cultura muito própria. Todas empresas altamente inovadoras, mas todas com cultura e formas de trabalhar diferentes. A Google aliciou-me bastante por ter uma grande variedade de produtos, várias áreas de negócio e um grande impacto a uma escala mundial. A minha experiência com o processo de recrutamento também foi bastante positiva, a seleção é muito competitiva já que há milhares de pessoas de todo o mundo a candidatarem-se ao mesmo cargo, pelo que trazer perspetivas diferentes é uma mais valia e a capacidade de nos adaptarmos a um mundo em constante mudança é cada vez mais um requisito no mercado de trabalho atual.

No início a farmacêutica não se sentiu fora de pé no meio dos programadores? Como lidou com isso?

Sinceramente, não me senti fora de pé. Apesar de o mundo farmacêutico ser predominantemente feminino, em cargos de chefias de topo ou gestão de equipas, ainda vemos que os mesmos são maioritariamente ocupados por homens. Na Federação Mundial de Farmacêuticos trabalhava com equipas multidisciplinares de especialistas, as quais na altura, tinham maioritariamente chefias masculinas, pelo que a transição para um sector predominantemente masculino não me chocou. Gosto de pensar no valor que acrescento às equipas, nas competências únicas que tenho, sejam associadas ao género ou não, e em como acrescentar valor aos projetos e produtos. Tive bons mentores em início de carreira, sempre gostei de observar o comportamento das minhas chefias, então desde cedo tive uma ideia muito clara do tipo de líder que não queria ser. Quando sabemos em quem não nos queremos tornar, fica mais fácil encontrar o caminho certo. Sei que a minha experiência não é representativa de grande parte das mulheres no sector, daí ter criado um programa intitulado Women in Machine Learning, que fomenta a partilha de experiências e criação de oportunidades para mulheres e minorias no sector.

Como é que a sua experiência acrescenta valor à Google? O que leva de diferente às suas equipas?

Gosto de praticar liderança inclusiva e assegurar que todas as vozes são ouvidas, daí quando me apresentei às equipas, expliquei o meu background, o valor, que na minha opinião iria agregar aos projetos e deixei claro que o meu objetivo seria trazer resultados positivos para a equipa como um todo. Da parte das ciências farmacêuticas, trago o pensamento científico, a empatia e a vontade de resolver problemas. Da parte de negócio trago a visão estratégica e de produtividade. Assim acredito que um ponto forte que me distingue é a capacidade de extrair ambiguidade da tomada de decisões e focar-me nos dados, ter empatia, dar feedback de forma constante (celebrando sempre pequenas conquistas e milestones) comunicar expectativas e distribuir trabalho pela equipa de acordo com a vontade e rapidez de progressão que cada membro requer. Equipas mais motivadas têm uma melhor performance e, no final, trarão melhores resultados para a empresa.

 

“Todos os dias há um puzzle novo que temos de resolver e eu adoro isso”

Qual é hoje a sua função e em que consiste?

Sou Head of Community em Developer Relations para as áreas de Inteligência Artificial e Machine Learning. Grande parte do meu dia consiste em desenvolver estratégias para manter ou aumentar o posicionamento de mercado em várias audiências específicas, sendo que a maior fatia são os programadores, que utilizam as nossas tecnologias nas suas empresas ou como hobby. Desta forma, tenho um cargo muito multidisciplinar e abrangente, uma vez que trabalho tanto o lançamento de produtos, experiência de utilizador, posicionamento estratégico de mercado, evangelização tecnológica, eventos e conteúdos.

O que mais gosta na sua função?

Adoro a abrangência e ambiguidade do cargo e do setor. Estamos literalmente a criar a indústria e como tal é um espaço muito inovador, onde existem muitas oportunidades e desafios. Todos os dias há um puzzle novo que temos de resolver e eu adoro isso mesmo: procurar soluções para desafios que vão impactar a humanidade a larga escala, como é o caso dos agora tão falados Large Language Models. Depois, claro, adoro as pessoas. Considero que trabalho com algumas das pessoas mais inteligentes e interessantes que conheço, então a cultura da nossa organização é realmente fantástica.

