A 5 de maio de 1972, Alice Pinto Coelho e o então marido, Luís Pinto Coelho, inauguravam aquele que se tornaria um dos bares mais emblemáticos de Lisboa: o Procópio. Dois anos volvidos, o 25 de Abril não foi o único acontecimento a revolucionar os destinos deste local incontornável da noite lisboeta: em 1974, o divórcio do casal colocou Alice no comando do negócio, lugar no qual a empresária se mantém até hoje, aos 84 anos, e o qual não pretende abandonar. Anfitriã e alma do espaço, atualmente acompanhada na sua liderança do pelas filhas, Maria João e Sofia Pinto Coelho, e com os três netos também já ligados ao negócio da família, Alice Pinto Coelho recorda os tempos em que optou por “vestir sempre calças e camiseiro” para ir trabalhar, porque uma mulher à frente de um bar não era habitual, para a época, e deixa um repto às jovens empreendedoras que estejam agora a iniciar o seu percurso: “não tenham receio de ir atrás das suas ambições”, encoraja.
O Procópio comemora agora o seu 50.º aniversário. Que papel desempenhou na fundação deste espaço e do negócio e quais as memórias mais substanciais que guarda desse momento inicial?
Como cofundadora intervim ab initio, ainda em fase de projeto, nomeadamente num fator de sucesso até hoje reconhecido: a decoração. A seleção dos veludos para os sofás, a cor bordeaux nas paredes e assentos, a iluminação difusa, nascem da minha mão. Já depois da abertura, como gerente, exercia as funções de gestão inerentes à mesma. Para além disso, como proprietária, das poucas mulheres de então à frente de um negócio de bar, tinha a meu cargo as relações-públicas, uma área imprescindível para manter o estabelecimento um local aprazível para senhoras, que começaram a ser um público-alvo com a nossa abertura. Guardo ótimas memórias de todas as fases desde que o Procópio abriu, especialmente o período a seguir ao 25 de Abril. Estava na casa dos trinta anos. Foi muito divertido.
Estávamos em 1972, na antecâmara da Revolução de Abril, que chegaria dois anos mais tarde. Isso colocava desafios adicionais a uma mulher investida na condução de um negócio, ainda que em conjunto com o seu então marido?
Enquanto em conjunto não. O divórcio coincidiu com a revolução, dois anos mais tarde. Aí sim, senti desafios.
Que desafios encontrou quando passou a assumir sozinha as rédeas do negócio?
Optei por vestir sempre calças e camiseiro quando vinha trabalhar. Na altura só existiam praticamente bares de alterne. O Procópio foi um dos dois ou três pioneiros. Dado que decidi não fazer distinção quanto às cores políticas dos frequentadores e frequentadoras, o desafio era receber bem tanto os de esquerda como os de direita. Como o PS tinha a sede aqui ao lado, grupos de militantes e dirigentes vinham cá após as reuniões beber e comer tostas. Fiquei a conhecer muitos.
Quando é que passou a assumir a liderança do Procópio a solo? Nessa altura quis dar continuidade ao que tinha vindo a ser feito até então ou procurou iniciar uma nova era na vida da empresa?
No outono de 74, na sequência do divórcio, assumi o controlo a solo. Tive de adaptar-me ao facto de que a vida da empresa entrara abruptamente numa nova era. A era da pós-revolução de Abril. Tudo mudou, tanto em termos de clientela como na relação com os trabalhadores. Passaram a existir greves, sindicatos e houve até uma reivindicação para aumentar os salários aquando do discurso de Vasco Gonçalves, em Almada. Os sindicatos mandavam encerrar os estabelecimentos e eu muitas vezes abria com os amigos que achavam graça trabalhar num bar. Também uma larga parte da clientela de até então mudou-se para a Suíça, o Brasil e Madrid, por exemplo. A que se manteve e cresceu foi uma clientela de intelectuais, artistas, políticos e jornalistas. O que estava a ser feito tinha sido feito em dois anos apenas, uma vez que abrimos em 72 e a revolução se deu em 74. Dei continuidade, mas noutros moldes, com outro tipo de frequentadores.
Ao longo destas largas décadas de dedicação ao negócio, o que tem sido mais compensador?
Ver que o Procópio continua a ser um bar procurado pelos clientes e que tem conseguido captar as novas gerações, sucessivamente.
Manteve-se inteiramente dedicada ao Procópio ou expandiu os seus interesses para outras áreas de negócio?
Os interesses mantiveram-se sempre na área de hotelaria, aliás como mãe de três crianças e a dirigir o Procópio, não teria disponibilidade para expansões. No entanto, houve uma exceção. A pedido do meu grande amigo André Jordan, que pretendia relançar o resort Quinta do Lago, no Algarve, abri ali um bar em 1983, o Bar Alice, e permaneci temporariamente ao leme, durante o período do seu lançamento. Foi um enorme sucesso e ficámos ambos satisfeitos com o resultado.
