A sabática de Carla Rodrigues

Foi num período de insatisfação profissional que Carla Rodrigues, managing partner da MEC, decidiu fazer uma sabática de quatro meses. Valeu a pena? O testemunho na primeira pessoa

Carla voltou de Timor Leste com uma nova motivação.

Há muito que a ideia de uma sabática fazia parte dos sonhos da managing partner da MEC. Viajar é uma paixão antiga e escapar por uns tempos ao ritmo alucinante dos seus dias era um cenário idílico. Porém, nos tempos que correm não é fácil pensar numa sabática, a menos que se esteja numa fase em que se coloca tudo em causa, como aconteceu a Carla no final de 2014. Uma desilusão profissional provocou um abalo no seu mundo e empurrou-a para a decisão que tanto adiara, com todos os riscos que isso implicava. Hoje, Carla Rodrigues não tem dúvidas: “Esta frustração transformou-se na melhor oportunidade profissional e pessoal da minha vida o que demonstra que o que às vezes parece o fim do mundo, muitas vezes abre-nos portas”. Leia o seu testemunho na primeira pessoa e veja o que a sabática mudou na sua vida.

A DECISÃO

“Tirar uma sabática era um sonho antigo, sempre trabalhei para viajar e é esse o meu grande objetivo de vida. Há quem trabalhe para ter uma casa melhor. Eu trabalho para viajar a cada oportunidade e é essa a herança que quero deixar aos meus filhos.

Todos  os anos quando viajava encontrava pessoas que deixaram tudo ou que tiraram uma sabática para viajar e ficava com uma pontinha de inveja, mas sabia que um dia iria fazê-la.

Quando deixei de acreditar que valia a pena tanta dedicação à empresa, as horas que tiro da minha família… deu-se a viragem.

Sempre que voltava de férias, ou lia os bloggers de viagem (o meu anti-stresse quando chego exausta do trabalho) que deixaram tudo para viajar, pensava “Vou fazê-lo!”, mas quando pensava em implementá-lo só via dificuldades. Em Portugal quase não se fala disso, é mal visto, e com o volume de trabalho, falta de escala e de recursos humanos uma sabática nunca seria aceite ou, ainda pior, poderia comprometer para sempre o meu sucesso profissional e colocar-me um carimbo que me impediria de evoluir profissionalmente, logo desistia outra vez do sonho.

Carla Rodrigues

Assim que chegou a Topu Honis Carla percebeu que ia valer a pena.

No final de 2014 tive uma grande desilusão profissional o que me fez colocar tudo em causa. Tinha lutado para objetivos muito específicos de crescimento profissional e sem grandes explicações na minha empresa decidiram que afinal esse não ia ser o caminho. Sobre mim instalou-se uma forte desmotivação, deixei de acreditar que valia a pena toda a dedicação que tinha dado à empresa, todas as horas mal dormidas, as horas que tiro da minha família… e foi aí o grande ponto de viragem.

Decidi parar e ver o bom da situação e descobri que manter o meu cargo era algo que me podia permitir realizar o meu sonho.

A primeira reação foi a raiva. Pensei “não vale a pena, vou mudar de empresa, vou para fora….” e tudo esteve mesmo quase a acontecer. Mas nos momentos em que a decisão estava quase havia algo a dizer-me que nunca se deve tomar decisões destas por raiva ou frustração.

Assim resolvi parar e tentar encontrar o bom de tudo isto. Era verdade que os últimos três anos tinha lutado para um caminho, mas se o caminho mudou eu tinha que encontrar forças para este novo. Assim descobri que manter o meu cargo era algo que me permitia fazer o trabalho sem ter que sair da minha zona de conforto e que isso me podia permitir realizar o meu sonho.

Quanto mais cedo pensei, mais cedo passei para a prática. O meu marido apoiou-me na minha decisão, mesmo sabendo que ela poderia incluir um despedimento. Uma semana depois estava a falar com as minhas chefias.

A PREPARAÇÃO

A preparação foi longa, cerca de nove meses. A nível profissional, o compromisso que fiz com a empresa foi deixar tudo preparado para a minha ausência – antecipar trabalho, deixar uma equipa preparada e informar os clientes. Uma vez que a viagem implicava quatro meses fora (sem vencimento) foi preciso planear muito bem as despesas, os percursos e, claro, os planos do que queria fazer, para não perder quatro meses e sim ganhar uma experiência única.

Acabei por ter a total compreensão das chefias, mas avisaram-me que no regresso poderia não ter o meu lugar.

As minhas chefias não tiveram uma reação de aceitação imediata, mas acho que fui a primeira pessoa a falar disto, em todo o grupo. Deixei claro que era algo que iria fazer independente da aceitação ou não da empresa, podia era adiar.

