O que falta para as mulheres dormirem em paz?

A psicóloga especialista em sono defende que as mulheres precisam de reconhecer o direito a dormir bem e de perderem a vergonha de assumir o respeito pelo sono. "Uma mulher bonita, realizada e feliz é uma mulher que dorme bem, mesmo que para isso tenha de resistir a algumas críticas."

Teresa Rebelo Pinto é psicóloga especialista em sono.

Teresa Rebelo Pinto é psicóloga, certificada em Sono pela European Sleep Research Society. Foi coordenadora do Sono Escolas, projeto de educação do sono a nível nacional, e pertence à Associação Nuvem Vitória, que trabalha para melhorar a qualidade do sono das crianças hospitalizadas. Autora de vários artigos científicos, fundou recentemente a Clínica Teresa Rebelo Pinto — Psicologia & Sono, que oferece um serviço de psicologia do sono, que faz a ligação entre a Psicologia e as Ciências do Sono e é reconhecida como especialidade científica pela American Psychological Association. Neste artigo, que preparou a pensar nas leitoras da Executiva, defende que “é urgente incluir nos direitos da mulher o direito à qualidade do sono. É que não basta dormir um certo número de horas, é fundamental que o façamos com qualidade.”

 

“Nem sempre o sono é uma prioridade na vida das mulheres. Embora o dia tenha 24 horas, parece que arranjamos tempo para tudo: trabalhar, estudar, cuidar da casa e dos filhos, cozinhar, fazer exercício físico, namorar, estar com amigos, ir ao cabeleireiro. E dormir? Raramente entra na lista e, quando assim é, somos mal vistas.

Em pleno século XXI, são poucos os que se atrevem a dizer que dormir não serve para nada, que é uma perda de tempo ou que é para fracos. Nada disto tem validade científica, todos reconhecemos que o sono é importante para a saúde física e mental, para a segurança e para a boa convivência social e familiar. Temos a certeza que dormir nos faz bem e faz-nos falta. No entanto, contentamo-nos com uma noite razoável e somos pouco exigentes em relação à qualidade do sono. Julgamos que a sonolência se resolve com mais um café e que as noitadas fazem parte da rotina das pessoas bem-sucedidas. Não podíamos estar mais enganadas.

A organização da vida atual não é muito favorável ao sono, quer seja pelo excesso de estímulos a que estamos constantemente expostos, pela invasão do trabalho na vida familiar ou pela abolição de horários e ausência de rotinas no dia-a-dia.

Embora nas sociedades industrializadas seja comum sentirmos que não “sobra” muito tempo para dormir, as mulheres parecem particularmente vulneráveis a esta situação que será, mais cedo ou mais tarde, catastrófica e dramática. De facto, a organização da vida atual não é muito favorável ao sono, quer seja pelo excesso de estímulos a que estamos constantemente expostos, pela invasão do trabalho na vida familiar ou pela abolição de horários e ausência de rotinas no dia-a-dia.

Vivemos absolutamente ligadas, queremos acompanhar tudo ao minuto, independentemente da hora do dia ou da noite. É comum, mas ainda assim arrepiante, ouvir discursos do género “fui de baixa para pôr o sono em dia”, “tive um esgotamento porque não dormia o suficiente” ou “passei a dormir porque o meu médico me obrigou”. Temos de confessar, (ainda) não é sexy desligar voluntariamente das solicitações externas e dar primazia ao sono.

Felizmente, são várias as mulheres que já deram o seu exemplo, revelando o que as levou a alterar de forma radical os seus hábitos de sono. O que mais me impressionou até hoje foi a história de Arianna Huffington, cofundadora do conhecido The Huffington Post, exemplo de liderança e inspiração feminina.

Felizmente, são várias as mulheres que já deram o seu exemplo, revelando o que as levou a alterar de forma radical os seus hábitos de sono. O que mais me impressionou até hoje foi a história de Arianna Huffington, cofundadora do conhecido The Huffington Post, exemplo de liderança e inspiração feminina. No seu livro A revolução do sono, confidencia como um desmaio (que a fez bater com a cara na secretária, partindo o osso zigomático) a fez despertar para a importância de dormir bem. Além de uma excelente reportagem sobre as principais atitudes face ao sono, este livro resume de forma notável o que a investigação tem vindo a demonstrar sobre os seus mecanismos e funções. Além disso, convida-nos a revisitar a relação que temos com o sono, ajudando a torná-la menos tensa e forçada. É um brilhante testemunho na primeira pessoa, que recomendo a todas as mulheres (e homens!) que estão esgotadas, infelizes ou “cansadas de estar cansadas”, como refere a autora.

As mulheres demoram mais tempo para adormecer do que os homens e têm maior propensão para interrupções no seu padrão de sono. Também  têm cerca de duas vezes mais probabilidade de reportar problemas de ansiedade e depressão, que andam frequentemente de mãos dadas com insónias. Além disso, o sono é sentido de forma diferente por homens ou mulheres, sendo mais difícil para as mulheres procurar tratamento para algumas patologias do sono.

