Vanessa Loureiro é licenciada em Arqueologia pela Universidade Nova de Lisboa, sendo doutorada em Arqueologia Náutica pela Université de Paris I – Panthèon Sorbonne. Mais tarde, complementou a sua formação com uma MBA e um mestrado em Finanças, ambos pela Universidade Católica. Iniciou a carreira em 2004 como coordenadora técnica e financeira de projetos no Ministério da Cultura. Mais tarde, assumiu a posição de consultora sénior na Capgemini Portugal ocupando, posteriormente, o lugar na Comissao Executiva da empresa de responsável pela unidade de consultoria de alta-direção.
Em 2015, muda para a AT Kearney, também como gestora sénior de estratégia de consultoria e, na sequência de um projeto, não resiste quando a convidam para passar “das recomendações às ações” e integrar a Efacec como responsável do Planeamento Estratégico e Melhoria Contínua, assumindo a liderança do programa de transformação da empresa Efacec2020. Desde 2017 é administradora da empresa (pelo menos, até a renovação dos órgãos sociais que se avizinha), sendo responsável pelos Sistemas de Informação, áreas Comerciais de Produtos e Unidade de Negócio de Aparelhagem. Foi também membro não-executivo da administração do Banco BIC Português.
Nesta entrevista explica como a formação em Arqueologia a tem ajudado ao longo da carreira, o que de mais importante aprendeu na consultoria, o que mais a realiza na Efacec e o que continua a impedir que mais mulheres cheguem a funções executivas nos boards.
Como é que uma jovem licenciada e doutorada em Arqueologia dá o salto para a consultoria?
A minha formação em Arqueologia é sempre um excelente desbloqueador de conversas, sobretudo porque sou/ era especialista em Arqueologia Náutica e Subaquática e o mar exerce um fascínio especial. Mas a realidade é mais linear e convencional do que parece à primeira vista.
O meu perfil é muito eclético e, portanto, até à entrada na universidade, estudei Economia, complementada com Filosofia e Latim, disciplinas que fiz à parte: a primeira porque era um requisito para a entrada universidade; a segunda, apenas por curiosidade. Dito isto, o que sai da universidade é uma arqueóloga com bons conhecimentos de matemática, economia e contabilidade. Ora, o que muitos desconhecem é que os Arqueólogos desempenham funções de gestão, tipicamente complexas. Compete-lhes gerir equipas multidisciplinares no terreno e várias partes interessadas, com recursos limitados, por vezes em ambientes hostis e em condições de risco.
Foi, neste contexto, de gestão de património e enquanto trabalhava no Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática, um organismo que já não existe do então Ministério da Cultura, que resolvi enveredar no MBA, para aumentar as minhas competências de gestão. O MBA literalmente mudou a minha vida. Abriu-me horizontes, deu-me a conhecer pessoas muito interessantes e despertou-me o interesse pelo mundo empresarial. Quando o terminei, e não estando ainda completamente convencida de que queria abandonar o setor cultural, aceitei ir a uma entrevista para a área de consultoria de alta-direção da Capgemini e saí da entrevista cheia de vontade de integrar a equipa.
O salto para a consultoria, dá-se porque, nas várias entrevistas que fiz (desde os Recursos Humanos ao VP de Consultoria), contactei com pessoas inteligentes, humanas, competentes e empenhadas, que me fizeram sentir que crescia, enquanto pessoa e profissional, a cada entrevista. Quando acabou a ronda de entrevistas, eu queria mesmo fazer parte daquela equipa. Este episódio marcou-me e, ainda hoje, faço questão de participar no processo de recrutamento da Efacec, mesmo para funções juniores.
Do lado da Capgemini, acho que conseguiram ver, no meu percurso e experiência como Arqueóloga, um embrião de potencial que nem eu sabia que lá estava e, sobretudo, uma certa irreverência e vontade constante de superação pessoal.
Deitei-me como consultora sénior, sem saber como gerir o dia seguinte nas instalações do cliente, e acordei com um plano claro na cabeça de como resolver os bloqueios que estávamos a viver e uma metodologia para concluir os trabalhos com sucesso.
Trabalhou em consultoria quase 8 anos, primeiro na Capgemini e mais tarde na A.T. Kearney. O que mais gostou nesta área?
A velocidade, a diversidade e a meritocracia.
