“Hiperativa” confessa, o espírito “irrequieto” e “ávido” de descoberta que conduziram Ana Bispo Ramires da paixão pelo desporto, onde começou por ser atleta de andebol, à licenciatura em Psicologia Clínica pelo ISPA e, mais tarde, ao mestrado em Psicologia Desportiva pela Universidade do Minho e ao programa de Doutoramento na Universidade das Ilhas Baleares, têm-na movido ao longo de mais de 25 anos de uma carreira dedicada à Psicologia de alta performance no desporto e nas empresas.
Figura pioneira no campo da Psicologia desportiva, no nosso país, a psicóloga que ajudou a formar as camadas jovens do futebol do Sport Lisboa e Benfica e chegou à Seleção Nacional pela mão de Luiz Felipe Scolari integra, desde 2017, a Direção de Medicina Desportiva do Comité Olímpico de Portugal. Referência nacional e internacional em Psicologia do Desporto e da Performance, docente, key–speaker, formadora e consultora, Ana Bispo Ramires fundou e coordena o Grupo de Atuação em Psicologia & Performance (GAPP)
Empenhada em “trazer as melhores práticas do desporto para as organizações”, Ana Bispo Ramires sublinha a importância de olhar para o gestor como um “treinador” para que este possa ser um “modelo de treino de competências para os que estão abaixo”. “Se capacitarmos muito bem a equipa, mas não capacitarmos o líder, vamos criar problemas de liderança na organização”, avisa. Reconhecendo que a população com que trabalha é maioritariamente masculina, a psicóloga aponta ainda para um “efeito perverso” da liderança no feminino. “Espera-se da mulher (em Portugal) uma capacidade de serviço aos outros (contexto familiar, social e profissional) que se não for doseada com auto-cuidado, pode levar a um desgaste de energia massivo que, ao longo do tempo, por efeitos cumulativos, poderá conduzir a uma situação de burnout.”
O que a levou a escolher Psicologia?
Foi um pouco por tentativa e erro. No 9.º ano, comecei por querer fazer Educação Física, porque era atleta de andebol, mas os meus pais não deixaram. E, na realidade, foi bom, porque acabei por entrar para Humanidades, mas sempre com uma grande ligação ao desporto. E também com uma influência muito grande do meu irmão, que era atleta de artes marciais e sempre foi um modelo para mim a todos os níveis: na disciplina, na entrega, no preciosismo com que fazia as coisas. E esse bichinho foi ficando. Terminei o 12.º ano e, felizmente, não tinha média para entrar na faculdade, porque me tinha candidatado para Jornalismo – aliás, a minha carreira constrói-se com um conjunto de “curvas” não previstas, mas que me trouxeram a um sitio muito feliz onde me realizo: otimizar pessoas.
É engraçado, porque no 9.º ano tinha a disciplina de Engenharia Mecânica e não me esqueço do meu professor um dia me ter dito: “digam o que disserem, vais para Engenharia Mecânica”. E a verdade é que hoje, como psicóloga, grande parte dos meus clientes vêm da área da Engenharia e me dizem muito frequentemente que sou uma psicóloga com cabeça de engenheira. Depois acabei por vir parar à Psicologia. Os primeiros três anos de curso foram anos de praia, café e amigos, mas, no quarto ano, escolhi a vertente clínica e comecei a interessar-me bastante pelo curso. O ISPA, na altura, já era uma escola extraordinária, tinha professores com imensa prática clínica e tive a sorte de aprender com referências muito boas do ponto de vista da intervenção na área clínica.
