As virtudes das vinhas velhas para Susana Esteban

A enóloga galega Susana Esteban começou a produzir vinhos de vinhas velhas da região de Portalegre, em 2011. Hoje tem no mercado 12 referências diferentes, tão distintas umas das outras como as parcelas que lhes dão origem.

A enóloga Susana Esteban aposta em vinhos de vinhas velhas.

A  enóloga Susana Esteban começou a produzir vinhos de vinhas velhas da região de Portalegre, em 2011, depois de alguns anos a trabalhar por conta de outrem no Douro e como consultora no Alto Alentejo. Foi a primeira mulher enóloga a receber o prémio “Enólogo do Ano”, em 2011. Hoje tem no mercado 12 referências diferentes, tão distintas umas das outras como as parcelas que lhes dão origem. São pequenas quantidades de garrafas que têm de ser bem explicadas a quem as compra e, é claro, proporcionar o prazer correspondente à expectativa de quem as bebe. Por isso, sempre procurou encontrar parceiros de distribuição que compreendessem os seus vinhos e os comunicassem melhor. Foi um trabalho difícil, moroso, mas que valeu a pena. Atualmente, Susana Esteban vende todas as 35 a 40 mil garrafas, de 12 referências que produz, cá e em países como o Brasil, Suíça, Inglaterra, Espanha e Estados Unidos. E não quer parar por aqui.

 

Como iniciou a sua atividade como enóloga?

Sou galega, de Tui. Como não havia curso de Enologia em Espanha, tirei Engenharia Química na Universidade de Santiago de Compostela e fiz, depois, um mestrado em Viticultura e Enologia na Universidade de la Rioja, em Logronho. Numa das muitas viagens que fizemos durante esse mestrado visitámos o Douro, porque o meu professor de viticultura era um apaixonado pela região.

Decorria o ano de 1995, numa altura em que a região ainda era praticamente desconhecida e mesmo eu, que sou galega, de uma região que lhe faz fronteira, nunca tinha ouvido falar do Douro. Quando visitei a região pela primeira vez, fiquei completamente deslumbrada e estranhei que ninguém conhecesse um sítio como aquele, que só começou a ser descoberto um pouco mais tarde com a mediatização dos seus vinhos. Então, pedi uma bolsa do programa Leonardo da Vinci para estagiar na região e ficar a conhecê-la um pouco melhor. Estive, em 1996, na Sandeman, um mês em vindimas no Douro, no centro de vinificação em Cambres, outro mês a passar por todos os departamentos de produção da empresa em Gaia e mais outro mês na sala de provas, com o provador da Sandeman da altura. Figuras como ele não tinham qualquer ligação à produção, mas eram essenciais para as empresas porque eram eles que faziam os lotes de Vinho do Porto. Foi uma experiência muito boa, porque o Vinho do Porto é um mundo muito fechado e entrar nele foi fascinante e um privilégio.

A seguir ao estágio comecei a trabalhar na Galiza como diretora técnica de uma empresa de agroquímicos para a viticultura, onde estive até 1999. Mudei-me em consequência de um anúncio que a Quinta do Côtto pôs num jornal, a pedir um director de produção, ao qual me candidatei porque sempre quis voltar ao Douro. Ir viver para o Douro, numa altura em que a região ainda estava muito atrasada, isolada, foi a decisão e a mudança mais drástica da minha vida. Mas aceitei o desafio e fui trabalhar para a Quinta do Côtto, com o Miguel Champalimaud, onde estive durante três anos.

Depois fui convidada para a Quinta do Crasto, onde estive de 2002 a 2007, a trabalhar como enóloga. Foi também uma experiência incrível, porque a empresa, na altura, e ainda hoje, é uma referência nacional e internacional. Para mim também foi muito importante a parceria que tem com o Chateau Lynch Bages, para a produção dos vinhos Roquette e Cazes, que me deu a oportunidade de trabalhar com o enólogo Daniel Llose, que foi determinante para mim, não só por causa de tudo o que aprendi com ele, mas também porque me identifiquei muito com o tipo de vinhos que ele elabora. Não teria a capacidade, e vontade, de produzir os vinhos que faço hoje, se não tivesse tido a oportunidade de trabalhar com ele.

Decidi iniciar o meu projecto pessoal porque comecei a ficar fascinada e a envolver-me cada vez mais com as misturas de castas das vinhas velhas portuguesas, um património único do país que se deve preservar e valorizar. A partir daí comecei a procurá-las, o que não foi fácil, porque muitas foram arrancadas. Mas felizmente sobreviveram algumas na Serra de S. Mamede.