Uma semana mais tarde tinha a aprovação e a total compreensão das chefias. Claro que me avisaram que poderia não ter o meu lugar quando voltasse, mas nos tempos que correm ninguém pode prometer nada.

Eu também sabia que esta viagem iria originar em mim uma pessoa muito mais feliz, motivada, coisa que nos últimos dois meses eu não era para a empresa e isso só iria melhorar a minha performance e de toda a equipa que eu coordeno. E sabia que nos nove meses que me separavam do meu sonho eu iria trabalhar a todo o gás para justificar a 500% esta licença.

AS REAÇÕES

As reações foram impressionantes pela positiva. Nos meus colegas tive todo o tipo de reações: surpresa, admiração, sensação de que eu estava no limiar da loucura e, curiosamente, muitas pessoas preocupadas em que eu perdesse o emprego e a convencerem-me a tomar medidas para prever isso.

Mas a reação mais impressionante que tive foi dos meus clientes, em que todos, sem exceção, elogiaram e incentivaram e, muitos até anteciparam trabalhos, para tudo ser mais tranquilo na minha ausência. E relembro que trabalho numa empresa de serviços em que se espera que se esteja do outro lado sempre sem exceção.

Todos me apoiaram e incentivaram, as chefias, os clientes, a minha equipa e a família.

Todos me incentivaram e demonstraram um carinho e uma preocupação excelente. Tive muitos clientes que me ligavam durante a licença apenas para saber se estava bem e como estava a correr tudo, sem tocarem sequer no tema trabalho.

Carla Rodrigues

Envolver as crianças nesta experiência também foi muito enriquecedor para os dois filhos de Carla.

A minha família também achou que eu estava louca e que ia deitar tudo a perder que tinha construído até hoje, mas apesar de nos olhos lhes ver isso, apoiaram-me em cada segundo e motivaram muito

Houve algumas reações mais surpreendentes tanto pela negativa como pela positiva. Houve  casos de comentários do género “se fosse eu não a deixava ir”, “parece-me pouco profissional”, “se pode estar quatro meses fora é porque não é necessária”… mas o curioso é que mesmo quando esses comentários me eram dirigidos havia sempre alguém que saltava em minha defesa.

Os mais positivos foram da minha equipa que apesar de saber que a minha ausência iria gerar mais trabalho para quem ficava, me apoiou sempre e muito genuinamente e me incentivou sempre a partilhar a experiência no meu blogue. As minhas chefias são também de elogiar, pois desde que aceitaram em nenhum momento me pressionaram ou tentaram que eu adiasse ou desistisse. Nunca fizeram nenhum tipo de pressão ou chantagem, e até ajudaram em termos logísticos, para tudo correr pelo melhor.

A preparação roubou-me muitas horas de sono pois havia muito a decidir.

Os meus filhos reagiram com excitação total. No último período já só falavam disso e foi difícil conter a excitação nos últimos meses pois todo o chip já estava formatado para os procedimentos e preparação.

A ESCOLHA 

A preparação é gigante e confesso que passei horas a fio a navegar pela internet e as minhas horas de sono desde que decidi até que fui reduziram muito, muito, pois havia muito a decidir. O local foi decidido por exclusão de partes. Ao principio eu ia sozinha com as crianças (o meu marido só decidiu juntar-se a nós depois de muitas decisões já terem sido tomadas) e preferia a Ásia, porque é mais seguro e no Verão (tinha que ser neste período por causa das férias escolares) a maioria dos países estão em monções por isso muitas opções ficaram descartadas.

Primeiro, pensei ir para a Indonésia pois já tinha lá estado e considerei um país maravilhoso e seguro, mas faltava o fator novidade e um país que precisasse mais. Curiosamente, foi o meu marido que se lembrou de Timor Leste por ser ex-colónia  e por ser um dos países mais pobres do mundo. No dia em que me deu a ideia eu decidi que era para aí que iria fazer o voluntariado, apesar de não saber nada do país, nada mesmo!

Comecei a investigar ONG, pois não queria nenhuma grande que já tivesse muitos apoios, mas uma organização local e que realmente precisasse mais.

Pedi ajuda à embaixada, consulado, ao governo de Timor, mas não tinha respostas de ninguém e muitas vezes parecia um país fantasma. Só quando lá estive é que percebi que uma grande parte do pais nem telefone ainda tem, quanto mais internet. As respostas tardavam e não parecia encontrar nenhuma instituição quanto mais uma que me aceitasse a mim e aos meus dois filhos para ajudar.

Ao princípio tudo é uma excitação, mas ao aproximar-se do dia havia um mix feeling gigante sobre o desconhecido.