Sempre fui muito curiosa sobre processos: perceber como é que as coisas são mais eficientes, a todos os níveis. Mas as questões mais relacionadas com a patologia pesada, que a clínica aborda com maior profundidade, nunca me atraíram particularmente. Então, no último ano de curso, dá-se mais um acaso: o ISPA abre, pela primeira vez, uma cadeira opcional de Psicologia do Desporto. Faço esse desvio e faço o meu estágio em Psicologia do Desporto no Ginásio Clube Português, onde fechei esse ciclo de licenciatura. Depois, como senti que perdi um pouco o contacto com a clínica, fui fazer um estágio profissional no Hospital Júlio de Matos com uma mulher brilhante: Maria Clementina Mota Dinis. Lembro-me de a ouvir e pensar: se no final da minha carreira souber 10% do que esta mulher sabe, é porque tive uma carreira brilhante. Marcou-me muito, tal como algumas colegas dela, porque aguçaram a curiosidade de perceber melhor e encontrar o detalhe. Eu já tinha esta curiosidade de perceber os detalhes, de pegar em coisas simples e estudá-las e elas ainda a aguçaram mais.
Na Psicologia (em, geral e no Desporto) há que ter um respeito enorme pelo outro e pelo sofrimento psicológico onde se possa encontrar, saber que se é um veículo para o crescimento do outro e gerir muito bem isso..
Quem foram as pessoas que mais a influenciaram, ao longo da sua carreira, e de que forma é que isso determinou as escolhas que fez para a frente?
Vou dar um passinho atrás. Desde logo, a minha avó, que veio com as malas às costas de Famalicão para Lisboa, abriu um negócio próprio — uma pensão —, e apesar de ser analfabeta, levou-o adiante, sempre muito determinada, com muita energia. Também o meu irmão, pelas razões que referi. A Maria Clementina Mota Dinis, porque é uma figura incontornável da psicologia (que impactou certamente todos os que com ela tiveram o privilégio de trabalhar). E outras duas referências em particular deste grupo de psicólogas que tive oportunidade de conhecer no estágio no Hospital Júlio de Matos: Ricarda Madeira e Noélia Canudo. Todas profissionais de uma qualidade clínica de excelência.
Na faculdade, há outro psicólogo que me marca bastante: Miguel Faro Viana. Foi meu orientador de monografia e ensinou-me algo muito importante: querer nem sempre é poder. Desconstruiu a minha monografia várias vezes, obrigando-me a vários re-inicios, o que me irritou muito, mas marcou-me claramente pelos valores de ética e de respeito, que eu também já tinha e que ele me mostrou que é possível ter no terreno. Na Psicologia do Desporto temos de saber muito bem qual é a nossa posição e temos de ter, essencialmente, noção de serviço. Há que ter um respeito enorme pelo sofrimento do outro, saber que se é um veículo para o crescimento do outro e gerir muito bem isso. E isso falta na nossa profissão, infelizmente. Ainda no ISPA, destaco uma colega de enorme referência em termos não só de conhecimento, mas, acima de tudo, de generosidade: Maria João Gouveia, atualmente uma enorme referência para centenas de alunos.
O meu percurso em Psicologia começa por aqui. Faço três anos de avaliação psicológica no Hospital Júlio de Matos, mantendo-me sempre no terreno na Psicologia do Desporto, gerando emprego para mim própria. Era muito irrequieta, apresentava projetos, dava aulas no ISPA como professora, estava no terreno e ia tendo prática de consultório pontual. Tive 15 anos de terreno muito fortes a trabalhar com atletas, seleções, clubes, 10 anos no futebol do Benfica, nos escalões jovens. Também um trabalho riquíssimo do ponto de vista do desenvolvimento humano com a seleção de andebol, durante três anos.
Paixão de treinar competências emocionais: do desporto para as empresas
Começou muito cedo a trabalhar nessa área. Foi fácil fazer valer a sua competência tão nova?
No futebol foi mais difícil. Comecei nos escalões de formação do Benfica e aí me mantive, até que o Scolari se torna selecionador nacional de futebol, traz uma psicóloga para a Seleção e sou convidada para trabalhar com eles. Também dei muita formação a treinadores de futebol. Fui tendo muita experiência de terreno e, sem falsas modéstias, serei provavelmente uma das pessoas que mais experiência de terreno em Psicologia do Desporto tem em Portugal, porque foram muitos anos dedicada a isto. Percorri o país de lés a lés atrás de atletas, árbitros, equipas. Na altura fazia-o por curiosidade, porque sempre gostei de fazer parte da solução. Acho que sempre estive um pouco viciada em encontrar o detalhe que ninguém viu. Como isto me deu muita experiência, a verdade é que quando começamos a falar com estas pessoas, elas percebem que têm um par à sua frente. Em grande parte dos anos em que dei formação a treinadores, eles vinham ter comigo e diziam-me: no curso todo de treinadores, a sua parte é a mais prática e a mais interessante.