Houve uma altura em que se mudou para o Sul. Qual foi a razão?

Casei-me. O meu ex-marido era de Lisboa e fui viver para lá. Comecei a trabalhar no Alentejo, porque fica mais próximo. Felizmente, tive, na altura, vários convites para trabalhar e, por acaso e sorte, todos de produtores do norte do Alentejo, onde comecei a trabalhar a partir de 2007, como consultora em diversos projetos, que ainda mantenho.

Quatro anos mais tarde, decidi iniciar o meu projecto pessoal porque comecei a ficar fascinada e a envolver-me cada vez mais com as misturas de castas das vinhas velhas portuguesas, um património único do país que se deve preservar e valorizar. A partir daí comecei a procurá-las, o que não foi fácil,  porque muitas foram arrancadas. Mas, felizmente, sobreviveram algumas na Serra de S. Mamede. Como me identifiquei muito com esta zona, mais do que com o Douro, porque eu queria fazer vinhos com frescura, e o granito, a altitude e as vinhas velhas da região ofereciam as condições que precisava para fazer os meus vinhos, decidi começar o meu projecto nesta região.

 

Quais foram e como superou os principais desafios que enfrentou na sua vida de trabalho? 

Um dos primeiros aconteceu quando comecei a trabalhar na Quinta do Côtto, quando a minha única experiência como enóloga vinha dos estágios de vindima que tinha feito. Assumir a responsabilidade de ser a diretora de produção da Quinta do Côtto, uma marca muito reconhecida na altura, foi um grande desafio, sobretudo, porque não tinha experiência e passei a viver numa região e num país que não conhecia. Felizmente, encontrei no Douro um grupo de pessoas da minha geração, que começaram a trabalhar mais ou menos ao mesmo tempo que eu, como o Francisco Olazabal, a Sandra Tavares da Silva, o Jorge Serôdio Borges, o Jorge Moreira, o Francisco Ferreira e o Dirk Niepoort, um pouco mais velho, que era, um pouco, o pai de todos nós, que me ajudaram.

Estávamos todos a começar, com zero experiência, mas com empenho em dar o nosso melhor, e procurar aprender com imensa garra e entusiasmo. Apoiávamos e não nos sentíamos diferentes uns dos outros, porque estávamos todos na mesma situação. Foi uma época e uma geração muito giras, quase irrepetíveis. Eu penso muito nisto e acho que não teria sobrevivido como pessoa e profissional se não os tivesse encontrado, porque foi bastante duro ir viver e trabalhar para uma zona de Portugal tão isolada na altura.

 

Quais foram os pontos altos da sua vida profissional até agora?

Um dos pontos altos da minha carreira foi o tempo que estive na Quinta do Crasto, porque me permitiu trabalhar com uma equipa dinâmica, com boa mentalidade, e pude aprender com o Daniel Llose. Outro foi ter-me mudado para o Alentejo, uma nova realidade e ter começado um projecto com sucesso.

A nível de reconhecimento, um dos principais pontos altos foi ter sido reconhecida como enóloga do ano pela equipa antiga da Revista de Vinhos, agora da Vinho Grandes Escolhas, que aconteceu em 2012, numa altura em que já tinha iniciado o meu projecto pessoal, mas os vinhos não tinham saído para o mercado. Foi um prémio pelo meu trabalho como enóloga para outras empresas. Também tive outro reconhecimento no ano passado, quando o meu projecto pessoal foi reconhecido como Produtor do Ano pela nova equipa da Revista de Vinhos.

 

No mundo atual, não basta só produzir boas uvas e saber transformá-las. É também necessário saber vender vinho e saber cobrar. Ser enóloga também implica estar atenta ao mercado?

Sim. Isso é muito importante. Podemos ter o melhor vinho do mundo, mas se não o soubermos divulgar, se não tivermos uma equipa que saiba transmitir o que estamos a fazer, vender será mais difícil. Como comunicar é importantíssimo, é também essencial encontrar um distribuidor que perceba o projeto e o saiba transmitir às pessoas a quem vende o vinho.

 

Mas também comunica diretamente com os seus clientes e consumidores?

Sim. Hoje estou em Lagos, no Algarve, para estar com consumidores finais, e também clientes de restaurantes e garrafeiras, para comunicar com eles, mas também para escutar a sua opinião sobre os meus vinhos e responder às suas perguntas, o que é, também, uma forma de aprendizagem.