Diversidade nos temas abordados, no tipo de clientes, no tipo de projetos, no tipo de funções, nas geografias onde trabalhei… Não há monotonia, nem dois dias iguais.
Velocidade na aprendizagem, na rotação de projetos e no desenvolvimento. O sentimento de desenvolvimento pessoal e profissional é constante.
Meritocracia porque a recompensa está ligada ao desempenho e empenho, e a velocidade de progressão na carreira sempre dependeu exclusivamente de mim, dentro dos sólidos princípios éticos que tanto a Capgemini como a Kerney defendem.
Qual o trabalho mais desafiante que teve nessa fase?
Eu sou entusiasta por natureza e encontro sempre algo de especial e marcante em cada projeto. Mas há, de facto, alguns projetos mais desafiantes do que outros e normalmente por questões não relacionadas com a componente técnica do trabalho.
Recordo-me de um projeto que fiz quando era consultora sénior, numa empresa pública que tinha um modelo de negócio estagnado e que precisava de uma nova orientação. A tutela queria muito que se repensasse a empresa e a sua função, mas os quadros da empresa não consideravam que fosse o momento oportuno. O projeto começou com uma equipa típica de consultoria, que tinha desde analistas a um principal. Mas o ambiente e a gestão do projeto eram tão difíceis que os vários consultores foram entregando as suas cartas de demissão com efeitos imediatos e, a meio do trabalho, só restava eu. Para terem uma ideia do ambiente, realizámos um workshop de dia inteiro e nenhum dos participantes do lado do cliente abriu a boca durante todo o dia.
Eu deitei-me uma noite como consultora sénior, sem saber como gerir o dia seguinte nas instalações do cliente, sem saber como orientar o projeto, e acordei, de manhã, como gestora do projeto, com um plano claro na cabeça de como resolver os bloqueios que estávamos a viver e uma metodologia para concluir os trabalhos com sucesso. Foi um “clique”. E a verdade é que a empresa ainda hoje existe e eu vejo resquícios do projeto em muito do que fazem. No dia em que encerrámos os trabalhos, os meus interlocutores na empresa ofereceram-me um ramo de flores como agradecimento pela perseverança e por os ter conseguido fazer repensar a empresa e construir o futuro. Acabei promovida a manager, graças a este projeto.
[Na consultoria] aprendi a liderar, em vez de gerir; aprendi a delegar, a confiar e a pedir resultados; aprendi a fazer crescer os que comigo trabalham; aprendi a identificar e fomentar talento; aprendi a importância da cultura empresarial.
Que competências adquiriu e que outras desenvolveu nesta etapa da sua carreira?
A consultoria é uma ótima atividade para se aprender muito em pouco tempo. Aprendi muito sobre vários setores (energia, telecomunicações, banca, retalho, entre outros), sobre processos de negócio, sobre mercados e sobre metodologias de trabalho. E uma das competências que claramente desenvolvi foi cross-fertilization, ou seja, a capacidade de transpor boas práticas observadas num setor ou mercado para outro em nada relacionado.
Também desenvolvi outras que, hoje, me são muito úteis. Alguns exemplos:
- Obter uma visão de helicóptero e focar/ dig down apenas no que é relevante para o objetivo;
- Saber negociar e persuadir;
- Pegar no telefone para obter uma resposta, em vez de mandar um email: mais eficiente e eficaz;
- Não tentar inventar a roda: para a maioria dos problemas certamente que alguém já encontrou uma solução, é só preciso encontrar esse alguém;
- Gerir por exceção: se está tudo a correr conforme o planeado, não vale a pena estarmos a fazer reuniões;
- Saber receber um “não” e dizer “não”.
Mas onde mais me desenvolvi foi na gestão de equipas: aprendi a liderar, em vez de gerir; aprendi a delegar, a confiar e a pedir resultados; aprendi a fazer crescer os que comigo trabalham; aprendi a identificar e fomentar talento; aprendi a importância da cultura empresarial.
Como acontece a sua passagem da consultoria para a indústria? O que mais a atraiu na proposta da Efacec?
Acho que como acontece com a maioria dos consultores: através do convite de um cliente. Estava a ser concluído o processo de venda da Efacec em 2015 e a nova gestão estava à procura de uma pessoa para coordenar o processo de revisão estratégica da empresa e o futuro plano de transformação. Já me conheciam de projetos passados e acharam que eu tinha o perfil que procuravam.