Onde se vê daqui a cinco anos?

Ultimamente, esta pergunta tem-me sido colocada frequentemente. Sinceramente não sei, o mundo tem mudado de forma muito rápida para fazermos planos a longo/ médio prazo. Mas tenho a certeza de que irei continuar a desafiar-me e aos que me rodeiam, a seguir novas oportunidades sem medo, e a querer trazer mais inovação para Portugal e para as empresas portuguesas. Precisamos de novos modelos de gestão mais flexíveis e focados em resultados e produtividade. Tem de haver uma maior aposta no desenvolvimento profissional dos colaboradores e uma maior aproximação das chefias a cargos de middle-management e mais juniores. Tempos incertos pedem mais transparência, e as pessoas estão prontas para dar mais, se souberem exatamente o motivo pelo qual é pedido que tenham um output mais eficaz. Quero fazer mais sessões de inovação, consultoria e mudança de mentalidade para executivos.

 

“Temos de eliminar o estigma de que não existe espírito de entreajuda entre mulheres no trabalho”

Joana Carrasqueira é Head of Community for Developer Relations - Machine Learning na Google.

Sente-se um role model para mulheres que trabalham ou sonhem trabalhar em tecnologia?

Não me sinto uma role model, mas gosto de pensar que o meu trabalho irá abrir mais oportunidades para as próximas gerações de mulheres em ciência e tecnologia. Temos de incentivar as jovens a estudar e a permanecer em áreas ligadas à ciência e tecnologia. Daí a minha geração ter a responsabilidade de criar oportunidades de mentoria para as mulheres mais jovens e de eliminar o estigma de que não existe espírito de entreajuda entre mulheres no local de trabalho. Quando uma ganha, ganhamos todas, só assim conseguimos mudar mentalidades no local de trabalho e na sociedade em geral, que ainda associa grande parte do trabalho doméstico como sendo uma “tarefa feminina”. Temos de nos habituar a celebrar o sucesso de cada uma.

O que a levou a organizar o primeiro simpósio de mulheres em machine learning na Google e como é que a ideia foi recebida internamente?

A ideia original era organizar um evento intimista, convidar mulheres influentes no sector para partilhar experiências e histórias sobre a evolução da sua carreira. Contudo, a ideia foi ganhando tração e mais mulheres tiveram vontade de se juntar à iniciativa, pelo que o programa foi-se desenvolvendo naturalmente, mas mantivemos os valores iniciais de proximidade, vulnerabilidade e honestidade. Foram uma série de conversas muito interessantes e contamos com o total apoio da Vice Presidente Jeanine Banks e do Diretor de Produto Kemal El Moudjahid, que foram grandes impulsionadores deste programa e são grandes fontes de inspiração para mim. A ideia teve fortes sponsors que viram o potencial do programa, mas a primeira edição não foi um simpósio tecnológico, foi um simpósio de carreira em tecnologia. O conteúdo foi totalmente focado no futuro do sector, estratégias para melhorar a diversidade de equipas, e muito tático relativamente a recomendações de desenvolvimento de carreira através de vários workshops.

O feedback recebido foi muito positivo e criamos um forte sentimento de pertença na comunidade. Não havia dúvidas de que tínhamos feito história! Claro que após a primeira edição também recebemos comentários menos positivos nas redes sociais, mas faz parte, gerou discussão na comunidade e percebemos o que melhorar na segunda edição.

Qual o impacto real que a iniciativa teve junto das mulheres e do mercado e que mudanças fez para a edição de 2022?

Na edição de 2022, o Simpósio tornou-se verdadeiramente um simpósio de tecnologia e o conceito principal foi “women teaching everyone about ML”, havendo assim uma grande mudança de paradigma. Abordamos conteúdo inovador como stable diffusion models (modelos que convertem texto em imagens), e fizemos o lançamento de novas features como foi o caso do Simple ML, que foi mesmo considerado uma das top 10 inovações em ML no ano de 2022, um add-on para Google sheets que permite a qualquer pessoa fazer análise de dados sem um backgroundtecnológico. O branding do evento ganhou cores Google e estava então estabelecido um dos programas mais reconhecidos no sector. Aberto a toda a gente, tivemos uma grande adesão tanto por mulheres, homens e comunidades de programadores não-binárias. Conteúdo sempre inovador, novos ângulos de discussão e um ambiente de growth mindset tem sido os pilares através dos quais pautamos pela diferença.

