Cristina Gamito é partner da Deloitte Portugal, responsável pelas áreas de Consultoria de Serviços Financeiros e o setor de Insurance. Com mais de 20 anos de experiência em Serviços Financeiros, trabalha com seguradoras em Portugal, Países Nórdicos e Angola. A executiva também lidera o Technology Consulting Group, assim como o portefólio de Customer & Marketing, na indústria de Serviços Financeiros.
Ao longo do seu percurso, tem-se envolvido no planeamento estratégico de Tecnologias de Informação em diversas organizações, na eficácia das suas operações, na sua transformação digital e central, a fim de impulsionar a eficiência e o crescimento rentável.
Nesta entrevista, Cristina Gamito faz o ponto de situação da presença das mulheres na área tecnológica e defende que “é necessário atrair as raparigas para estas áreas e a educação para a tecnologia tem que ser uma prioridade com o contributo do sistema educativo, da sociedade e as empresas têm um papel muito importante a desempenhar.”
Enquanto jovem tinha pendor para a área da saúde. O que a levou a optar por Ciências da Computação?
Apesar da minha escolha pela área de saúde, houve dois motivos que me levaram a optar por ciências da computação. O primeiro, constatar que definitivamente não tinha a capacidade para continuar na área de Saúde, nomeadamente medicina, porque apesar das boas notas percebi que não conseguiria gerir emocionalmente as situações com que me iria deparar. O segundo foi procurar algo que me permitisse resolver problemas complexos e com oportunidades de futuro. Foi um caminho que me foi apresentado de forma entusiástica por um familiar e prevaleceu o meu pragmatismo e vontade de descobrir um mundo que desconhecia totalmente. Não tendo sido um sonho de infância, foi sem dúvida uma decisão acertada.
[No Instituto Superior Técnico] descobri o meu caminho futuro, porque percebi que o espaço dos sistemas digitais, de arquitetura e em particular da programação era uma área na qual me conseguia divertir.
Qual foi a experiência de cursar essa área no Instituto Superior Técnico?
O Técnico foi uma grande lição de humildade e persistência, pois pela primeira vez era apenas mais uma aluna e não estava no grupo dos melhores a que estava habituada. Também pela primeira vez estava num ambiente em que a representatividade das mulheres era muitíssimo baixa, já que apenas 10% das alunas eram mulheres. Encontrei assim um universo diferente do que me era habitual e no qual não estava confortável, mas que me permitiu focar em encontrar experiências positivas na perspetiva educacional e pessoal, já que desistir sem tentar não era uma opção.
Consegui encontrar no Técnico algumas disciplinas que me fizeram descobrir o meu caminho futuro, porque percebi que o espaço dos sistemas digitais, de arquitetura e em particular da programação era uma área na qual me conseguia divertir. O Técnico acabou, assim, por definir o primeiro passo do meu caminho profissional, o desenvolvimento de software, e permitiu-me desenvolver alguns soft skills que considero fundamentais para a minha vida, até hoje: humildade, persistência e resiliência.
Como ingressou na consultoria?
Na altura, tal como no momento atual, existia uma enorme oferta de emprego para jovens licenciados em engenharia e surgiu uma oportunidade que respondia à minha vontade de fazer desenvolvimento de software numa empresa multinacional, embora não fosse numa consultora tradicional. Mais tarde acabei por ser desafiada para me juntar ao grupo de consultoria de uma das Big 4 e entendi na altura que seria uma boa oportunidade para continuar a utilizar a tecnologia para resolver problemas complexos.
O que a reteve nesta área da consultoria? Quais as razões por que nunca deu o salto para o lado do cliente?
Por um lado, a exposição a uma diversidade de experiências, de contextos e de universos de complexidade que entendi serem aceleradores da minha aprendizagem e do meu crescimento profissional. Adicionalmente, encontrei na Deloitte um ambiente inclusivo em que podia ter a minha voz, numa equipa que sempre me apoiou, em termos do meu desenvolvimento profissional, mas também do ponto de vista daquilo que foi o meu percurso pessoal, como mulher e mãe. Sempre tive um contexto que permitiu conciliar estas duas perspetivas, o que para mim foi fundamental, pois a minha família era e é a prioridade.
