Carla Borges, uma mulher na construção

Desde menina que o sonho era construir casas. Começou por pensar na Arquitetura, mas acabou por fazer Engenharia Civil. Há dois anos está em Moçambique, onde é a única mulher a liderar uma construtora.

Carla Borges cumpriu o sonho de menina e é feliz por isso.

Desde os 12 anos que Carla Borges descobriu a vocação: construir casas. Começou a desenhá-las aos 14 para o gabinete de um amigo do pai e foi o que fez até terminar o curso de Engenharia Civil no ISEL. Desde então já fez muito mais do que casas: construiu centros comerciais, edifícios de escritórios e habitação, palácios de justiça, reabilitou pontes, e reconstruiu a Siderurgia Nacional, no Seixal. Começou a carreira como adjunta de diretor de obra na Teixeira Duarte e foi coordenadora de propostas na Edifer. Há dois anos aceitou o convite da Opway Moçambique para liderar a sua direção comercial e, cinco meses depois, tornava-se presidente do conselho de administração da empresa que, entretanto, se passou a designar Nadhari Opway.

Carla Borges diz que ser mulher não afetou o seu percurso profissional, nem mesmo em Moçambique, onde é a única mulher à frente de uma construtora. Mas admite que a sua vida pessoal foi sacrificada pelas escolhas que tem feito. Assume-se como muito exigente consigo e com os outros, e não recua quando as propostas surgem. “Acho sempre que sou capaz, com mais ou menos esforço, de outra forma não aceitaria os desafios”, garante.

Como surgiu a Engenharia Civil na sua vida?
A minha primeira vontade era a Arquitetura, queria fazer as casas fantásticas que via nas revistas. E tinha jeito. Entretanto, percebi que o arquiteto sozinho não conseguia fazer casas. Achei com o jeito que tinha para desenhar casas se fosse para Engenharia conseguiria fazer as duas coisas. E foi aí que tomei a decisão.

Perguntaram-me o que me via a fazer quando tivesse 30 anos e talvez porque não falei em casamento e filhos isso tivesse ajudado à minha progressão.

Quais as suas ambições profissionais durante o curso?
Nunca pensei muito nisso, porque de facto só pensava em fazer casas, era o meu sonho de criança. Quando estava no curso pensava em montar o meu gabinete e desenhar e construir as casas.

Como se estreia neste mercado?
O meu primeiro emprego após a conclusão do curso de Engenharia, foi como auxiliar de laboratório na construção do troço da A6 Vendas Novas – Montemor-o-Novo. Posteriormente, ingressei no departamento de instalações e oficinas do Departamento Técnico da Universidade de Évora. Nessa altura comecei por gerir as pequenas intervenções e manutenções dos vários edifícios da universidade, tendo mais tarde acompanhado a execução de um dos edifícios que estava a ser construído na altura.

Como acontece a passagem para a Teixeira Duarte?
Quando me deram a oportunidade de entrar nos quadros da Universidade de Évora, achei que não era aquilo que queria, pois precisava de evoluir mais. Apesar de adorar as pessoas com quem trabalhava, essencialmente com a Drª Ausenda Balbino, hoje vice-reitora daquela universidade, eu precisava de mais… Nessa altura vi dois anúncios no jornal, um para a Teixeira Duarte e outro para a Edifer, e enviei o currículo para ambas. Curiosamente, pedi à minha mãe que me colocasse as cartas no correio, mas como ela se esqueceu só seguiram um mês mais tarde. Ainda assim, quando fui chamada para a entrevista na Teixeira Duarte consegui o lugar. Entrei como adjunta de diretor de obra.

Há muito que deixou a direção de obras e hoje dirige uma empresa em Moçambique. O Hotel Polana é o seu refúgio de fim de semana.

Há muito que deixou a direção de obras e hoje dirige uma empresa em Moçambique. O Hotel Polana é o refúgio que procura ao fim de semana para recarregar as baterias.

Já havia mulheres nessa função?
Havia algumas, essencialmente estagiárias mas poucas passavam a diretoras de obra porque acabavam por sair no final do estágio ou pouco depois. Na entrevista perguntaram-me o que me via a fazer quando tivesse 30 anos e talvez porque não falei em casamento nem em filhos isso tivesse ajudado à minha progressão. Quando cheguei à Teixeira Duarte creio que havia apenas uma diretora de obra mais experiente que estava em Moçambique, e eu e outra colega que ainda éramos estagiárias.

É preciso assumir que não é a função que nos dá o conhecimento, mas a aprendizagem e a experiência.

