A apresentação do estudo “Getting to Equal 2019” — o 4.º sobre o tema da diversidade e igualdade de género (e não só) a ser realizado pela Accenture a nível global — foi o mote para uma manhã de debate sobre liderança feminina, no dia 7 de março. Para além da apresentação dos resultados do relatório deste ano, o evento que tradicionalmente celebra o Dia da Mulher há 13 anos, em Portugal, contou ainda com uma palestra da socióloga e investigadora Sara Falcão Casaca sobre o equilíbro de géneros na liderança das organizações e sobre a situação da mulher no mercado de trabalho nacional, e com uma mesa redonda, moderada por Isabel Canha, fundadora e diretora da Executiva, que juntou um multifacetado e interessante painel de convidados que refletiu sobre estes temas.
“A igualdade de género é um imperativo para a Accenture: primeiro porque não estaríamos a fazer jus aos valores presentes no ADN da empresa, se não cumpríssemos com o desígnio de garantir a igualdade de oportunidades. E em segundo lugar, porque a diversidade é um imperativo de negócio, se quisermos ter sucesso no mercado”, lembrou José Gonçalves, presidente da Accenture Portugal, ao abrir a sessão, que juntou uma centena de convidados ao pequeno-almoço, no Hotel Epic Sana, em Lisboa. “Os nossos clientes diferenciam-se no mercado pela capacidade de inovar mais rápido que a concorrência e, para os ajudarmos nesse desígnio, precisamos de trazer para os nossos trabalhos uma diversidade de pontos de vista e backgrounds.”
Promover a inovação
Coube a Fernanda Barata de Carvalho, Inclusion & Diversity Lead da Accenture, fazer a apresentação do estudo, revelando inicialmente que, este ano, a Accenture foi distinguida pela Thompson Reuters como a melhor empresa do mundo no índice de inclusão e diversidade. “Este prémio honra-nos muito e continua a significar uma grande responsabilidade.” A consultora especializada em tecnologias tem metas bem definidas a este respeito: quer chegar aos 50% de colaboradores de cada género, em 2025, e a 25% de managing diretors femininos já em 2020. “Em Portugal estamos a caminho e acreditamos que vamos conseguir. Neste momento, temos 22% de mulheres no Conselho de Administração, 20% de managing diretors femininas e 43,4% de gender mix e as nossas executivas são 30% da força de trabalho.”
Para além de revelar que a mentalidade inovadora é seis vezes maior em culturas de trabalho igualitárias, o estudo concluiu ainda que 85% dos colaboradores de empresas que privilegiam esse ambiente dizem não ter medo de falhar na busca pela inovação. E nas organizações que combinam mais eficazmente uma cultura de igualdade com a promoção de políticas de diversidade, o mindset inovador é 11 vezes maior do que nas empresas que apostam pouco nestes fatores. “Descobrimos que o mesmo ambiente de trabalho que ajuda as mulheres a alcançarem posições mais elevadas na hierarquia, também impulsiona a mentalidade de inovação na organização”, adiantou Fernanda Barata de Carvalho.
“Equilíbrio numérico não é igualdade”
Sara Falcão Casaca, socióloga, professora do ISEG, investigadora do Centro de Investigação em Sociologia Económica das Organizações e coordenadora do projeto Women on Boards, foi a keynote speaker deste encontro, centrando a sua intervenção na atual situação das portuguesas no mercado de trabalho e no equilíbrio entre géneros na liderança das empresas. Lembrou que há 20 anos se definia a estratégia europeia para o emprego numa União Europeia ainda a 15 países, com metas quantificadas, como os 60% de taxa de emprego feminino. “Mas em 2000, Portugal já tinha atingido a meta e estava muito acima de países com que é sistematicamente comparado, como Espanha, Itália e Grécia. Em 2010, metade dos países da UE ainda não tinham atingido estas metas.” Mas o estreitar do fosso entre a taxa de emprego feminino e masculino, conseguido em uma década, só aconteceu devido à crise, que atingiu severamente setores tipicamente masculinos. “Essa diminuição não nos diz se estamos a percorrer um caminho de igualdade. Esse caminho só pode ser feito com a dignificação das condições de vida e trabalho de mulheres e homens”, observou a socióloga.