Como sempre fui muito irrequieta e ávida de encontrar coisas diferentes, uma das dificuldades que tive até nem foi no desporto, foi nas empresas. Aos 28 anos, já tinha desenvolvido, no ISPA, o primeiro curso para empresas que existiu, em Portugal, sobre treino de competências emocionais. Ao terceiro ano de trabalho, conseguimos integrar esse treino no currículo do ISPA e passou a ser das cadeiras mais procuradas pelos alunos. Mas aos 28 anos era a única pessoa, em Portugal, que falava sobre treinar emoções. E lembro-me de, nessa altura, uma empresa me contactar para fazer um processo de coaching a uma pessoa com 55 anos e me dizer: “temos de arranjar uma maneira de te envelhecer”. Lá fui comprar os meus primeiros fatinhos, pôr óculos, mesmo não precisando deles, etc. E depois, a dada altura, já ia de roupa de “terreno”, botas de montanha, porque já ninguém queria saber – a relação já estava estabelecida.
Um colaborador de uma organização que está desmotivado e desmobilizado, muitas vezes foi a pessoa que mais entregou nos anos anteriores e que se desconectou, porque sentiu que não foi bem aproveitado.
Que outras lições importantes aprendeu no trabalho com as empresas?
Acho que as organizações não têm noção de como uma formação pode destruir completamente o contexto da organização. Porque o formador deve ser um termómetro da organização e tem de saber lidar especificamente com todas as dinâmicas que ali aparecem. E é aí que vem o meu sentido de responsabilidade, por vezes exagerado: não podemos prejudicar as pessoas que ali estão. Já estive em projetos, que depois me comecei a recusar de participar, em que os colaboradores quase saíam com processos disciplinares depois de se “portar mal” na formação. Num caso em particular, os formandos que se “portavam mal” iam para a turma da professora Ana Ramires. E foi uma das experiências mais enriquecedoras da minha vida, porque as pessoas que tinham vindo de não colaborar e de ter comportamentos disruptivos com os meus colegas, comigo eram os meus treinadores-adjuntos. Um colaborador de uma organização que está desmotivado e desmobilizado, muitas vezes foi a pessoa que mais entregou nos anos anteriores e que se desconectou, porque sentiu que não foi bem aproveitado. E ser tratado como extranumerário é o sintoma de algo que está muito errado com as organizações.
Hoje, como é que reparte o seu tempo: dedica-se mais ao desporto, às empresas, à clínica?
Há 15 anos afastei-me do conceito tradicional de clínica, porque a minha paixão é mudar pessoas, treinar competências. Se chegar aqui para trabalhar comigo, mesmo que identifique que existe alguma coisa que não está tão bem, se não houver sofrimento psicológico, vou trabalhar as suas áreas saudáveis e todas as outras que possam não estar tão bem começam igualmente a revitalizar. Eu trabalho na promoção de “músculos” emocionais e cognitivos para ajudar as pessoas a ter mais qualidade de vida, maior engagement consigo próprios, com a família, com os projetos profissionais. Isto é o que eu mais gosto de fazer e me apaixona. E faço-o desde o indivíduo às organizações. Por isso é que tenho uma equipa multidisciplinar onde conto com o contributo de psicólogos com diferentes níveis de especialização.
