Texto de Marta Carvalho Araújo, CEO da Castelbel
Se há esforço que tenho feito nos últimos tempos, é o de relativizar. Pôr em perspetiva. Pensar em quem está (muito) pior. Gerir expectativas.
E o que tenho notado é que a pandemia tornou este último tipo de gestão simultaneamente mais fácil e mais difícil:
. mais fácil porque as provações e constrangimentos tendem a aumentar a tolerância e a resistência à frustração (basta pensar na forma como reagiríamos se, aqui há uns meses, nos servissem um café expresso num copo de plástico, em vez de numa chávena de louça…);
. mais difícil porque, quando a mudança se dá à velocidade da luz e a imprevisibilidade passa a ser, igualmente, uma constante universal, não dá mesmo para cumprir promessas. E, assim sendo, mais vale nem as fazer nem as cobrar.
De repente, a maioria da população deixou cair velhos hábitos. Passou a aceitar o preço integral de equipamentos elétricos e eletrónicos que, em circunstâncias padrão, só compraria em promoção no final do mês (quem alguma vez imaginou pagar tanto por uma webcam para as videoconferências ou pelo PC para as aulas dos miúdos?!). A achar que faz sentido pagar um múltiplo obsceno do “antigo normal” por uma garrafa de álcool-gel ou dar tanto hoje por uma máscara descartável como tinha dado ontem por uma caixa delas. E a ficar menos incomodada com o que de negativo vai acontecendo porque “o mal de muitos, consolo é” e porque “mal por mal, antes cadeia que hospital”.
A maioria esqueceu as lutas “menos importantes nesta altura”, como as relacionadas com sustentabilidade, diversidade ou igualdade de género. Mais ou menos como quem deixou de queixar-se das costas porque passou a ter dores de dentes. Ou esqueceu o frio porque passou a ter fome.
Para além de curvar a trajetória em que nos movíamos, a gravidade da situação veio provar que muito do que nos parecia imutável era, afinal, uma ilusão. E fez-nos sentir na pele a natureza variável do tempo, sobretudo quando nos fechou a todos em casa (levante o braço quem já deu por si a pensar em “quanto tempo o tempo tem” durante uma hora aparentemente eterna de lides domésticas acompanhadas por miúdos aos berros, por oposição à horinha relaxante de Netflix que passa num instante…).
Infelizmente, no meio desta profunda flexão do espaço-tempo – um dos maiores testes de sempre à nossa capacidade de adaptação, em que muitos estão a ser obrigados a “dobrar para não quebrar” – há quem tenha deixado de ser racional e razoável.
Uns, porque passaram a comportar-se como autênticos “buracos negros” de produtos, serviços e emoções, ao açambarcar desinfetantes, paracetamol, papel higiénico, internet (consumindo conteúdos em streaming como se não houvesse amanhã) e as 24 horas do dia de quem, do outro lado, está em teletrabalho.
Outros, porque perderam a noção da realidade, a capacidade de ver o mundo de forma global, objetiva, isenta e integrada, e a consciência do que deveria ser apreciado apenas em termos relativos, nunca de forma isolada.
Estes últimos fazem lembrar aqueles turistas que pagam de bom grado uma fortuna por um pacote de férias paradisíacas, mas depois se queixam do preço do bife no hotel. Ou quem está disposto a dar milhões de uma vez só pelo apartamento, mas não centenas pela mensalidade do condomínio. Ou os que dizem que 8 euros por uma refeição completa num restaurante de diárias é um exagero, mas não reclamam dos 10 euros por sobremesa num restaurante da moda.
Um bom exemplo desta desconexão da realidade atual é o dos que teimam em destacar o número absoluto de mortes resultantes de Covid-19, em vez de uma muito mais elucidativa taxa de mortalidade (número de mortes por milhão de habitantes), que, a 28 de maio, punha a discreta Bélgica no pódio; Espanha, Reino Unido e Itália à frente dos Estados Unidos; e Brasil, Alemanha e Rússia atrás de Portugal.
É a relatividade que nos permite avaliar desempenhos de forma correta, porque nos ajuda a medir esforços e a comparar o comparável. Veja-se o caso das equipas comerciais: será justo pagar mais a quem vendeu cem em Lisboa do que a quem conseguiu vender cinquenta em Freixo de Espada à Cinta? Ou a quem gerou lucros numa empresa monopolista, por oposição a uma start-up?
Sim, a relatividade é importante. Na teoria e na prática!
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