Texto de Paula Rios, jurista e profissional de seguros
“Joana fecha os mails, e suspira. Já era esperado, mas então porque é que lhe custa tanto? Este ano não há festa de Natal da empresa, vão fazer algumas iniciativas on line para tentar fazer as pessoas sentirem-se mais perto umas das outras, mas como pode alguém pensar que esses momentos únicos de convívio, de alegria e emoção partilhada, de folia, em que pessoas que trabalham juntas todo o ano finalmente se juntam, para celebrar e se divertirem, pode ser substituído pela frieza de um evento digital? Onde ficam as luzes, o jantar durante o qual se revêem colegas que não se vêem durante o ano, se contam histórias do ano que passou, se fala dos filhos, das viagens, dos projetos… onde estão as luzes, o champanhe a música, os chapéus coloridos, a dança, aqueles preguinhos deliciosos que chegam já de madrugada para confortar o estômago dos mais resistentes…
Joana já viveu muitas festas de Natal nas empresas por onde passou, durante uma já longa carreira. A carreira que sonhou, pensa, nos bancos da faculdade, e a vida foi generosa. Recosta-se na cadeira, o laptop já desligado, e recorda a primeira de todas, certamente a mais especial, pois foi nessa que conheceu o homem com quem viria a casar, o pai dos seus filhos. Revê mentalmente a fotografia, de alguma forma premonitória, que lhes tiraram nessa mesma noite, acabados de se conhecer, jovens e bonitos, o brilho da esperança no olhar, na imagem já pairando uma cumplicidade no ar, um prenúncio duma história de amor bonita e forte, que como tantas outras não acabou bem, mas teve muitos momentos felizes e, afinal, pensa, não é a vida apenas e tão somente um conjunto de momentos?
Pensa no ano que está a terminar, um ano estranho, o ano da pandemia. Os meses de confinamento, a brutalidade do “agora vamos todos para casa”, as ruas vazias de carros e de gente, fantasmagóricas, o escritório, quando lá ia, uma sucessão gelada de vidro transparente e sem alma, a alma que lhe dão os colaboradores, as intermináveis reuniões de Zoom e Microsoft Teams e o que seja, viver através do telefone, dos mails, a alegria do reencontro com alguns colegas aquando dum breve e controlado regresso parcial, o voltar a “fechar”… e agora, o Natal, este Natal sem tardes de fim de semana, sem confusões natalícias, sem passeios na Baixa para ver as luzes. Parece que nada tem brilho, porque tudo é vivido através de uma máscara, e com o eterno medo do contágio.
Joana sabe, já percebeu que, por muito que passe a pandemia — e há-de passar, que raios, já estão a dar a vacina em vários países, e vai cá chegar em Janeiro — nada voltará a ser como dantes. De vários especialistas, que lê e ouve, sabe que o teletrabalho é algo incontornável, que veio para ficar. E, por um lado, Joana acha que tem aspectos positivos, como uma maior flexibilidade. Mas, pensa, para mim nunca pode ser total. Preciso de estar com gente, de sentir gente… leu, recentemente, que o escritório vai ser um espaço completamente distinto, reestruturável e reorganizável, em que já não haverá lugar para todos os colaboradores porque nunca mais estarão lá todos ao mesmo termpo. Será, também ouviu, não um espaço de trabalho puro e duro, mas essencialmente um espaço de convívio, e de partilha dos valores e cultura da empresa. E pensa – se este afastamento nos custa a nós, que vivemos a empresa tantos anos, como será para os jovens, que estão a ter a sua primeira experiência laboral, sem realmente a terem, num aspecto tão importante que é a vivência do dia a dia no escritório, de solucionar as mil e uma questões que se colocam de relacionamento, de aprender a transigir, enfim, aprender a viver naquele ecosistema tão particular que é uma empresa… será que tudo isso terminou? Joana recusa-se a acreditar. Mudou, sim, mas não terminou. Não pode. Algo vai ter de ficar desses dias, meses, anos de convívio que de um momento para o outro desapareceram, como por um passe de magia dum feiticeiro maldoso, invejoso, que não suportou ver os seres humanos juntos e felizes, porque felizes éramos, sem o saber…
Anoiteceu. Anoitece tão cedo, em Dezembro, e ainda mais nestes dias cinzentos, em que não se vê um raio de sol. Da escuridão de dentro da sua casa e da sua alma, Joana vislumbra as luzes da ávore de Natal do vizinho do prédio da frente, que pisca, alegremente, como para lhe recordar que o Natal não acabou, que o Natal ainda existe, por muito que este ano seja diferente. Mesmo sem grandes reuniões, sem os beijos e abraços do costume, enquanto uma família puder celebrar o nascimento de Jesus, com saúde e paz, então vai ser Natal. E Joana dá graças a Deus, porque ela e a família vão estar juntos, poucos, é certo, mas juntos, e – murmura uma prece silenciosa – com saúde, num Natal diferente, mas sempre Natal.
Joana regressa, por uns momentos, às festas de Natal das empresas, da sua actual empresa, esses momentos de descontracção em que se (re)descobriam afinidades, recordavam desafios partilhados e vencidos, se agradecia pelas vitórias alcançadas e se estabeleciam metas futuras, entre o brilho de luzes e o tilintar dos flutes de chamapnhe, entre a riqueza dos tecidos dos vestidos das mulheres, empoleiradas nos seus saltos impossíveis, e a sobriedade e elegância dos fatos escuros dos homens, e recusa-se a deixar invadir pela nostalgia, pela saudade do que já foi e não volta mais. O passado, com os seus momentos inesquecíveis, já não regressa, mas para o ano, acredita, vai voltar a haver festa de Natal.”
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