Dora Peralta gere a segurança nos comboios da CP

Formada em Engenharia do Território, lidera a Direção de Segurança e Coordenação da CP. O seu desafio diário é “chegar primeiro” para que tudo corra bem.

Dora Peralta foi uma das mais jovens colaboradoras da CP a ser promovida a um cargo de chefia.

A vocação já se adivinhava desde criança, quando se divertia a construir pontes e casas com Legos. Dora Peralta, 41 anos, formou-se em Engenharia do Ordenamento no Instituto Superior Técnico e é mestre em Gestão pelo ISCTE. Há oito anos, quando a chamaram para assumir um cargo de direção na CP, lembrou: “Tenho filhos pequenos…” Não foi um problema para o conselho de administração que apostou nela para chefiar uma das áreas mais importantes do sector ferroviário e onde não há margem para erros: a segurança da circulação. Hoje, para além desta área, a direção que lidera inclui ainda a segurança de pessoas e bens.

O que faz uma engenheira responsável por segurança de pessoas e bens e segurança de circulação?
A segurança da circulação é um dos valores profundos daquilo que é a ferrovia. O transporte ferroviário é o segundo mais seguro que existe — só ultrapassado pela aviação — e o transporte terrestre mais seguro. A área da segurança na ferrovia tem muito a ver com os fatores que importa medir, o que se pode alterar ou fazer para atuar sempre numa perspetiva de melhoria. De forma um pouco simplista, pode traduzir-se por “não queremos que existam acidentes”, porque sempre que eles existem há um grande impacto na sociedade.

A segurança de pessoas e bens acaba por estar associada à segurança da circulação. Por virtude da atividade da CP enquanto transporte de passageiros, com muitas situações de entradas, saídas, acessos dentro do comboio, é muito importante que estas duas formas de segurança andem a par e garantir que as pessoas tenham as condições para entrar e sair do comboio de forma segura. Um comboio da Linha de Sintra, por exemplo, pode transportar 1200 pessoas em hora de ponta.

O caminho para a Engenharia foi quase natural. Desde pequena que gostava de construções e de matemática.

O sector ferroviário está assente em variados procedimentos, regras, mecanismos e protocolos que fazem com que tudo funcione como um sistema. O Instituto da Mobilidade e Transportes (IMT) emana as principais regras do sector, conjugadas com as regras de segurança do âmbito CP, emitidas por esta direção na área da minha responsabilidade. Depois há que fazer o seu acompanhamento e procurar compatibilizá-las naquilo que for necessário com as Infraestruturas de Portugal, o gestor de infraestruturas a que estamos ligados.

O que a levou a escolher a área da Engenharia?
Uma influência familiar muito grande. O meu pai sempre se interessou muito por Ciência e saber como se fazem as coisas, apesar de não ter formação superior. Os meus dois irmãos mais velhos também sempre gostaram de Ciência e motores, eram mais ligados à área mecânica que de construção. Mas se não gostasse de engenharia tinha ido para outra área. Lembro-me que gostava de construções desde pequena. Tudo o que fazia com Legos eram construções, portos, pontes e casas. Sempre gostei de matemática e depois o caminho para a Engenharia foi quase natural. Por questões financeiras estava fora de questão entrar numa universidade privada, por isso tinha que entrar mesmo no Instituto Superior Técnico. De facto, é a escola de referência ao nível de engenharia. Concluí o curso de Engenharia do Território nos cinco anos previstos. Quando ainda estava a estudar, colaborei no início dos planos de ordenamento da orla costeira; depois trabalhei numa empresa de referência ao nível de projetos de engenharia, a Hidrotécnica Portuguesa. Comecei quando ainda estava a estudar, apenas umas horas por dia. Depois de acabar o curso fiquei a tempo inteiro, mas ainda em regime especial porque a empresa já estava em grandes dificuldades.

Como chegou à CP?
Através de um anúncio no jornal. Fiquei entusiasmada com a referência ao sector dos transportes, até por ter estudado ordenamento do território. Entrei no ano 2000 e gostei logo bastante. Fui para uma área que era a mais próxima daquela em que estou hoje, mas que já mudou em algumas áreas: já tinha a regulamentação ferroviária e dos procedimentos de segurança e ia desde uma área de planeamento e programação dos serviços, tráfego ao tempo real, a uma fase posterior em que analisávamos como tudo correu, que atrasos tivemos e quais os motivos associados. Passados estes anos, a direção ficou com a área de segurança, que não existia de uma forma tão instituída. Isso decorre da evolução do normativo europeu em termos de segurança, para o qual a diretiva europeia de 2004 funcionou como um contributo imenso.