O emprego a tempo parcial tem vindo também a aumentar na UE, abrangendo cerca de 1/3 da população ativa feminina. “Em todos os países, sem exceção, o trabalho a tempo parcial é uma modalidade feminizada, o que me tem levado a argumentar que um dos vetores de segregação sexual no mercado de trabalho tem a ver com o seu fomento. Fazê-lo, quando não há ainda uma cultura de igualdade, é reforçar a divisão de papéis — as mulheres continuam a ser as principais cuidadoras, compatibilizando essa função com a sua participação no mercado de trabalho.”
Ao contrário do que acontece na maioria dos países, a taxa de emprego não diminui para as portuguesas com filhos menores de seis anos — é mesmo a 2.ª maior da Europa, logo a seguir à Suécia. Cerca de 90% das mães trabalhadoras fazem-no a tempo inteiro, sem interromperem a carreira, mas na realidade “a qualidade do emprego é fraquíssima”, alertou Sara Falcão Casaca. “Praticamente 1 em cada 4 mulheres está numa posição precária. Continuamos a ter mais mulheres em áreas de atividade e profissões menos valorizadas e recompensadas da economia, sendo este o principal fator para a diferença remuneratória entre mulheres e homens.”
“Praticamente 1 em cada 4 mulheres está numa posição precária. Continuamos a ter mais mulheres em áreas de atividade e profissões menos valorizadas e recompensadas da economia, sendo este o principal fator para a diferença remuneratória entre mulheres e homens”, Sara Falcão Casaca, socióloga das organizações, investigadora
A socióloga referiu ainda a sub-representação feminina na liderança das organizações, fazendo o ponto de situação de mais de um ano de implementação da lei das quotas nos conselhos de administração das empresas públicas e cotadas. Com 31% no poder central e 28% no poder local (dados de 2017), o setor empresarial do Estado “está ainda longe do limiar mínimo de massa crítica.” Nas 500 maiores empresas do país os números não iam além dos 8 ou 9% e nas empresas cotadas, 16,2%, valor que aumentou para quase 22% desde que a lei entrou em vigor, em janeiro de 2018. “Mas equilíbrio numérico não é igualdade entre mulheres e homens”, recorda a investigadora, que está a estudar esta questão no estudo Women on Boards. São necessárias novas abordagens para conseguir a mudança em direção a uma maior presença feminina nas estruturas de poder, de forma a quebrar o proverbial teto de vidro. “As organizações são todas genderizadas. O argumento que mulheres e homens são tratados da mesma forma, que ouvimos sistematicamente, não é verdadeiro. As organizações são o reflexo da sociedade e as representações sociais associadas ao género existem em todos nós.”
Mais diversidade para estreitar o fosso tecnológico
A manhã de discussão sobre as questões da igualdade e diversidade viria a contar ainda com uma mesa redonda, moderada por Isabel Canha, com a presença da piloto de todo-o-terreno, Elisabete Jacinto; da jornalista e escritora, Isabel Stilwell, de Nadim Habib, professor da Nova SBE; Ana Rita Pereira, executive director da Microsoft, e Carla Baltazar, managing diretor e Gender Iniciative Lead da Accenture, que abriu a conversa, revendo alguns dos pontos chave do estudo. “A igualdade funciona como fator multiplicador nas organizações. O empowerment é outro ponto importante e, quando combinado com a diversidade, é ainda mais multiplicador. Faria também a ponte para a questão da inclusão porque não basta ter uma sociedade diversa: é preciso ter em atenção a questão da individualidade e o empowerment toca um pouco nisso — como cada um sente que pode dar o melhor de si.”