Não dei o salto para o lado do cliente porque sempre me senti bem na Deloitte. Consegui as oportunidades, o reconhecimento, a possibilidade de fazer as minhas escolhas e ter o meu ritmo. Permitiu-me desenvolver novas competências e descobrir novos desafios profissionais que me fazem sentir que aprendo e tenho impacto nos meus colegas, nos clientes e na sociedade.
Não tive uma ambição de progressão de carreira bem definida, mas sempre procurei novos desafios que me realizassem. Na Deloitte foi-me dada a oportunidade de evoluir, trabalhando em vários sectores, em diferentes domínios de competência, servindo diferentes clientes e trabalhando em diferentes geografias e culturas.
Está há 23 anos na Deloitte. Como é possível fazer carreira e progredir numa mesma empresa?
Com mais de 23 anos de Deloitte posso dizer que praticamente fiz a carreira numa mesma empresa apesar de nos primeiros anos ter passado por outras duas.
Quando a empresa cresce, evolui e se reinventa ao longo do tempo e quando participamos nessa jornada, tudo se torna mais fácil e as barreiras desaparecem. Esta tem sido a minha realidade na Deloitte. Confesso que não tive uma ambição de progressão de carreira bem definida, mas sempre procurei novos desafios que me realizassem. Na Deloitte foi-me dada a oportunidade de evoluir, trabalhando em vários sectores, em diferentes domínios de competência, servindo diferentes clientes e trabalhando em diferentes geografias e culturas. Sendo uma empresa global as fontes de inspiração são múltiplas e diversas. Mas sobretudo na Deloitte encontrei uma equipa solidária em que prevalece a colaboração e a autenticidade de cada e com a qual todos os dias aprendo. Com estes ingredientes é, efetivamente, possível fazer carreira e progredir numa só empresa.
Na sua vida profissional, cruza a tecnologia com a atividade bancária e financeira, duas áreas tradicionalmente masculinas. Alguma vez se sentiu discriminada, que a sua voz não era ouvida, ou que os unconscious bias se fazem sentir no trabalho?
Eventualmente, posso ter vivido numa bolha especial, mas nunca me senti discriminada, nem senti que a minha voz não era ouvida. Na verdade, foi o facto de nunca ter sentido nenhuma destas condicionantes que também me fez continuar na Deloitte. O nosso modelo é meritocrático e a evolução de carreira e remuneração são definidas em função da performance num contexto de igualdade de oportunidades, pelo que a discriminação não existe.
Apesar de efetivamente, a nível de gestão e executivo, ser um mundo dominado por homens, a verdade é que nos primeiros anos da minha carreira não tive esse sentimento. Os projetos onde participei tinham um número razoável de mulheres, quer do lado das equipas de consultoria, quer dos clientes pelos quais passei pelo que nunca me senti muito sozinha.
Claro que à medida que fui evoluindo na minha carreira e fui assumindo posições de gestão, progressivamente fui-me sentindo menos acompanhada por mulheres, mas nem por isso sozinha, porque sempre tive a sorte de viver entre pares que me ouviam e sempre senti parte integrante do grupo.
Acelerar transformação quando o ponto de partida é de elevada complexidade, sem provocar disrupção de negócio, é naturalmente um grande desafio. Mas é um desafio que as organizações têm vindo a ultrapassar, e a forma como se adaptaram ao período da pandemia mostrou isso mesmo. Porém, há que manter o ritmo e conseguir transportar alguma da agilidade de decisão e de execução que foi adquirida em contexto de crise, para um contexto de operação em modelo de normalidade.
Quais os principais desafios que os líderes das áreas bancária, seguradora e tecnológica enfrentam e como podem esses desafios ser geridos com sucesso?