A minha atividade relacionada com o desporto é dificilmente quantificável. Por exemplo, recentemente, fui de férias para Paris e estive continuamente ligada a quatro processos de competição. Esse é o outro lado do sucesso que as pessoas não percebem. A minha carreira também é o meu telemóvel em cima da mesa e estar continuamente a olhar para ele, porque se tenho um atleta que está a preparar-se há quatro anos para uma prova, naquele momento bloqueia e vai ter prova daí a meia hora, eu tenho de dar resposta. Com este tipo de profissionais, e mesmo com os CEO que acompanho, no espaço de três semanas acontece uma vida – não nos podemos desligar, há situações que temos de ir monitorizando, sugestões que temos de ir dando, porque senão há coisas que podem correr mal.
O que une atletas e gestores
Que características e hábitos têm os atletas mais bem-sucedidos?
Acima de tudo integram na sua vida um conceito que a generalidade das pessoas evita: disciplina. Nós temos um “problema” (ou pode resultar num problema…) do ponto de vista linguístico, que está em atribuirmos emoções às palavras: desta gosto, daquela não. Não há alunos bons ou maus a Matemática: há os que gostam ou não gostam do professor e que gostam ou não dos conteúdos. Se os conseguirmos mobilizar para o desafio do engagement, eles vão começar a ter boas notas. Não há ninguém mais ou menos hábil, há alguém que por tentativa e erro foi ganhando mais gosto em fazer as coisas. Os atletas integram a disciplina como ferramenta de evolução. E com este tipo de procedimentos – disciplina diária, rotinas –, só começamos a ter ganhos, depois de passada a fase da frustração. Por exemplo: se paro o ginásio, quando voltar vai ser um inferno. O primeiro mês vai ser um inferno, mas depois o meu corpo começa a dar respostas positivas e eu já não quero largar. Um atleta que se considera olímpico sabe que a sua grande competição é de quatro em quatro anos, portanto está mais habituado a lidar com a frustração do dia a dia. Estamos numa sociedade muito imediatista. Uma das maiores dificuldades que temos hoje em dia é explicar a alguém que tem de permanecer na frustração para depois atingir o objetivo pretendido, porque cada vez estamos mais treinados para o curto prazo.
Isso também acontece nas empresas?
Acontece. É muito engraçado porque quando começamos a observar os processos do ser humano, percebemos que eles espelham a realidade das empresas. Outra característica que define os atletas chamados gold medalists é a treinabilidade que eles têm. Um dos casos públicos que acompanhei foi do guarda-redes Rui Patrício, que tinha esta característica. Quando as pessoas tentam operar imediatamente a mudança, nem que seja por ensaio, normalmente têm mais sucesso, porque as coisas acontecem mais rápido.
Outra coisa que é importante treinar com eles é o facto de que a sociedade e mesmo o desporto treinam-nos num processo competitivo errado, que é a competição com o outro. A competição deve ser connosco próprios, sempre. Eu devo trabalhar sempre com a margem de progressão e não com o valor efetivo que tenho num determinado momento. Um dos modelos que temos mais marcado neste tipo de situações é o do Cristiano Ronaldo: ele está sempre à procura de integrar processos de melhoria para que o seu corpo possa dar resposta e ele possa evoluir e fazer aquilo que ele quer. Isto, em alguma medida, também pode ser viciante. E, na realidade, é quase como se quiséssemos desenvolver esta adição positiva nas pessoas: esforço/recompensa; esforço/recompensa. Aquilo que queremos é que as pessoas permaneçam no desporto o tempo suficiente para chegar até à recompensa.
Outra característica fundamental nos atletas de alta competição é a capacidade de face à adversidade procurar uma solução. Não é à toa que, durante a pandemia, num país pequenino como o nosso, que tem muito menos recursos do que os outros, tivemos os melhores resultados desportivos de sempre nos Jogos Olímpicos, superando largamente o que era o nosso objetivo. Os nossos atletas estiveram muito acima do esperado em termos de resultados desportivos, depois de um período completamente atípico, em que não tiveram competições e estiveram grande parte do tempo trancados em casa: porque se souberam reinventar.
“Quando comparo um atleta de desporto com um atleta de empresas, diria que estes últimos estão uma liga bastante acima, em termos de responsabilidade, exigência, níveis de stress e níveis de risco.”