Pegando no que nos diz a ciência, afinal existem ou não diferenças de género em relação ao sono? A resposta é sim, sem sombra de dúvida. Considerando que o desenvolvimento feminino tem tantas particularidades, os padrões de sono não são exceção.

Do ponto de vista fisiológico, sabemos que as mulheres demoram mais tempo para adormecer do que os homens e têm maior propensão para interrupções no seu padrão de sono. Isto pode associar-se a um conjunto de fatores, como as variações hormonais que experimentamos ao longo do ciclo menstrual, a necessidade de cuidar de alguém que precise de apoio durante a noite ou o aparecimento de sintomas exuberantes que interfiram com o sono, como episódios de afrontamentos durante a menopausa.

Também sabemos que as mulheres têm cerca de duas vezes mais probabilidade de reportar problemas de ansiedade e depressão, que andam frequentemente de mãos dadas com insónias. Além disso, o sono é sentido de forma diferente por homens ou mulheres, sendo mais difícil para as mulheres procurar tratamento para algumas patologias do sono.

A queixa de sono mais comum nas mulheres será seguramente a insónia, que tem 40% mais de probabilidade de aparecer numa mulher do que num homem (de acordo com a National Sleep Foundation). Enquanto os homens têm mais propensão para problemas respiratórios, como a apneia obstrutiva do sono, as mulheres sofrem mais de insónias e pernas inquietas. Por outro lado, associado ao aumento de peso típico da menopausa, o risco de desenvolver apneia do sono torna-se idêntico para homens e mulheres após esta fase da vida. Ao longo da gravidez, as mulheres têm mais risco de sofrer de apneia e de pernas inquietas, existindo quase sempre alterações significativas no sono. Também a necessidade de ir à casa-de-banho durante a noite, as cãibras e algumas dores locais podem prejudicar a qualidade do sono durante esta fase da vida.

Não há dúvida que o sono se altera ao longo das diferentes fases da vida de uma mulher. Se aos aspetos fisiológicos acrescentarmos as exigências familiares e profissionais que muitas mulheres vivem, sobretudo em cargos de topo, está composto o ramalhete da má qualidade do sono.

Nas consultas de Psicologia do Sono, identifico algumas situações que resumem os maus padrões de sono das mulheres:

  1. Dormir a correr – caso típico das mulheres ocupadas, fãs do multitasking e com dificuldade em recusar tarefas: sentem que há tanto para fazer que mal têm tempo para dormir
  2. Ir dormitando – onde se enquadram as mulheres com relutância em desligar, quer por necessidade de manter um estado de alerta constante, quer por viverem situações que interrompem periodicamente o sono (como a maternidade ou a existência de alguma patologia do sono)
  3. Querer dormir e não conseguir – além das que sofrem de insónia, incluem-se neste grupo todas as mulheres que desconhecem os verdadeiros facilitadores da qualidade do sono ou que partilham o quarto com alguém que ressona.

Poderia ser socialmente valorizado quando assumimos os nossos horários preferenciais. Em vez disso, ao recusarmos um convite para jantar às 22h porque preferimos respeitar a nossa rotina habitual de sono, somos automaticamente rotuladas de fracas, preguiçosas ou desinteressantes. Ou somos arrogantes ao pedir que comecem uma reunião mais tarde, de maneira a garantir que dormimos o suficiente.

É urgente incluir nos direitos da mulher o direito à qualidade do sono. É que não basta dormir um certo número de horas, é fundamental que o façamos com qualidade.

Por exemplo, poderia ser socialmente valorizado quando assumimos os nossos horários preferenciais. Em vez disso, ao recusarmos um convite para jantar às 22h porque preferimos respeitar a nossa rotina habitual de sono, somos automaticamente rotuladas de fracas, preguiçosas ou desinteressantes. Ou somos arrogantes ao pedir que comecem uma reunião mais tarde, de maneira a garantir que dormimos o suficiente.

Parece que quem vai dormir a horas certas não tem nada importante para fazer em alternativa, dorme porque está entediada, para fugir da realidade ou é irresponsável. Por incrível que pareça, já ouvi na minha consulta todos estes preconceitos, sobretudo em relação a mulheres.

Faz muita falta que as mulheres durmam com a qualidade que merecem e que se acabe definitivamente com o estigma em relação ao sono no feminino. Acima de tudo somos humanas, precisamos de dormir para sobreviver.

Queremos dormir à força, em vez de criar as condições ideais. Como mulher, mãe e psicóloga do sono, sinto-me responsável por ajudar a inverter este paradigma. Pessoalmente, o melhor presente que recebi desde o início da pandemia foi uma boa noite de sono, numa saída de escape ao teletrabalho e aos biberons da meia-noite.

Os meus conselhos? Não fazer batota no sono (mais um conceito delicioso de Arianna Huffington), reconhecer o direito a dormir bem, perder a vergonha de assumir o respeito pelo sono. Uma mulher capaz, bonita, realizada e feliz é uma mulher que dorme bem, mesmo que para isso tenha de resistir a algumas críticas.

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