“Temos a preocupação da diversidade em toda a jornada de um colaborador, desde o recrutamento. E no nosso conselho de administração temos 50% de mulheres e 30% de diversidade cultural.” Ana Rita Pereira, executive director da Microsoft
A Microsoft é uma das grandes empresas que tem apostado na diversidade. “Ela vai muito muito além do género — é também comportamental, cultural, etária, entre outras”, disse Ana Rita Pereira. “Estamos agora num processo de transformação do modelo de negócio e do portfolio de serviços e a navegar num mundo novo, onde é preciso criar uma cultura de experimentação, de tentativa e erro. Só a partir daqui podemos progredir.” O papel da liderança está a ser completamente reestruturado, afirma, para ser visto como uma espécie de “curadoria do propósito” das organizações. “Temos a preocupação da diversidade em toda a jornada de um colaborador, desde o recrutamento.” A empresa é um caso raro de paridade no conselho de administração, com 50% de mulheres e 30% de diversidade cultural.
A executive director falou ainda do fosso digital entre homens e mulheres e da presença feminina, ainda deficitária, nas áreas STEM. “Será necessária uma restruturação dos currículos, temos que questionar o tipo de capacidades que as nossas crianças vão precisar de ter no futuro. E há estereótipos de que existem profissões femininas e masculinas que têm que ser quebrados para que cheguem ao mercado mais mulheres com estas características.”
“Começámos a trabalhar na consciencialização de que as mulheres podem ter carreiras de sucesso na área tecnológica. Se nos pusermos à parte destas áreas, o fosso tecnológico entre homens e mulheres será ainda maior no futuro”, Carla Baltazar, managing diretor e Gender Iniciative Lead da Accenture
O tema tem preocupado também a Accenture, que desenvolve ações nas escolas e universidades para tentar captar mais jovens mulheres para a tecnologia, como conta Carla Baltazar. “Há alguns anos estávamos preocupados em ir buscar perfis mais tecnológicos às universidades, até nos termos apercebido que não havia muitas mulheres a enveredar pelas carreiras STEM. Por isso, começámos a descer para o ensino secundário e básico porque o ideal é que o interesse comece desde muito cedo. Começámos a trabalhar na consciencialização de que as mulheres podem ter carreiras de sucesso na área tecnológica. Se nos pusermos à parte destas áreas, o fosso será ainda maior no futuro.”
“Temos muito a aprender sobre como estar na liderança”
Para Nadim Habib, as conclusões do estudo da Accenture sobre igualdade e diversidade são um dado adquirido. “A questão é: se toda a gente sabe disto, porque é que ninguém o faz? A realidade é que estamos num país em que 26% da população ganha menos de 600 euros por mês e, se parte desse processo é a autonomia financeira, então temos um problema à partida porque os salários são muito baixos em Portugal. Estamos num país com muitas práticas de gestão frágeis e más, onde se viveu muito numa lógica de liberalização da legislação de trabalho, nos últimos 20 anos. Pensava-se que isso iria melhorar a produtividade, mas estamos a ver que cria desigualdades profundas. As mulheres tendem a sofrer mais e a perder mais em termos de negociação salarial com a empresa, porque partem com desvantagem.”
“Estruturalmente, nas nossas economias, temos que a criar carreiras dignas que permitam às mulheres ter uma voz no caminho para a liderança.” Nadim Habib, professor da Nova SBE
Para o professor, esta questão influencia também a maior presença feminina na liderança das empresas. “Penso que a legislação laboral tem de ser mudada. Estruturalmente, nas nossas economias, temos que criar carreiras dignas, que permitam às mulheres ter uma voz no caminho para a liderança. Antes, eu era mais liberal no que respeita à intervenção governamental, mas hoje acho que temos que repensar isto de forma mais agressiva, com quotas para reforçar este aspeto.” As questões dos enviesamentos culturais sobre papéis de género também estão longe de estar resolvidas, diz ainda o professor. “Vejo isso nos meus alunos. As raparigas portuguesas são muito menos confiantes e arrojadas que as alemãs, por exemplo. Ainda há muito trabalho a fazer.”