Em que os atletas se assemelham com os gestores?
Quando estamos a falar de seres humanos, todos tendem a dar o mesmo tipo de resposta em termos dos processos emocionais e cognitivos experienciados em contextos se exige um dado desempenho.. Gostamos muito de ser especiais, mas não somos tão especiais assim: damos sempre respostas parecidas, quando não há patologia associada. O processo de experienciação cognitivo e emocional é parecido. O que temos de perceber é, naquele contexto, quais são os fatores de pressão e de stress, que recursos são existem e/ou são necessários e como é que podemos capacitar alguém para lhes dar resposta.
Os nossos gestores, na realidade, são super atletas. Porque muitos dos nossos gestores, além da sua performance, têm a responsabilidade de assegurar o sustento de centenas de famílias. Muitos deles estão exauridos, perfeitamente em burnout, só que como a sociedade olha para eles como uma espécie de privilegiados, é como se não interessassem e isso torna-os uma população de maior risco. Por outro lado, são pessoas que, normalmente, estão viciadas em adrenalina, sentem que têm sempre de dar resposta e têm noção da responsabilidade que têm a seu cargo, por isso têm mais dificuldade em parar. Quando comparo um atleta de desporto com um atleta de empresas, diria que estes últimos estão uma liga bastante acima, em termos de responsabilidade, exigência, níveis de stress e níveis de risco. Por isso é que acho tão importante trazer as melhores práticas do desporto para as organizações, para os ajudar e capacitar. Porque depois o que eles não têm, ao contrário dos desportistas, é a consciência de que podem melhorar processos, de que o seu corpo é uma arma e de que se melhorarem todos os processos fisiológicos e psicoemocionais, vão ter mais capacidade de resposta. Os atletas cada vez mais têm essa noção, vão buscar o melhor nutricionista, o melhor preparador físico e o melhor psicólogo e começam a fazer este engagement, o que nas organizações ainda não acontece.
Quando entrou em Portugal uma empresa espanhola, criada pelo Jorge Valdano, que, na altura, estava a explodir em Espanha, importando o modelo de treino de competências psicológicas para as organizações, pensei: alguém que pensa como eu. Para mim foi interessantíssimo trabalhar com eles. Fizemos os primeiros grandes ensaios no que toca a treinar competências em organizações e foi aí que percebi que era isto que queria fazer. A partir daí, comecei a dedicar-me muito mais às organizações, seguindo o mesmo princípio do desporto: mais vale trabalhar com o treinador, porque ele vai ter impacto na equipa toda, do que só com os elementos da equipa. Porque se capacitamos muito bem a equipa, mas não capacitamos o líder, vamos criar problemas de liderança na organização, porque a equipa vai começar a detetar problemas que não detetava antes.
Liderança feminina: o lado perverso de chegar ao topo
As mulheres executivas, que têm mais motivos de preocupação, procuram-na?
Tenho muito mais homens: a população com que trabalho é 80% masculina. Das mulheres não temos tanta procura, mas se calhar também é porque as mulheres são mais “estóicas” estão sempre mais assoberbadas (entre a atenção ao projeto profissional e familiar).
Isso não terá a ver com o facto de as mulheres dificilmente se colocarem em primeiro lugar e acharem que há coisas mais importantes do que cuidar delas?
Imagino que possa ter a ver com dimensões dessa natureza, sim. É uma questão cultural que tem de ser trabalhada e que pode ter algum tipo de influência. Eu para estar bem, para poder coordenar bem, tenho de ser uma ultramaratonista, não me posso focar no imediato. E quando estamos a falar de top performance, há outro efeito um pouco perverso em que as mulheres sofrem mais, garantidamente. Muitas vezes, as mulheres que estão em posições de topo são um modelo para outras mulheres, precisamente porque é mais difícil lá chegar. E neste percurso, a mulher que está no topo pode até não se estar a sentir bem num dado momento, mas tem a “audiência” a dizer-lhe:”és um exemplo”. Porque a audiência só vê aquele momento, aquele bocadinho de realidade. Por trás desse “aparente sucesso” está muitas vezes uma incapacidade em parar e se auto-cuidar, o que resulta numa serie de comportamentos autodestrurivos que se podem traduzir na manutenção de um desgaste de energia violento, sem reposição, que daqui a 10 anos podem conduzir a uma situação mais complexa de burnout.