 

O que é que tem de fazer para estar sempre atualizada em relação às tecnologias mais recentes, os vinhos que se vão fazendo e consumindo no mundo, as características e os gostos dos consumidores de cada mercado?

Procuro provar o maior número de vinhos possível cá e lá fora. Tento também viajar muito, o que faço por causa dos meus compromissos profissionais, mas também para visitar outras zonas vitivinícolas e conhecer outros produtores, procurando sempre manter uma mentalidade aberta, para aprender o que se faz noutros países

Provo muitos vinhos e sempre que algum deles, por algum motivo, mexe comigo, seja português ou estrangeiro, tento sempre visitar quem o faz. Isso aconteceu-me, por exemplo, há três ou quatro anos, com o vinho branco do Dominio del Águila, Ribera del Duero, em Espanha, que provei às cegas e me fascinou. Nunca tinha ido à região de Ribera del Duero. Mas como é uma zona quente, de tintos, fiquei logo curiosa em saber como é que era possível fazer ali um branco daqueles. No dia seguinte fui comprar uma garrafa para ver se era o mesmo, bebi o vinho e, depois, fui visitar o produtor, para perceber como é que tinham feito aquele vinho, com aquelas características. Esta curiosidade faz-me aprender e evoluir.

 

O que é para si um grande vinho? Quais são as virtudes que deve ter?

O conceito de um grande vinho está, para mim, associado à sua longevidade. É algo que quase me obcecava quando comecei o meu projeto pessoal, enquanto procurava uma vinha que me permitisse fazer vinhos que pudesse guardar bastante tempo em garrafa. Mais brancos do que tintos, porque adoro vinhos brancos envelhecidos em garrafa. Mas tive sempre a consciência de que só uma grande vinha consegue dar origem a vinhos com essa longevidade. Nós temos, depois, de ser sérios e conscientes na adega, trabalhando essas uvas para que o vinho mantenha essa capacidade de guarda. Por isso, um grande vinho, para mim, é aquele que sei que vai durar 30 anos em garrafa e vai estar ótimo, quando o provo hoje.

 

Qual é a filosofia por detrás dos seus vinhos? 

Procuro sempre dar prioridade à vinha, ou seja, àquilo que cada uma delas produz. Tenho 12 referências diferentes para uma produção média anual de 35 a 40 mil garrafas, porque faço vinho por parcelas e não as misturo.

A maior parte das vinhas que utilizo são muito velhas, com mais de 85 anos. Cada uma delas têm uma identidade própria, que resulta da sua mistura de castas. É esse o meu foco: nunca perder a identidade de uma vinha. Como eu e a minha equipa temos o privilégio de trabalhar com elas, todo o trabalho que fazemos na adega visa potenciar as características de cada uma. Por isso, nunca uso barricas novas e tecnologias agressivas, porque o que é importante, para mim, é levar, para a garrafa o melhor que cada uma das vinhas produz em cada ano. É essa a minha filosofia de trabalho: cada vinho representa uma vinha diferente.

 

Isso implica ter feito mais investimento na adega, em termos de cubas, para que consiga fazer os vinhos de forma separada.

Sou muito pouco interventiva na minha adega, onde há apenas uma prensa vertical, que também é usada para os brancos e um equipamento de frio básico, tal como o resto. É verdade que tenho muitas cubas, sempre cheias, porque não quero misturar nada. Depois, cada um tem o seu recipiente, porque uns são feitos em tonéis, outros em ânforas, mas sempre de forma a que respeite a identidade das vinhas. É uma filosofia e uma metodologia que requer muito mais trabalho e dedicação do que se pegasse nas uvas de todas as vinhas e as misturasse para fazer somente um vinho.

 

Histórias que vendem

 

Mas também tem de criar as histórias de cada vinho, que são essenciais para os vender. Faz isso?

A verdade é que estou sempre a ter novas ideias, devido a vinhos que vou provando ou por outras razões, e os novos vinhos vão surgindo de forma natural. De tal forma que os meus distribuidores me dizem para parar de inventar vinhos.