A ligação a países de referência como França, a Alemanha ou mesmo a Espanha — de quem estamos mais próximo na área da segurança — permite-nos afirmar que de maneira nenhuma estamos de parte ou na cauda da Europa.

De que maneira a formação académica a preparou para desempenhar estas funções?
Primeiro, a engenharia dá-nos uma abordagem mais factual e pura aos problemas, ajuda a sistematizá-los e abordá-los de forma diferente. Creio que para formar uma equipa ou uma direção na área da Segurança não podemos ser todos iguais ou não vai resultar bem. Mas pouco tempo depois de começar a trabalhar, comecei a perceber que a componente de Gestão também fazia falta e a identificar questões que eram dessa área. Quando surgiu a oportunidade, fiz o mestrado em gestão no ISCTE, mais de 12 anos depois de começar a trabalhar nesta atividade. Foi de facto muito útil.

Quais os principais desafios da sua função?
É o “chegar primeiro” do ponto de vista da segurança; antecipar-me a qualquer incidente ou acidente. Há uma abordagem mais reativa, em que o problema surge e é preciso corrigi-lo. Existe outra, mais pró-ativa e em que, com base na informação de que dispomos, é preciso perceber onde atuar para não acontecerem problemas. E existe ainda uma terceira abordagem, mais preditiva, em que tentamos saber mais além da informação que nos chega, para podermos atuar. E é esta que é muito difícil de fazer e o grande desafio.

Como se mantém atualizada na sua área?
Na área de segurança é muito importante conhecer as tendências internacionais e há sempre partilha de conhecimentos e novas metodologias. Somos muito condicionados, no bom sentido, pelas normas europeias em termos de segurança, que nos permitem atualizarmo-nos, rever posições e, eventualmente, corrigir formas de atuar. Mas há todo o fator cultural pesado na ferrovia: não é fácil corrigir ou alterar, e isso acontece connosco e com outros países. Nessa atualização de conhecimentos é importante não se perder o relacionamento com os colegas lá fora. Sou membro da plataforma de segurança da Internacional Union of Railways, um fórum de partilha, informação, tendências e conhecimentos, sem prejuízo de todo o normativo que tem de ser seguido por todos. Por isso, essa ligação a países de referência como França, a Alemanha ou mesmo a Espanha — de quem estamos mais próximo na área da segurança — permite-nos afirmar que de maneira nenhuma estamos de parte ou na cauda da Europa.

Faço questão de contactar com maquinistas, revisores, operadores, comerciais porque essas pessoas dão um contributo fundamental sobre o que se está a passar área em que trabalham.

Qual a parte mais aliciante do seu trabalho?
Nunca saber o que me reserva o dia.

E como é um dia típico de trabalho?
Geralmente, já estou por aqui pelas 8h30 ou 9h. Se não houver nenhuma situação fora do comum sigo o planeamento normal de contactos ou reuniões. Tento sempre encontrar um ou dois momentos da semana em que consiga sair do gabinete. Vou a qualquer sítio para me inteirar do que se está a passar no terreno, sobretudo dentro dos comboios, por vezes em sítios mais distantes. É muito importante fazê-lo, sem prejuízo de todas as normas e regras hierárquicas que existem — e que são muito fortes dentro desta casa. Faço questão de contactar com maquinistas, revisores, operadores, comerciais porque essas pessoas dão um contributo fundamental sobre o que se está a passar área em que trabalham.

E qual é a recetividade dos trabalhadores às suas visitas?
Se calhar passei por uma fase em que olhavam e pensavam: ‘Mas o que é isto? Quem é esta?’ Sobretudo num meio marcadamente masculino, como é este. Mas isso passa rapidamente e, nesta altura, é para mim um agrado imenso quando me reconhecem e cumprimentam.