Interpretando a questão à luz dos desafios da tecnologia no contexto do setor financeiro, eu poria os desafios a dois níveis:
Um primeiro que se prende com a necessidade de acelerar a transformação digital, num contexto em que o universo tecnológico de base é um universo bastante complexo. Acelerar transformação quando o ponto de partida é de elevada complexidade, sem provocar disrupção de negócio, é naturalmente um grande desafio. Mas é um desafio que as organizações têm vindo a ultrapassar, e a forma como se adaptaram ao período da pandemia mostrou isso mesmo. Porém, há que manter o ritmo e conseguir transportar alguma da agilidade de decisão e de execução que foi adquirida em contexto de crise, para um contexto de operação em modelo de normalidade.
O segundo é o desafio do talento. Em todos os domínios tecnológicos estamos a sentir uma insuficiência de talentos face às necessidades. Atrair e reter os melhores talentos, fundamentais para a transformação digital, deve ser uma prioridade.
Temos que combater o estereótipo que a tecnologia é cinzenta, não é criativa e que passa por longas horas de trabalho.
Acerca da presença das mulheres na área tecnológica, qual o ponto de situação?
Estamos a viver um momento de elevada escassez de talento, a nível global, nos domínios tecnológicos e quando olhamos para a presença das mulheres neste universo elas estão claramente sub-representadas. Alguns estudos evidenciam que menos de 25% das mulheres tomam decisões educacionais nos domínios da tecnologia.
Em Portugal desde 2011 que mais de 60% dos licenciados em Portugal são mulheres.
Estamos perante um desafio, mas também uma oportunidade, de aumentar a representatividade das mulheres no mundo da tecnologia. Para o conseguir há obviamente um trabalho profundo a fazer que passa por várias dimensões: Por um lado importa despertar desde cedo o interesse pela tecnologia. Complementarmente medidas de reconversão como sejam programas de upskill ou re-skill de mulheres para que descubram no mundo tecnológico uma opção para desenvolverem a sua carreira.
Penso que temos que combater o estereótipo que a tecnologia é cinzenta, não é criativa e que passa por longas horas de trabalho. Há um lado criativo, positivo e também um pouco mais ligeiro, sobretudo no mundo atual onde temos novos paradigmas tecnológicos, que vêm permitir abordagens diferentes e mais simplificadas de criar soluções tecnológicas. Há que mostrar que a tecnologia pode ter várias faces, e algumas destas podem efetivamente enquadrar naquilo que são as preferências do universo feminino.
O que é possível fazer já para atrair e reter mais mulheres para trabalharem na área tecnológica?
Penso que o tema é em parte cultural. É necessário atrair as raparigas para estas áreas e a educação para a tecnologia tem que ser uma prioridade com o contributo do sistema educativo, da sociedade e as empresas têm um papel muito importante a desempenhar.
O que está a Deloitte a fazer nesta área para solucionar a escassez de talento?
Na Deloitte viver o nosso propósito passa por sermos uma organização comprometida em garantir que todos temos iguais oportunidades de desenvolvimento, tirando partido da diferença e autenticidade de cada um de nós. Existe uma iniciativa global – ALL IN – e a promoção da paridade de género é uma das dimensões de atuação e uma prioridade estratégica. Nesta dimensão o foco é aumentar a representatividade e empoderar as mulheres e para tal estamos a atuar em várias vertentes das quais destacaria:
Aumento do pipeline de talento, seja através da atuação junto dos jovens para melhorar a atratividade da tecnologia ou pela criação de academias para upskill e re-skill. Estamos ainda criar localizações em vários pontos do país que permitam aos profissionais ficar nas zonas da sua conveniência e por essa via conseguir também atrair mais mulheres.