Este foi outro momento de viragem. Atraiu-me a Efacec: um grande projeto de reestruturação, numa empresa industrial e de projetos de referência internacional e de grande valor estratégico nacional. Uma empresa com uma riqueza e diversidade de capital humano extraordinária. Uma empresa fragilizada, a sair de um processo de falência técnica, na qual eu nunca tinha trabalhado, mas cujo potencial era indiscutível. Acresce que tinha uma enorme vontade de “passar das recomendações para a ação” e trabalhar, no terreno, na recuperação de uma empresa.
Há sempre um sentimento de que não estou a cumprir a 100% o meu papel como mãe: embora consciente, ainda não me consegui (e acho que também não quero) libertar-me deste condicionalismo social.
Quais as principais alterações na sua vida que essa mudança implicou?
Eu confesso que aceitei a proposta no momento em que a fizeram, sem refletir sobre os impactos na minha vida pessoal, mas esses impactos foram essencialmente logísticos. A gestão do programa de transformação da Efacec exigia uma permanência no Porto, pelo que tomámos a decisão de deslocar a família. Uma decisão tomada em família.
Hoje, e porque as funções já são diferentes, reparto a semana entre Lisboa e Porto, e viajo bastante. Muitas vezes, perguntam-se se não é difícil gerir esta “ausência permanente”, até porque as minhas filhas ainda são pequenas. Confesso que a gestão não é difícil porque tenho a sorte de ter uma rede de suporte extraordinária, que me apoia incondicionalmente. Mas há sempre um sentimento de que não estou a cumprir a 100% o meu papel como mãe: embora consciente, ainda não me consegui (e acho que também não quero) libertar-me deste condicionalismo social.
Quando se pensa em Efacec pensa-se em engenheiros e não em arqueólogos. Como reagiu a esta proposta?
Com toda a naturalidade de alguém com um percurso sólido em consultoria. Era um movimento lógico para alguém que já tinha tido responsabilidades executivas na filial portuguesa de uma multinacional. Preocupo-me sempre, sim, sobre como posso contribuir para fazer a diferença nos vários cargos que vou ocupando e promover o desenvolvimento das equipas que tenho o privilégio de liderar.
E como reagiam os seus novos colegas quando percebiam que vinha de Arqueologia?
Não senti nenhuma reação especial, exceto talvez alguma curiosidade sobre o percurso. Existiram algumas conversas simpáticas ao almoço sobre os navios quinhentistas, os Descobrimentos e a marca deixada pelos Portugueses pelo Mundo. Mas acabaram rápido… Hoje, o tema da Arqueologia funciona como ice-breaker com clientes e parceiros ? E ajuda muito no recrutamento e na gestão de equipas, porque faz com que percebam e identifiquem competências e potencial para lá dos títulos académicos.
A minha formação original faz com que eu tenha sempre a tendência de olhar para o passado para prever os comportamentos futuros e que tenha uma certa sensibilidade para a dinâmica das sociedades e suas diferentes durações.
Em que medida a sua formação académica lhe tem sido útil numa área tão distinta?
Acredito que aporta uma forma diferente de pensar, de relacionar eventos, de prever reações e de antecipar o futuro. A minha formação original faz com que eu tenha sempre a tendência de olhar para o passado para prever os comportamentos futuros e que tenha uma certa sensibilidade para a dinâmica das sociedades e suas diferentes durações. Na Efacec, 75% do que fazemos é para o mercado externo e para geografias muito distintas: é preciso conhecer e adaptarmo-nos às diferentes culturas e costumes, e saber prever os impactos dos mesmos na nossa atividade.
Por outro lado, e sob a grande influência do pensamento económico do historiador francês Fernand Braudel, que me marcou quando era estudante, dou sempre precedência aos fenómenos de longa duração: prioridades em detrimento de urgências. Em conjunto, isto permite-me desenhar cenários assentes em conhecimento informado.
Entrou para a Efacec como responsável do Planeamento Estratégico e Melhoria Contínua, assumindo depois a liderança do programa de transformação da empresa Efacec2020. Quando olha para esses primeiros tempos, qual a conquista de que mais se orgulha?
Eu entrei na Efacec como responsável de Estratégia e acabei por agregar a Melhoria Contínua porque era uma pedra basilar na implementação do programa de transformação Efacec 2020.
