Texto de Paula Rios, jurista e profissional de seguros
Lembram-se da música dos Green Day, “Wake me up when September ends”? Ultimamente tenho visto esta expressão em vários locais, mudando o “September” para “2020”. De repente, ainda a um terço do ano, em Março, começámos todos a desejar que o ano passe depressa, porque já vimos que é mesmo bissexto. Trouxe-nos uma praga da qual já percebemos que não nos vamos livrar tão cedo, pelo que não sei se bastará acordar em 2021 para respirar de novo sem medo, numa vida sem máscaras e desinfetantes.
Recordo que, quando tudo começou, suspirávamos: “Quando isto acabar, faço isto e aquilo…”. Pois. Já ninguém diz isso. Agora, depois de afirmar, ainda com alguma surpresa, “Há três meses ninguém sonhava o que nos ia cair em cima”, suspiramos: “Temos de aprender a viver de maneira diferente”.
É mesmo isso que temos de fazer. E embora por vezes tenhamos a ilusão, por alguns momentos, de que com o fim do confinamento as coisas vão, devagarinho, voltar ao normal, deixemo-nos de ilusões. Não vão. E essa ilusão é perigosa, porque leva a alguma leviandade que pode custar cara. Ou não. Depende da perspetiva.
O fim do confinamento trouxe alguma esperança, é inegável. Os números evoluem favoravelmente (assim continuem!), os cabeleireiros e barbeiros abrem (para grande alívio da população feminina de um certo escalão etário, que precisa desesperadamente de esconder as “raízes”, e também da masculina, que já quase faz rabo de cavalo) e há a tentação, humana, de procurar um resquício de normalidade. Conta-me uma amiga, antes pessoa considerada normal e hoje maníaca da desinfeção, à beira de um transtorno obsessivo compulsivo, que há dias circulava despreocupadamente pela empresa onde, por um acaso menos feliz, coincidiram mais do que meia-dúzia de colegas no mesmo dia. Respeitaram as distâncias, é certo, mas a alegria do reencontro – e a tal ilusão de normalidade – fê-los conversar na zona da máquina de café, sempre dentro do distanciamento recomendado, mas ainda assim, sem proteção (diga-se máscara). Proteção essa que, à entrada e saída (por causa do elevador), a minha amiga não dispensa. E assim, alegremente, com umas piadas, se amenizou tão longa ausência do escritório, tendo os colegas partido de regresso às suas casas mais reconfortados – afinal, tudo vai voltar ao normal. Já está quase.
Pois. O pior é que não está, mesmo. Dois dias depois, é o susto. Uma colega desse grupo tem sintomas de Covid-19, e vai fazer o teste. Ele é telefonemas uns para os outros, arrependimentos (“se soubesse não tinha lá ido naquele dia”), ele é o medir a temperatura só para checar, ele é o aguardar ansiosamente o resultado do teste da colega. Ele é o pensar que se calhar têm de entrar em quarentena, que chatice, logo agora que isto estava a abrir, e que estavam quase a poder ir a uma esplanada…
Enfim, a história acaba bem – desta vez – mas podia não acabar. Moral da história: a pandemia não acabou, o que acabou foi o estado de emergência, porque se não se começasse a reabrir lentamente, não morríamos da doença, mas da cura. Não nos iludamos: esta fase é a mais perigosa de todas. Precisamente porque cria a ilusão da normalidade. Que não volta tão cedo. Por isso, deixo aqui um apelo às empresas: aproveitem as lições aprendidas nestes dois meses em termos de teletrabalho. Deixem ficar em teletrabalho quem pode, quem é indiferente estar no escritório ou não. O teletrabalho, total ou parcial, pode trazer vantagens para todos, empresas e colaboradores (e pelos vistos tornou-se algo desejado, pois segundo um estudo publicado pela JLL, 95% dos portugueses quer, para o futuro, combinar teletrabalho com trabalho na empresa). Para quem tem mesmo de ir ao escritório, protejam as pessoas delas próprias: ainda que não imponham, recomendem o uso de máscara quando elas circularem nos corredores, ou espaços comuns como a zona do café (depois podemos discutir como se bebe café com máscara). O colega do lado pode estar tão infetado como o estranho que entra no elevador. É como no tempo da SIDA, lembram-se? Ah, tem tão bom ar, não pode ter SIDA. Pois é, mas tinha e infetou não sei quantos parceiros. Aqui a regra é a mesma. Se andamos de máscara no elevador e no supermercado, por que razão não nos devemos proteger dos colegas de trabalho? Por muita alegria que tenhamos em estar com eles. E tomar, seja onde for, as mesmas medidas de desinfeção, distanciamento social e o que mais for indicado pela DGS?
Existe uma segunda hipótese, a de pura e simplesmente aceitarmos que, mais cedo ou mais tarde, temos de criar imunidade de grupo e que quase todos vamos apanhar. Não é que eu queira, ou pense que alguém o deseja, mas que deve ser glorioso, para quem já contraiu o vírus (com sintomas ligeiros, claro), e recuperou, andar na rua, onde quer que seja, sem medo, e não ter de se desinfetar todo ao chegar a casa, ai isso deve. Como disse a Madonna, quando descobriu que, mesmo sem ter contraído a doença – ou ter tido essa noção – era imune ao Covid-19. Que sensação de liberdade!
Quanto à (possível) terceira hipótese, de alguém nos pôr a dormir e só acordarmos quando 2020, ou esta pandemia acabar, não aconselho. Arriscamo-nos a dormir durante mais tempo do que o previsto, eentretanto não aparecer nenhum príncipe encantado sob a forma de vacina para nos resgatar desse sono profundo. Resta-nos, assim, deitar mão a toda a nossa resiliência, e bom senso também, e aguentar. Porque, se já há muito que não acreditamos em finais felizes, também não é menos verdade que nenhum pesadelo dura para sempre.
Por isso, “Wake me up tomorrow” é a única opção que nos resta. E que bom, ter mais um dia para o qual acordar.
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