Melhoria da retenção. Não tendo nós o problema de gap salarial ainda assim fizemos uma revisão da proposta de valor para as nossas pessoas o que inclui de medidas de flexibilidade, programas de suporte à parentalidade, programas de well-being e coaching, salas de amamentação entre outros. A maioria destas medidas pretende que homens e mulheres, indiferenciadamente, possam melhorar o seu bem-estar e assumir de forma similar as responsabilidades na sua vida pessoal. E quanto mais homens e mulheres tiverem responsabilidades similares e condições similares mais mulheres estarão disponíveis para apostar no seu desenvolvimento profissional. Reconhecendo a relevância da partilha e exposição a role models criamos ainda a iniciativa Women In Tech.
Promoção de uma liderança inclusiva. Dois exemplos do que estamos a fazer nesta dimensão são a sponsorização através de coaching ativo e formação específica das líderes do futuro e o reforço da cultura inclusiva suportada em indicadores e metas tangíveis que espelhem a ambição de paridade de género.
Hoje vivemos rodeados de tecnologia e o facto de as mulheres terem menos fluência digital leva a que obviamente lhes possa passar ao lado um mundo altamente promissor e em algumas circunstâncias serem excluídas do mundo profissional por via da maior automatização e peso da tecnologia.
Tem estado envolvida em grandes processos de transformação digital. As mulheres estão bem preparadas para agarrar este mundo, seja em termos operacionais ou de liderança?
O facto de termos uma maior preponderância de homens no mundo tecnológico conduz naturalmente a que a literacia tecnológica e digital das mulheres seja menor. Hoje vivemos rodeados de tecnologia e o facto de as mulheres terem menos fluência digital leva a que obviamente lhes possa passar ao lado um mundo altamente promissor e em algumas circunstâncias serem excluídas do mundo profissional por via da maior automatização e peso da tecnologia.
Acredito, e o que observo nas equipas com as quais trabalho, é que a partir do momento em que as mulheres entram neste espaço não é o género que define a capacidade de executar ou liderar. No entanto o desafio não é apenas o facto de como anteriormente referido menos mulheres fazerem escolhas educacionais no domínio da tecnologia, pois a retenção das mulheres é também um problema. A Deloitte tem vindo a fazer múltiplos estudos de mercado, sendo que um deles indica que duas vezes mais mulheres do que homens abandonam a sua carreira em tecnologia antes de atingirem uma posição de liderança, sendo as causas mais apontadas: (1) Preconceito/discriminação; (2) Dificuldade em integrar vida pessoal/ profissional e (3) Falta de sponsorização.
Estes três fatores têm de ser combatidos. As organizações estão hoje cada vez mais conscientes que a sustentabilidade tem que passar por uma cultura de diversidade e inclusão o que obviamente vai para além da questão do género. A existência de estratégias claras para a igualdade de oportunidades é fundamental e só assim o fosso entre homens e mulheres poderá desaparecer.
Nada como ter role models que possam mostrar o que é que significa efetivamente trabalhar em tecnologia, o quão gratificante pode ser, e que efetivamente é algo verdadeiramente alcançável e positivo.
A sua filha também seguiu uma formação na área tecnológica. Pensa que os role models podem ajudar a trazer mais mulheres para esta área?
Claramente! Acredito que esta tem que ser uma preocupação de todas nós que desenvolvemos o nosso percurso na tecnologia. Mostrar que é possível, mantendo as nossas características, tendo o nosso sucesso pessoal e ao mesmo tempo conseguir a realização profissional no mundo da tecnologia. Nada como ter role models que possam mostrar o que é que significa efetivamente trabalhar em tecnologia, o quão gratificante pode ser, e que efetivamente é algo verdadeiramente alcançável e positivo.
Que conselho deixaria a uma trainee que estivesse a iniciar a sua carreira nas STEM?
Ser curiosa. Arriscar. E ignorar os estereótipos. Acreditar que temos a capacidade de fazer algo nosso de cada contexto: nós não somos o resultado do que nos acontece, mas sim o resultado daquilo que fazemos com o que nos acontece. E, portanto, não ficar presa a preconceitos e ser autoconfiante.
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