Hoje o Procópio tem uma liderança tripartida, assumida pela Alice e pelas suas filhas, Maria João e Sofia. Como encarou a passagem de testemunho à nova geração e que apport é que a suas filhas trazem ao negócio?
As minhas filhas seguiram outras áreas e têm carreiras de mais de 25 anos. A Maria João, que é licenciada em Direito, na área da consultoria em Comunicação e Marketing, e a Sofia como fotojornalista, com exposições individuais e uma empresa de suporte de publicidade, com estudos em fotografia. No entanto, as minhas filhas já não são a nova geração. A nova geração são os meus três netos. Um dos netos, hoje com 33 anos, trabalhou no bar durante 12 anos, o outro neto, hoje com 26 anos, trabalha connosco há cerca de três anos e o outro neto de 22 anos está na universidade. A Maria João e a Sofia participam ativamente no Procópio há bastante tempo e as suas experiências profissionais têm-se revelado imperativas na boa evolução do nosso negócio.
Como mãe de duas filhas, procurou transmitir-lhes também a elas o espírito empreendedor?
Ambas herdaram o espírito empreendedor mais do pai, tendo tido negócios próprios, a Maria João na área de hotelaria e a Sofia em suporte publicitário. Da mãe herdam outras valências, tais como a disciplina que adquiri no colégio de freiras, o amor ao Procópio e o sentido estético necessário para, por exemplo, traduzir uma imagem coerente do bar tanto nas redes sociais, como nas imagens usadas, assim como na manutenção feita à casa e aos objetos decorativos. Manutenções que têm respeitado o mais possível o estilo original, de forma a não se descaracterizar a sua decoração. A conservação do original talvez tenha sido um fator com relevo para o bar ser considerado “Loja com História” pela Câmara Municipal de Lisboa.
O resultado é bom. Conseguimos encontrar soluções eficazes para lidar com as crises com que o negócio se tem deparado nas últimas décadas, nomeadamente, o aumento exponencial de concorrência em virtude da abertura massiva de bares no Bairro Alto e na 24 de Julho e, mais recentemente, os encerramentos compulsivos, as limitações de horários e de abertura consequentes à pandemia.
Como é que o negócio foi evoluindo ao longo dos últimos 50 anos? Houve mudanças muito substanciais neste período?
Houve mudanças, mas não substanciais. O core business manteve-se. O Procópio sempre foi um bar. No entanto, há dois anos concordei com a solução de o bar passar a funcionar como restaurante, quando os bares foram administrativamente encerrados, em contexto da pandemia de COVID-19. O Procópio reabriu no verão, poucos meses depois. Foi uma questão de sobrevivência do negócio de família. Muitos bares, que não puderam recorrer a esta solução, encerraram.
No trajeto dos 50 anos houve poucas mudanças e poucas necessidades de adaptação, mas isto só durou até há cerca de 20 anos. A partir daí, sim. A oferta de bares em Lisboa cresceu exponencialmente. O mercado mudou. Tivemos de modernizar a imagem e tomar medidas para manter presença. Foi nessa altura que, pela mão da minha filha Maria João, se iniciou um trabalho de Comunicação e Marketing. Apostámos na comunicação junto dos media sobre a existência do Procópio. Em termos de Marketing, criámos um website, abrimos presenças nas redes sociais e em portais de lazer e viagens. A seguir, começámos a estar presentes no suporte publicidade dirigido ao target jovem, a rede de postais Postalfree, negócio que a minha filha Sofia acabara de trazer para Portugal, e que nos interessava como ferramenta para atrair juventude, ir renovando a clientela.
Também deixámos de ser um bar quase exclusivamente de uísque. Abrimos espaço primeiro para as vodkas, depois para os gins e cervejas artesanais, procurando responder às novas tendências. Agora o nosso posicionamento é como bar de cocktails. Todas estas medidas estratégicas revelaram-se eficazes e o negócio continuou saudável.
Como é que perspetiva que venha a ser o futuro do Procópio? Quais entende serem as grandes prioridades?
A continuidade! Com as mesmas características, bom atendimento, simpatia e qualidade. Sempre a trabalhar para manter o Procópio entre os melhores bares da capital.
A reforma é uma opção ponderada pela Alice ou pretende manter-se ligada ao negócio por mais anos?
Tenho intenção de continuar ligada ao meu projeto de vida, que é o Procópio.
Que mensagem deixaria a jovens mulheres que estejam agora a dar os primeiros passos no mundo do empreendedorismo?
Que não tenham receio de ir atrás das suas ambições, mas que se rodeiem de bons profissionais, pois deixou de haver lugar para amadorismos no mundo dos negócios.
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