Um dos meus vinhos chama-se Procura, porque andei à procura das vinhas velhas, o que me custou bastante, sobretudo, porque foi necessário que os seus proprietários acreditassem em mim e me passassem a vender as suas uvas. Hoje, são as mesmas que em 2011, quando comecei o meu projeto. E já não preciso de as procurar, porque já são as vinhas que me procuram, ou seja, há pessoas mais velhas ou os filhos e netos de quem tomava conta delas, que me telefonam para me contarem as suas histórias e perguntar se eu quero gerir as suas vinhas, ou porque estão demasiado velhos para fazerem o seu maneio, ou, no caso dos seus filhos ou netos, têm outras coisas para fazer. E eu vou às suas vinhas e, se gosto delas, sou incapaz de dizer que não, porque é algo de que gosto imenso e também é importante preservar este património e valorizá-lo.

 

Quais os principais mercados de exportação? Como é que comunica com os seus clientes desses mercados?

Vendo 40% para exportação. O Brasil é, e sempre foi, muito importante, tal como a Suíça, Inglaterra e Espanha. Mas não tenho muitos mercados, porque tenho uma equipa muito pequena, com quatro pessoas, e sempre preferi ter poucos e focar-me pessoalmente em ajudar quem me vende neles os vinhos. De outra forma seria difícil fazer isso.

Atualmente, tenho as vendas estabilizadas para os meus mercados, que absorvem todos os vinhos que produzo. Os Estados Unidos, onde estou a trabalhar com o distribuidor atual há dois anos, é também um mercado muito bom.

 

Ou seja, toda a sua produção é absorvida, mesmo quando cria coisas novas?

Sim, talvez porque são quantidades muito pequenas, que despertam sempre o interesse dos mercados. Também tenho a sorte de trabalhar com distribuidores que percebem o meu projeto e o conceito, e sabem quais são os melhores vinhos para cada um dos seus clientes.

Quando comecei a trabalhar como produtora, era enóloga e já sabia como funcionam os mercados. Para tudo correr bem é preciso não estarmos pressionados e trabalhar com as pessoas certas em cada um deles. Eu também nunca os pressiono e as coisas vão acontecendo de forma muito natural.

 

O que é que considera essencial para a sustentabilidade das vendas de uma determinada marca de vinhos em Portugal e nos mercados externos?

Sempre ter qualidade e consistência. É muito importante termos a consciência de que uma marca demora tempo a construir — sobretudo a ganhar a confiança das pessoas — e pode ser destruída muito rapidamente.

Temos de ser sérios e trabalhar sempre com uma qualidade, sem nunca dececionar os clientes, seja o nosso distribuidor, restaurante ou garrafeira, ou o cliente final, que está a beber aquela garrafa de vinho que produzimos.

Imagino o que era alguém comprar uma garrafa à espera de ir apreciar uma coisa especial e ficar decepcionado depois de a abrir. Tem é de ficar feliz e satisfeito.

 

Quais são as principais virtudes que um enólogo tem de ter?

Eu acho que tem de ter uma combinação perfeita entre o conhecimento técnico, o que o obriga a estudar, porque as coisas evoluem e mudaram muito desde que eu tirei o curso até agora. Ou seja, tem de haver uma combinação perfeita entre um conhecimento técnico, que deve ser profundo, com a parte mais criativa deste universo, onde não pode ser tudo tecnologia, porque isso pode levar a que os vinhos fiquem sem alma, e esta é fundamental. É preciso ter muito conhecimento técnico para poder ir mais além e fazer vinhos excecionais. Mas isso não é possível sem que haja uma vertente criativa. Como cada um tem a sua, isso contribui para que os vinhos possam ser diferentes de enólogo para enólogo, porque isso tem a ver com a forma que cada um tem de interpretar as vinhas, as suas uvas e tudo o resto.

 

Qual é o seu tipo de vinho preferido e com que tipo de comida é que o gosta de apreciar?

Eu não tenho um tipo de vinho preferido. Eu gosto, e sempre gostei, de provar tudo. Claro que há vinhos que aprecio mais. E há aqueles que não gosto e não bebo, como vinhos naturais estragados. Isso até pode fazer com que deixe de ir a determinado restaurante, que só vende esse tipo de vinhos, que só sabem a vinagre. Prefiro pedir uma cerveja.

Tirando isso, não gosto muito de vinhos doces. Não estou a falar de licorosos nem fortificados, mas daqueles que têm açúcar residual, porque gosto de vinhos secos.  Sobretudo de brancos, mais novos ou com evolução em garraf, e de tintos mais encorpados. Mas isso depende também do momento, da comida, do estado de ânimo. A minha referência, talvez por ser espanhola, pelo qual tenho fetiche, é o Vega Sicília. É o meu vinho favorito, mas não o posso beber todos os dias.

 

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