Qual foi o momento mais difícil da sua carreira?
Todas as questões que se prendem com acidentes são muito más. Para mim foi último acidente, que aconteceu em Espanha e em que faleceu um colega português, e o que aconteceu no início de 2013 em Alfarelos — não houve danos humanos, mas não deixou de ser relevante para mim do ponto de vista profissional. Depois há que olhar para as coisas de uma forma factual e fria, ainda que custe, mas sobretudo tentar aprender com esses casos para que não se repitam.

Devo ter sido das funcionárias mais jovens a serem nomeadas para um cargo de chefia; tinha 33 anos.

E o mais marcante?
Quando fui nomeada para chefia de primeiro nível, a depender diretamente da administração. Devo ter sido das funcionárias mais jovens a serem nomeadas para um cargo de chefia; tinha 33 anos. E num meio com muito mais homens e todos mais velhos. Mas os mais velhos valem muito para mim, tenho muito respeito por eles; fui educada desta maneira.

Custa mais assumir uma chefia quando se é jovem?
Nada, nunca o senti. Aqui dentro sempre fui tratada como uma princesa e respeitada. Se estivermos nesta área com conhecimento e segurança esse problema não existe.

Quais as características pessoais mais importantes para exercer este cargo?
Numa casa como a CP, é muito importante sabermos ter o comportamento adequado a cada circunstância e pessoa, sem deixarmos de ser quem somos. É preciso que sintam confiança e força da minha parte. É muito importante a capacidade de nos relacionarmos com as diversas pessoas dentro de uma organização como esta e nas organizações conexas com a CP. Creio que me tenho dado bem.

Fazem falta mais mulheres na engenharia ou em funções equiparadas às suas?
Creio que tem de haver um equilíbrio, sobretudo. Dou-me muito bem a trabalhar maioritariamente com homens porque sempre fui habituada a isso. Vejo que esse equilíbrio não existe, muitas vezes a desfavor das mulheres, pela questão da maternidade. Tem é que se encontrar formas de consegui corrigir isso ou, pelo menos, suavizá-lo para que as mulheres consigam ter tantas oportunidades como os homens.

É mãe?
Sim, tenho dois rapazes, um com 8 e outro com 11. Quando vim para este cargo, um tinha ano e meio e o outro três anos e meio. Comentei logo com a administração: “mas eu tenho duas crianças pequenas…”, ao que a resposta foi: “nós sabemos”. Quando disse que era tratada como uma princesa, isso engloba esta posição dos meus diretores. Sempre me deram condições para fazer muitas coisas a partir de casa. Além disso, tenho um apoio familiar 5 estrelas. Se não fosse o apoio dos meus pais e da minha sogra, se calhar muitas destas coisas não seriam possíveis. Mesmo com uma vida muito ocupada, o meu marido assumia as tarefas habituais sempre que eu tinha que viajar a trabalho. E isso é muito importante. Quando as crianças ficavam doentes sabia que estavam bem entregues – se não tivermos essa certeza, não estamos focadas no trabalho. Infelizmente conheço muitas mães que não têm esse apoio familiar; as coisas começam a complicar-se e assim é impossível alcançarem-se certos postos.

Adoro lavores, tricô e bordados, arraiolos. É o meu grande hobby.

Que conselho daria a alguém que quer fazer carreira nesta área?
Acho que as pessoas têm que fazer aquilo que gostam, mas por vezes também é importante termos alguém que nos ensine a gostar, ou nunca lá chegaremos — como na comida, na música, no trabalho. Tive bons professores, bons mentores. Essa mentoria acaba por ser sempre necessária, mesmo em cargos de chefia, nem que seja por uma partilha de inquietações e questões profundas; alguém que consiga perceber e já tenha passado por isso, não com 10 anos de experiência, mas com 30 e que consiga dar um contributo positivo. E isso acontece muito.

Quando não está a trabalhar, o que gosta de fazer?
Algo bem oposto ao que faço (risos). Adoro lavores, tricô e bordados, arraiolos. É o meu grande hobby.

Quais os seus sonhos e metas futuras?
Melhorar sempre mais e impedir que algo de mau aconteça — são sempre pequenas vitórias fantásticas, mas que não se devem contar. A segurança é daquelas coisas de que só se fala quando deixa de existir. Mas para que ela exista e para que não sejamos falados, há um trabalho pesado a ser feito.

É um trabalho invisível?
É um bocadinho, mas no bom sentido: queremos mesmo é que ninguém dê por nós ou saiba onde estamos.

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