Numa das noites de insónia e a navegar pela internet, encontrei uma reportagem sobre um combate do povo timorense na ocupação da Indonésia e nessa reportagem falava de um padre herói de guerra que tinha mantido a salvo uma zona de Timor Leste  (ainda hoje metida no meio da Indonésia, mas independente) e toda a sua população e que tinha uma pequena organização Topu Honis.

Carla Rodrigues

Às compras com o marido, que também alinhou na aventura.

Fui logo procurá-la e apaixonei-me por cada foto que vi. Enviei um e-mail e esperei ansiosamente uma resposta que chegou no dia seguinte, vinda de uma americana que se apaixonou por esta instituição e a ajuda até hoje gerindo o site e fundos. Foi ela a minha salvadora e quem me ajudou a organizar tudo para fazer o voluntariado. Ela própria primeiro fez um voluntariado e depois acabou por adoptar duas meninas lá e a ligação à instituição, que vive sempre no limiar da sobrevivência, é constante.

O PRIMEIRO IMPACTO

A chegada ao orfanato foi uma emoção enorme e um sentimento de estarmos perdidos, pois nos primeiros três dias estivemos completamente sozinhos no orfanato e ganhar a confiança das crianças não foi nada fácil. Nesse período fomos completamente inúteis e não conseguíamos dar as aulas de inglês, nem português, pois eles desmotivavam, aborreciam-se. Percebemos rapidamente, mas a muito custo, que o que tínhamos planeado estava muito longe das necessidades deles e tivemos que nos reinventar em real time. Confesso que os nossos filhos ajudaram muito neste processo, pois apesar de terem a barreira da língua, têm zero preconceitos e uma criança em Timor gosta do mesmo que uma em Lisboa. Assim alterámos tudo, repensámos tudo e adaptámo-nos à realidade, até conseguirmos claramente esgotar a nossa criatividade.

Foi duro também em muitos momentos não termos coisas a que nunca damos valor, pois sempre as tivemos e quando estamos sem elas é que percebemos como são úteis e como sabem bem: sanitas, um chuveiro, um autoclismo, privacidade, uma cama só para nós. Estes pensamentos colocavam-nos numa zona de futilidade absurda, mas que não conseguíamos controlar. Sonhava todas as noites com a minha banheira, e o gesto repetido de tocar num autoclismo e não carregar baldes.

Mas também percebemos que a felicidade não vem dessas coisas e estes quatro meses foram dos mais felizes da minha vida.

A gestão do Father Richard deixaria muitos executivos de topo envergonhados.

Viajar com um budget muito concreto e aparecerem coisas de última hora e imprevistos que nos obrigam a rever os planos, a alterar destinos, rever dormidas, mudar opções, é também um processo de total reinvenção diária e que nos obriga a uma constante mudança e adaptação a nova realidade

AS SURPRESAS

Podia escrever horas sobre isto mas vou apenas enumerar as quatro coisas que realmente mais me surpreenderam:

. a primeira é uma questão familiar. Antes de ir todos os dias pensava: e como vão ser estes meses 24/7 com a minha família, todos os dias, todas as horas, será que me vou cansar? Irei precisar de espaço? E se nos chateamos? Mas é impressionante porque nunca nos chateámos, mesmo nos momentos de maior tensão, pois nesses momentos algum dos quatro tinha uma alternativa ou soltava uma gargalhada da situação. Esta sabática aproximou-nos imenso e demonstrou que o stresse do dia a dia, a falta de tempo, os problemas fúteis do dia a dia criam muito mais tensão do que qualquer problema que nos assombrou nestes meses. E isso é uma lição que levo para a vida, pois muitas vezes são 8 da manhã e já estamos aos gritos de quem leva os miúdos, quem os vai buscar, a medir quem tem mais trabalho, a zangarmo-nos com o senhor que estacionou no sitio errado, ou com o cliente que pede tudo para ontem. E quando estamos a lidar com problemas muito piores, temos a calma e a tranquilidade de rir ou encontrar uma solução, só porque não estamos com o síndroma do stresse em cima de nós, ou porque estávamos a fazer algo que realmente desejávamos; ou até mesmo porque conseguimos relativar os problemas muito mais, pois vimos coisas que ultrapassam muito os problemas fúteis do dia a dia.

Carla Rodrigues

Em Topu Honis a leitura de histórias era um dos momentos altos do dia.

– a segunda, é que encontrei num orfanato, longe de toda a tecnologia e literalmente no fim do mundo, o líder que mais me inspirou e mais colocou todas as minhas ideias em questão. A liderança e as ideias progressistas do Father Richard que criou e gere o Topu Honis fez-me apreender que os melhores lideres se podem encontrar nos sítios mais improváveis. A gestão baseada na auto responsabilização que ele tem montada nas duas instituições que gere iam deixar muitos executivos de topo envergonhados.