Consegue aplicar na prática aquilo que ensina aos outros? Come saudavelmente, faz desporto, etc., para conseguir estar equilibrada?
Não consigo não fazer. Não sou de fundamentalismos, mas tenho níveis de cuidado acima da média. Eu tinha uma predisposição para ter cancro de mama, mas acabei por precipitar a manifestação da doença: tive cancro de mama aos 37 anos. O meu irmão tinha morrido de acidente quando eu tinha 32 anos. A minha mãe ficou em coma um mês e meio depois, ficou um ano entre a vida e a morte e não tive tempo sequer para fazer o luto do meu irmão. O meu pai a seguir teve um AVC, a minha cadela de estimação teve um cancro, portanto foram 10 anos de muita “pancada emocional”. Não tive tempo para olhar para mim. Mas no dia em que eu adoeci gravemente, já a minha mãe tinha morrido, uma das coisas que determinei para mim, foi: não vou fazer isto ao meu pai. E acho que isso também me deu uma grande energia para lidar com a doença. Mas a verdade é que estive cinco anos em shutdown emocional e creio que isso precipitou uma doença que se calhar só apareceria mais tarde. Cometi os erros todos e depois comecei a organizar-me da melhor forma e comecei a ver os impactos. Portanto, honestamente, acho que quando consigo tocar as pessoas, tem a ver com isto. Eu sei onde elas estão e conheço aquele tipo de “caminho”.
Foram quase 10 anos de questões oncológicas. Mas se me perguntarem quanto tempo durou a minha situação oncológica, eu respondo três semanas, porque a minha vida era organizada, tal como se faz no desporto, em microciclos de três semanas. Nunca parei de trabalhar. E o exemplo que costumo dar nas palestras é real – eu vou fazer um quinto tratamento de quimioterapia e a minha médica diz-me: “os teus indicadores analíticos estão todos no chão, vai para casa descansar, que deves estar muito cansada”. Energeticamente eu estava ótima, mas tinha os indicadores analíticos todos alterados. Se me perguntarem se eu trocaria alguma coisa na minha vida, não trocava nada. Na realidade, acho que foi um privilégio ter vivido isto e pode parecer um pouco estranho dizê-lo, mas isto construiu-me como pessoa e como profissional, permitiu-me ter uma perceção da dimensão humana, da dor humana, porque é difícil as pessoas falarem de uma coisa que não conhecem.
Sem fundamentalismos, mas é um exemplo das práticas que advoga?
Tento sê-lo, apesar de nem sempre ser fácil. No desporto, quando há lesões, recorremos muito à prática de imagética, para ajudar a vascularizar as zonas da lesão e para acelerar os processos de recuperação. Quando colocamos energeticamente a nossa atenção no local, podemos aumentar a vascularização. E quando adoeci a primeira vez, o meu tumor tinha cinco focos no peito, cinco metástases debaixo do braço e estava previsto fazer a extração total do peito. E durante o tempo todo que estive a fazer o ciclo de quimioterapia imageticamente, imaginava-o a reduzir, a reduzir, até desaparecer. Há estudos científicos na área da oncologia na aplicação desta técnica. E após a última sessão de quimioterapia, ao fazer a ressonância magnética, o médico disse-me que o o meu tumor tinha reduzido mais de 80%. Se se deveu à imagética, ou não, não sei, mas que fazia isto de forma disciplinada, fazia.