O que vai acrescentar na edição deste ano?

Ainda não temos nada confirmado, mas certamente irá surpreender e acrescentar valor tal como nas edições anteriores.

 

Aqui sinto que não há teto ou pelo menos não é tão baixo quanto em Portugal”

É certo que está numa empresa única, mas que principais diferenças destaca entre trabalhar em Portugal e nos Estados Unidos?

Nos EUA depende muito da empresa e do estado, uma vez que as leis laborais são bastante diferentes de estado para estado. Nos EUA sinto que há uma maior preocupação com a produtividade, a rapidez de resposta e resultados.  Em Portugal e países latinos há uma maior socialização após o trabalho e os colegas facilmente se tornam amigos. Aqui já não é tanto assim, a cultura e maximizar o dia de trabalho para se ter mais tempo para a família e as comunidades fora do trabalho, pelo que também se torna mais difícil fazer amigos no início. Aqui sinto que não há teto ou pelo menos não é tão baixo quanto em Portugal, as equipas são mais globais e sendo um mercado maior, vão naturalmente haver mais oportunidades de crescimento profissional. Vê-se menos a dança das cadeiras entre as mesmas pessoas em cargos de liderança, o que é algo refrescante na minha opinião.

Como vê o futuro do trabalho? O teletrabalho não está a minar o espírito de equipa?

O futuro do trabalho tem de ser flexível, dar oportunidade às pessoas de escolherem várias modalidades de trabalho dependendo do que faz mais sentido para a sua vida. Temos ótimos softwares de colaboração que facilitam a comunicação e gestão de projetos, mas o grande desafio não está só ao nível da escolha das ferramentas certas, mas sim de ter menos micro gestores a gerir equipas e mais líderes que querem verdadeiramente fazer o melhor para o negócio e para os colaboradores. Vejo que muitas empresas, levaram o modelo de reunião presencial diretamente para o online e acabam por criar uma grande saturação de reuniões, 2h ou 3h que poderiam ser 30 minutos se a reunião tivesse um moderador e regras pré-estabelecidas. Temos de agilizar o trabalho online, colaborar em tempo real, tirar notas ou fazer minutas durante a reunião. Acrescentando sessões de team-building virtuais e jogos interactivos conseguimos manter a motivação da equipa. Pessoalmente, gosto de um modelo híbrido, com dias de trabalho individual em casa e colaboração no escritório.

O que resta hoje do sonho que a levou a escolher Ciências Farmacêuticas?

Continuo a ter um grande carinho pelo setor da saúde e estou sempre disponível para partilhar novas ideias e formas de trabalhar. Quero continuar a estar presente na vida das pessoas e comunidades, seja num papel de educação para a saúde ou de educação para a evolução tecnológica.

Que mensagem deixa às mulheres que acham que essa área ainda é um mundo de homens onde as mulheres não têm possibilidade de progredir?

As mulheres têm a possibilidade de fazer o que quiserem. Somos mais mulheres a entrar nas universidades e temos de ser mais mulheres a querer seguir cargos de liderança. Ser ambiciosa e ter objetivos de vida e profissionais é perfeitamente normal, temos de ser empáticos com as escolhas de cada um, mas não temos de nos fazer pequenas para encaixar num modelo social que já não existe, ou com as expectativas dos outros. Procurem mentoras, trabalhem na vossa comunicação e encontrem o vosso cunho pessoal. O que é que vos caracteriza no local de trabalho? Mantenham-se fiéis a vocês próprias porque é esse exatamente o maior diferenciador que têm a oferecer a uma empresa. Todos conseguimos fazer, o como fazemos é que é único!

 

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