O que mais me orgulha é termos tido a capacidade de mobilizar a organização para a mudança e de gerir de forma colaborativa um programa que tinha mais de duas centenas de iniciativas, lideradas por dezenas de equipas multidisciplinares e que deu origem a uma nova forma de trabalhar na Efacec. Os resultados do programa falam por si: entre dezembro de 2015 e dezembro de 2018, as encomendas cresceram 62% e o EBITDA 64%, com um nível de endividamento inferior.
A Efacec assumiu um posicionamento de inovação tecnológica e de marca de referência além-fronteiras; rejuvenesceu-se, sabendo conservar e valorizar o conhecimento e o seu passado; revelou uma capacidade ímpar de trabalhar em mercados competitivos e exigentes; começou a trabalhar de forma mais colaborativa e em rede.
Estas são algumas das conquistas da Efacec, para as quais eu contribuí, mas que não se teriam materializado se não fossem as pessoas que constituem a excelente equipa que é a Efacec.
Conheço várias mulheres com capacidade e experiência para estarem no board de uma empresa e, nos últimos anos, deparei-me com uma certa delimitação das mulheres a funções não executivas e com argumentos para a sua não consideração para lugares executivos, baseados em enviesamentos sociais.
Desde 2017 que integra o conselho de administração da Efacec e até ao início deste ano esteve também no board do EuroBic. Na sua opinião, como é que se pode acelerar a entrada de mais mulheres nos boards das empresas?
Em primeiro lugar, e apesar do grande progresso já feito neste domínio, é necessário insistir, e continuar a insistir, que a diversidade é salutar e é uma fonte de competitividade. E não apenas a diversidade de género, mas também de geração (idade), de etnia, de nacionalidade, de religião, de formação. A diferença de pensamento e de construção lógica tem um enorme valor acrescentado para as empresas, embora seja difícil de gerir.
Relativamente à diversidade de género, eu não privilegio quotas em detrimento do mérito e do talento. Mas a verdade é que já fui menos a favor das quotas. Conheço várias mulheres com capacidade e experiência para estarem no board de uma empresa e, nos últimos anos, deparei-me com uma certa delimitação das mulheres a funções não executivas e/ou com argumentos para a sua não consideração para lugares executivos, baseados em enviesamentos sociais. É muito importante avaliar homens e mulheres pelos mesmos critérios e evitar clichés como “a liderança masculina é mais simples e objetiva”.
Mas há um caminho a ser feito também pelas mulheres: se o sistema está enviesado, é preciso combater o enviesamento. Se acreditam que têm competência para um lugar, têm de se fazer ouvir, assumir riscos e promover a mudança. É preciso empenho e ambição: valências, disponibilidade, determinação e vontade.
Que principais lições pode partilhar com uma carreira diversificada como a sua?
Hoje, nos processos de recrutamento e seleção, ainda se privilegiam as competências técnicas (hard skills), a experiência homóloga e a especialidade, em detrimento das competências comportamentais (soft skills), do potencial e do ecletismo. A grande maioria dos recrutadores ainda é naturalmente adversa ao risco, o que na minha opinião, faz com que se perca muito talento.
Numa perspetiva mais pessoal, a minha carreira tem acontecido porque tenho estado nos lugares certos, à hora certa, e nunca hesitei em aceitar os desafios que me foram colocados. Em momento algum, tive dúvidas sobre as minhas capacidades e, sobretudo, sobre a capacidade de reforçar rapidamente as competências que me faltavam. Sempre privilegiei os conselhos e as críticas das pessoas que me fazem sair da minha zona de conforto. Tive a sorte de me ter cruzado ao longo da minha carreira com pessoas de excelência, que me souberam estimular ao nível da reflexão, auto-compreensão e auto-confiança. E assim espero que continue.
Que conselho deixaria a uma jovem executiva que tenha como ambição chegar à liderança de uma empresa?
Tenham consciência relativamente ao que não querem, mas deixem em aberto o que querem. Não tenham medo da palavra “ambição”: deriva do latim “ambire”, que quer dizer “mover-se livremente”, isto é, criar o próprio caminho. Corram riscos e não tenham medo de errar: errar faz parte do caminho, é preciso é saber assumir o erro, corrigir e aprender com ele. E, acima de tudo, criem sucessão e empenhem-se na formação de futuros líderes.