Temos de treinar esta competência de forma sistematizada, para que ela nos seja útil naquilo que queremos. É mais complexa do que o que se imagina. Não nos podemos esquecer que a nossa componente emocional produz doença. Hoje em dia, há uma vastíssima dimensão de doenças psicossomáticas. Se a nossa cabeça tem capacidade de promover doença, também tem capacidade de fazer o contrário. Nestas questões, há algo que está provado: tende a haver melhor prognóstico, quando existe algum tipo de fé – em si próprio, na equipa médica ou noutro tipo de circunstância. Quando nos focamos no processo de cura, de facto aumentamos a probabilidade de o que quer que seja poder vir a ser curado. Mas claro que também temos de ter profissionais à nossa volta, nomeadamente os médicos, que façam o outro lado do processo.
A importância de fomentar a literacia emocional
Qual é a maior dificuldade ou desafio da sua profissão?
Falta de literacia emocional. Por causa da pandemia, tivemos uma série de gerações que passaram do 3D para o 2D e a capacidade de empatizar e de lidar com a frustração é diferente. As três dimensões trazem-nos outro contexto de informação que de outra forma não temos. Acho que só daqui a uns 10, 15 anos vamos perceber, com as pessoas que vão entrar em posições de poder na sociedade, o que vamos pagar nessa fatura. Julgo que o ISPA continua a ser das poucas universidades que tem uma cadeira específica sobre isto. Há uns anos, ouvi alguém de outra universidade dizer: nós treinamos aptidão, porque as competências emocionais não se treinam. Isso é um erro. Treinam-se. Claro que não se treinam só a colocar as pessoas em atividades de team building, só para as pessoas ficarem todas contentes. Crescer e ganhar músculo emocional é aborrecido, dói. Implica um contacto com áreas de nós a que não queremos aceder, mas se não acedermos, acabam por se repercutir na relação com os outros. E temos um problema complicado que é: a academia não treina, as escolas não treinam e as empresas têm de perceber que ou integram este treino emocional ou mais tarde vão pagar a fatura. Os professores e os gestores têm de perceber que são treinadores. Têm de desenvolver capacidade e competência além do hardware e continuamos a não ter canais para isto. Os gestores têm de olhar para si próprios como atletas e proteger as suas linhas da direção para que elas possam ser este modelo de treino de competências para os que estão abaixo. Eles são os maestros. Considero-me acima de tudo uma educadora, gosto de passar informação e acreditar que as pessoas têm esta capacidade de modificação. O perfil que procuro de diretor é alguém que treina e otimiza a sua equipa, criando condições especiais para as pessoas evoluírem e sentirem engagement. É preciso dar as ferramentas: não podemos promover uma pessoa a um cargo de liderança e achar que vai ser líder só porque foi promovido, quando não há um percurso de aprendizagem. Quando estamos bem, todos sabemos dar orientações. Mas vamos estar mal muitas vezes. E para ascendermos a cargos de liderança e de responsabilidade, temos de saber fazê-lo.
Falámos muito de trabalho, mas como é que relaxa? Quais são os seus hobbies?
Primeiro, tenho de treinar. Tenho muita energia. Voltamos à questão de saber se faço aquilo que digo aos meus clientes: faço. Às vezes digo, a brincar, que o nosso maior desafio na vida é descobrir qual é a nossa “pancada” e pô-la ao nosso serviço e a minha é que eu sou mesmo uma overthinker, estou sempre a pensar e a ter ideias, portanto o meu desafio é desativar. Isto implica treino e implica que faça atividades que me obriguem a desativar. Gosto de caminhar, meditar, passear os meus cães, jantar com os meus amigos. Mas o meu dia a dia tem isto: não estou à espera que venham as férias. Felizmente, hoje tenho o privilégio de poder fazer isto, posso escolher ter uma parte do meu dia em que posso ir ao ginásio, fazer uma caminhada ou beber um café. Fiz evoluir o meu negócio para funcionarmos em modelo híbrido, portanto às vezes estou a trabalhar a partir de uma esplanada com o computador. Isso vai-nos suplementando com pequenas doses de energia que depois são fundamentais. Temos de ter esta capacidade de reconhecer: não vai dar, não posso ir a todas. E perceber há esta estreita ligação: se estiver muito cansada, emocionalmente e cognitivamente, não vou estar apta a dar respostas.