Confiança e coragem é algo que não falta a Elisabete Jacinto, quando se faz ao deserto em provas competitivas de milhares de quilómetros. “Quando apareci ao volante de um camião, foi uma novidade porque não havia mulheres a fazê-lo. Isso fez com que eu tivesse financiamento para começar a correr e que os jornais falassem de mim. Mas depois tive um grande balde de água fria quando percebi que ninguém acreditava que eu fosse de facto conduzir o camião, nem os meus parceiros de corridas.” Isso levou-a a não dar tréguas e a conduzir de noite e de dia, sem ouvir quem lhe dizia para descansar um pouco e passar o volante ao seu mecânico. “Era uma necessidade de me afirmar e apresentar resultados num mundo que não era muito recetivo.”
“Uma das minhas principais dificuldades foi assumir-me como líder. Ainda somos ensinadas a ser inseguras e a ficar numa situação dependente. Mas os homens também têm as suas inseguranças — digo-vos eu, que ando com eles no meio do deserto. Temos que nos assumir como líderes”, Elisabete Jacinto, piloto todo-o-terreno
A piloto faz o paralelismo entre as provas em que participa e o novo papel das mulheres na sociedade. “Temos nos impor muito pela qualidade, pelo saber estar e agir num mundo que não era o nosso até aqui. Nós, mulheres, estamos numa fase de conquista e acho que temos muito a aprender sobre como estar na liderança. Continuamos a educar os nossos filhos como os nossos pais nos educaram a nós e não questionamos os valores que lhes estamos a passar. Por vezes, passamos atitudes discriminatórias nos nossos gestos mais instintivos, sem darmos conta.” A competição trouxe-lhe também a certeza de que é “nas equipas mistas que se retiram mais benefícios. A minha equipa conseguiu coisas fantásticas e, em muitas situações, reconheci que a mais-valia vinha do complemento entre as versões masculina e feminina a trabalhar em conjunto, em harmonia e cooperação. Uma das minhas principais dificuldades foi assumir-me como líder. Li há dias que um dos maiores problemas das mulheres era o sentimento de insegurança porque achamos que não temos todos os predicados necessários. Ainda somos ensinadas a ser inseguras, dependentes e a ficar numa situação dependente. Mas os homens também têm as suas inseguranças — digo-vos eu, que ando com eles no meio do deserto. Temos que nos assumir como líderes.”
“O exemplo das mulheres mais velhas vai influenciar traços nas mais jovens, como a determinação e resiliência. Quanto maior o nível de escolaridade das mães, mais longe as filhas irão também.” Isabel Stilwell, jornalista e escritora
Isabel Stilwell corroborou a importância do exemplo que as mulheres passam às filhas. Foi ao estudar as oito rainhas e princesas de Portugal sobre as quais escreveu livros que percebeu como esta é uma questão com séculos de relevância. “Estas mulheres eram muito resilientes e determinadas e tinham mães que também o eram. O exemplo das mulheres mais velhas vai influenciar esses traços nas mais jovens. Quanto maior o nível de escolaridade das mães, mais longe as filhas irão também. Há que dizer que estas mulheres não eram nada livres nesse tempo, nasciam em contextos muito limitados em que eram peões das estratégias diplomáticas dos homens. Mas souberam tirar partido das circunstâncias e podemos aprender isso com elas. Foram capazes de tecer as suas teias de relações, formar a sua equipa de trabalho, exercer o seu poder e fazer a diferença com as limitações que tinham. Tinham também uma visão do poder e da liderança como serviço aos outros e responsabilidade.”
Há mais de 600 anos tivemos em Filipa de Lencastre uma rainha que acreditava numa educação igual para rapazes e raparigas, dando à sua única filha a mesma educação que deu aos filhos homens. “Foi duquesa de Borgonha. Falamos sempre na Ínclita Geração e no Infante D. Henrique, mas não a conhecemos. Foi a mulher mais poderosa da Idade Média e há muitos estudos sobre ela porque foi, no fundo, o ministro das finanças da Europa, trabalhou com câmbios. Já no século XV destruiu o mito de que a matemática não é para mulheres.”