– a terceira, é que o primeiro passo para cumprir os nossos sonhos é sonhar, acreditar e arriscar, pois não há impossíveis; só existem impossíveis se não tentarmos. E que passar a vida a chorar pelos cantos, a invejar a vida dos outros ou a ser infeliz com a nossa vida só nos vai fazer infelizes. Está nas nossas mãos termos o melhor da nossa vida e lutar para que as coisas aconteçam.

– a última, é que os seres humanos são bons na sua generalidade e nós tivemos mil provas disso. Quando começámos a perceber que estávamos a gastar mais do que prevíramos e tivemos de trocar de casa quase em cima da hora, houve sempre pessoas que mesmo sem saberem se algum dia virão à nossa casa em Portugal nos ofereceram a sua, o que facilitou muito – este ano vou receber muitos deles aqui em Portugal o que também é muito agradável. Fizemos amigos em muitos países que vamos rever este ano e que têm uma capacidade magnífica de partilha, de improviso e de vontade de conhecer o mundo.

Além disso, todas as pessoas que acompanharam o nosso blog e que sempre que nos apaixonamos por mais um projecto juntaram dinheiro para o apoiar, mesmo estando longe e sabendo que não iriam receber os louros – na verdade, acabámos por nos apaixonar por outra instituição na Indonésia.

Depois de voltarmos o coração ficou uma parte em Timor e amigos e conhecidos tudo têm feito para continuarmos a ajudar a Topu Honis sem mesmo terem lá estado. Têm-nos apresentados a outros amigos, que tinham outros amigos e foi assim que conseguimos espaço num contentor para enviar bens para Timor. Um contentor que demorou cinco meses a chegar a Timor! Esta capacidade de entreajuda sem interesse é algo que já tinha esquecido que existe

O BALANÇO

Podia facilmente dizer que tudo mudou quando regressámos, mas também não é verdade. Mas há coisas que nunca mais vão ser as mesmas. A relação com os meus filhos mudou muito, baixei a exigência stressante  e motivo muito mais a experiência e até o desafio do que consideramos que tem que acontecer. Reorganizámos completamente o dia a dia deles neste último ano e quase a chegar ao final do ano acho que a avaliação é muito positiva. Colocámos muitas coisas em causa e repensámos muito a opção das 9 às 20h na escola, isso acabou mesmo. Não quer dizer que deixámos de trabalhar, mas encontrámos outras alternativas que nunca tínhamos pensado antes por falta de tempo ou abertura mental.

Carla Rodrigues

Um jogo de futebol arbitrado pelo marido de Carla.

Tudo agora é mais relativizado quando comparado com muita coisa que vimos e vivemos. Há tanta coisa que achamos que é o fim do mundo e está tão longe do ser.

Profissionalmente mudou tudo. Voltei feliz, realizada e com tranquilidade mental e claro mais madura, mais ponderada. O crescimento profissional, as promoções deixaram de ser a minha meta e obsessão. Valorizo agora muito mais a experiência, o ser feliz cada dia no trabalho, o fazer coisas diferentes, de forma diferente. O meu objetivo profissional agora é ter experiências que me enriqueçam a mim e às pessoas com quem trabalho e que consiga ser alguém que inspire as pessoas à minha volta e que me inspire com quem trabalho – muito mais do que um cargo, ou uma ascensão profissional, pois isso para mim perdeu todo o interesse.

A vida é muito curta e o que levamos dela são estas experiências e a felicidade de fazer algo que nos dá prazer em cada dia. Não me voltei a deitar nunca mais a pensar que dia horrível tive, odeio isto tudo. Tenho todos os dias a obrigação de encontrar algo que me dê prazer, por pequeno que seja e isso está a fazer de mim muito melhor profissional, mãe, mulher, amiga.”

O QUE PONDERAR ANTES DE FAZER UMA SABÁTICA

“Não pense muito, prepare um plano de ação e coloque-o em prática. Pense sempre que há riscos e que tem que ser algo que quer muito fazer e não apenas porque é giro. O mais importante numa sabática é fazer algo que sempre desejou e nunca conseguiu fazer porque só isso a vai realizar. De outra forma corre o risco de a frustração de não ter feito nada ser gigante e ter colocado tudo a perder para nada.

Para a fazer tem que se estabelecer compromissos com a empresa e cumpri-los e ter abertura para perceber que a empresa não pára à nossa espera e quando voltamos ela também evoluiu. Mas se somos competentes e comprometidas vão existir sempre soluções, na empresa atual ou noutro sitio.

As sabáticas não existem porque um grupo de preguiçosos as inventaram, existem porque realmente está provado que melhoram a qualidade de vida e permitem criar uma abertura de espirito única. E nem que seja pela descoberta do que é ter tempo, muito tempo vale a pena a experiência.”

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