Teve dificuldade em impor-se num mundo de homens como é o das obras?
Senti que em algumas situações as pessoas à minha volta me poderiam tentar pôr à prova, mas depois achavam piada ver uma mulher nas obras. As minhas equipas também me protegiam um bocado, envolviam-me muito, pediam a minha opinião. Temos de nos saber impor sem ser pelo autoritarismo. É preciso assumir que antes de saber não se sabe e que não é a função que nos dá o conhecimento, mas a aprendizagem e a experiência. E penso que neste meio algumas mulheres não tinham esta sensibilidade, talvez condicionadas pela grande exigência, e como forma de afirmação…

Quais as obras mais marcantes que fez na Teixeira Duarte?
Passado pouco tempo de estar na empresa fui para a Madeira. Era o boom da construção e fizemos muitas obras no arquipélago. As Galerias de São Francisco foram uma das obras mais desafiantes, pela sua complexidade e acima de tudo por ter sido a primeira construção que fiz como diretora de obra. Foi aliás nessa obra que passei a assumir essa função. Fiz ainda outra obra muito marcante para mim, a remodelação do Health Cub do Hotel Cliff Bay. Tínhamos de a executar em 10 semanas, se não me falha a memória, porque tinha multas elevadíssimas senão cumpríssemos o prazo, e nós conseguimos concluir a obra uma semana e meia antes, tendo inclusivamente sido compensados por essa antecipação.

O que a leva a trocar a Teixeira Duarte pela Edifer?
Depois de 11 anos na Teixeira Duarte apercebi-me que havia três fatores que forçavam a minha saída. Estava cansada de andar de um lado para o outro – tinha estado em Lisboa, na Madeira, no Alentejo e nos Açores e achei que estava na altura de sossegar. Por outro lado, queria passar para a área comercial, pois alguma das obras que executei já tinham sido ganhas por mim, e queria evoluir nesse sentido. E, por fim, achei que na Teixeira Duarte não tinha muito mais espaço para evoluir (talvez erradamente, mas foi uma escolha). De qualquer forma, a Teixeira Duarte, foi, é e sempre será a minha maior referência como profissional. Foi lá que aprendi a maioria do que sei hoje. Guardo muito boas relações e recordações de todo o tempo que lá trabalhei.

Tenho um grande defeito, acho que sou mesmo boa naquilo que faço.

Entrei na Edifer já não como diretora de obra mas como coordenadora de propostas. Apesar de ser nova na função a minha experiência no terreno dava-me uma boa preparação para o cargo. Sabia como se executava uma obra, sabia fazer a estrutura de custos, estudava bem os projetos de forma a conseguir otimizá-los e por isso não foi difícil ganhar a primeira obra que orçamentei.

Tornou-se especialista em fazer propostas.
Eu tenho um grande defeito, acho que sou mesmo boa naquilo que faço. Ganhei vários projetos enquanto estive na Edifer, alguns de montantes bastante avultados. Estive algum tempo em África, para estudar alguns projetos para a execução de algumas infraestruturas de habitação, lazer e viárias. Eram projetos muito interessantes, de valores acima dos 500 milhões de euros, que envolviam a construção de muitas casas e que requeriam um acompanhamento muito próximo. Deram-me muita luta e fomos bem sucedidos em alguns deles.

Como surge a proposta de Moçambique?
Não consigo estar muito tempo no mesmo sítio a fazer a mesma coisa. Gosto de chegar, organizar e quando as coisas estão a funcionar preciso de fazer algo diferente. Em seis anos na Edifer já tinha feito muitas propostas e precisava de mudar.

Com que função chegou a Moçambique?
Fui para a Opway como diretora tecnico-comercial, já não executava apenas os orçamentos, também fazia a angariação de clientes. Digamos que subi um degrau.

Nunca hesitou, nem receou trabalhar num mercado diferente, que não conhecia?
Não foi uma mudança tão abrupta quando possa parecer à primeira vista. Já tinha feito algumas propostas para lá e como nasci em Moçambique, foi para mim uma evolução natural. Além disso, nunca pensei que não era capaz. Acho sempre que sou capaz de fazer as coisas, de outra forma não me proponho. Quando estava na Teixeira Duarte já tinha desejado ir trabalhar para fora, nomeadamente para Moçambique, mas a empresa não quis arriscar, por razões de segurança.

Sou muito exigente comigo e com os outros. Não aceito pessoas que procuram uma justificação para o seu insucesso ou inércia.

Foi fácil adaptar-se a uma nova empresa, num novo país, com uma nova cultura?
Assim que cheguei identifiquei logo algumas situações que podiam ser melhoradas e isso dá-nos algum alento. Percebi que tinha de conhecer as pessoas. A empresa tinha cerca de 120 pessoas e eu não conhecia ninguém. Era preciso conquistar as pessoas.. Como sou sempre frontal na minha abordagem à função e à organização onde estou – não para por em causa, mas para perceber e introduzir melhorias – e como geralmente as propostas de mudança enfrentam sempre resistências internas, admito que tive algumas dificuldades inicialmente, mas depois foram sendo superadas.

Foi preciso mudar a cultura da equipa. Sou muito exigente comigo e com os outros. Não aceito pessoas que procuram uma justificação para o seu insucesso ou inércia. É preciso fazer acontecer e não colocar as culpas nos outros. Para mim a culpa está em nós. Se não consigo uma coisa não é porque alguém me disse que não, mas porque não insisti e expliquei o suficiente para perceber as vantagens do que estou a oferecer.

Por outro lado, acredito na capacidade que os moçambicanos têm para desenvolver as suas competências e na sua sede de aprender. Considero que é uma prioridade e sem dúvida uma aposta da empresa investir na sua formação, na qual, os portugueses podem dar o seu contributo. Estamos a apostar na transferência de conhecimentos e estou certa que nos trará bons resultados.

A primeira obra que Carla ganhou em Moçambique foi este shopping em Tete.

A primeira obra que Carla ganhou em Moçambique foi este shopping em Tete.

Demorou muito até conquistar a primeira obra?
Quando cheguei a empresa não ganhava obras há quase três anos, em três meses ganhamos a primeira. Um centro comercial em Tete para um cliente particular. Foi preciso lutar contra a imagem que a empresa tinha no mercado e ajustar comercialmente a nossa proposta até nos conseguirmos encaixar no budget.

[A direção-geral] foi o único desafio que me assustou até hoje. Mas não recuso nada antes de perceber se sou capaz.

Conseguir transmitir confiança ao cliente e fazer bem, eram os objetivos principais, tendo-se conseguido ambos. O cliente até dizia, creio que por brincadeira “…a obra foi ganha pela Carla Borges…” e eu dizia-lhe que no final ele perceberia que tinha sido ganha pela Nadhari Opway. A obra já está concluída e correu tudo bem. E a partir dai foi mais fácil conquistarmos novos clientes.

Em pouco tempo passou a diretora-geral. Foi uma evolução muito rápida.
Esse foi o único desafio que me assustou até hoje. Senti que podia não ter a experiência necessária para assumir o cargo. Ainda estava a conhecer o mercado, mas aceitei. Não recuso nada antes de perceber se sou capaz. As dificuldades maiores surgiram quando dois meses depois surgiram os problemas com o BES. Antes disso a empresa tinha alguns problemas, estávamos numa fase de reconstrução e, precisamente quando estávamos a conseguir vir à tona, acontece esta situação. Temi não estar preparada, mas por outro lado pensei que se me tinham convidado para aquele cargo e mantinham a confiança em mim era porque acreditavam que eu tinha competência. Tentei sempre não passar os meus receios à equipa, mas não foi fácil. Há uma solidão inerente a qualquer posição de gestor, é preciso tomar decisões rápidas, definir a estratégia, equilibrar as equipas e assumir os riscos.

Em Moçambique é a única mulher à frente de uma construtora. Sente-se discriminada?
Não. Enquanto foi novidade as pessoas achavam que eu devia ser diferente para ocupar um lugar que é tradicionalmente ocupado por homens, e quando começaram a conhecer-me melhor esses preconceitos desapareceram. Sou muito terra-a-terra, não vivo apegada à função, o que faz com que tenha um relacionamento muito natural com todas as pessoas. Mesmo em Portugal as relações com as pessoas nascem de forma natural. Nunca fui de fazer charme para fazer conquistas. Acredito que as relações se constroem com base na confiança. Em Moçambique, sinto que a consegui transmitir. As pessoas estão à vontade comigo. Se é preciso ir tomar um copo para discutir um negócio, vamos. A exposição pública, pelo facto de ser a única mulher é o único fator com que estou ainda a aprender a lidar e do qual me resguardo um pouco.

A disponibilidade foi um factor essencial para fazer carreira nesta área. Está arrependida das escolhas que fez?
Não. Adoro o que faço e sinto-me realizada desde sempre.

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