Texto de Paula Rios, jurista e profissional de seguros
Verão, tempo de férias, o único tempo de ler para alguns – não para mim, que, leitora compulsiva, ando sempre com um livro atrás; a leitura é aquela evasão necessária, a viagem no tempo e no espaço que nos leva para além do nosso quotidiano. Mais ainda, nos tempos incertos que atravessamos, em que faz bem melhor deixar-nos levar pela fantasia do que checar, pela milionésima vez, a percentagem de aumento do número de infetados por Covid-19 em Portugal e no mundo.
D. Manuel I – Duas Irmãs para um Rei, de Isabel Stilwell (Esfera dos Livros), é o livro de que se fala. A autora que tornou o romance histórico algo muito português. Curiosamente, o ritmo e a forma como escreve recordam-me os muitos romances históricos que li em inglês na minha juventude, e que me despertaram o gosto por este tipo de literatura, que não mais me abandonou.
De Isabel Stilwell já li todos – desde “D. Filipa de Lencastre”, passando por “D. Teresa” até às duas “Donas Marias”, rainhas com o mesmo nome, mas em tudo tão diferentes, e não apenas pelo tempo que lhes tocou viver.
Acho que posso falar em nome de todos os leitores de Isabel Stilwell quando digo que o facto de escrever um livro sobre um homem – o Rei D. Manuel I – nos surpreendeu, mas depois de o ler constato que afinal não é bem assim, ou melhor, não é apenas assim. O livro é, efetivamente, sobre D. Manuel, e dá-nos a conhecer uma faceta desconhecida do nosso rei mais “Venturoso” – afinal o que sabíamos dele era o que tínhamos aprendido nos livros de História, sobretudo a sua ligação aos Descobrimentos – mas também é, e muito, como são os livros desta autora, um livro sobre mulheres fortes, determinadas, mulheres que triunfaram num mundo hostil, feito para homens, apesar das muitas desvantagens que o seu género lhes impunha.
E o livro é surpreendente por isso e por muito mais. No que respeita a D. Manuel, mostra-nos um homem cauteloso, que cresceu num ambiente cheio de perigos; um homem apaixonado que, contra as suas convicções, inicia a perseguição dos judeus em Portugal para conseguir casar com a mulher que ama, Isabel de Castela, filha dos reis Católicos; um homem destroçado pelo desgosto, mas que não se deixa abater; um homem que encontra na segunda mulher (irmã da primeira) a companheira de vida que o vai apoiar nos seus grandiosos empreendimentos, e assegurar a descendência, dando-lhe nada menos que dez filhos!
Mas D. Manuel é, também, um homem que respeita profundamente as mulheres, não só como marido fiel, mas sobretudo tendo-as em grande consideração, ouvindo as suas opiniões e confiando na sua inteligência. Em momento algum as relega para uma posição inferior, como tantos outros reis dessa e doutras épocas o fizeram. Algo que não é de espantar, tendo em conta que a sua mãe, D. Beatriz, Duquesa de Viseu e Beja, foi uma das mulheres mais influentes do seu tempo, intervindo de forma hábil na política do reino.
No livro encontramos mulheres indómitas; para além da mãe de D. Manuel, temos a grande Isabel a Católica, rainha de Castela, que lutou pelo trono de forma implacável e o manteve da mesma forma, conseguindo finalmente expulsar os “infiéis” da Península Ibérica. Apesar da sua intransigência religiosa, é uma mulher admirável, e ao mesmo tempo que rainha é humana; uma mulher apaixonada pelo seu marido, que sofre com as suas traições; e uma mãe dedicada aos seus filhos. São notáveis, as suas filhas: Isabel, primeira mulher de D. Manuel, que morre em consequência do parto do primeiro filho, e Maria, a segunda, que ao contrário da irmã dá à luz dez crianças, além de Joana, a Louca, e da famosa Catarina de Aragão, primeira mulher do Rei Henrique VIII de Inglaterra.
Mulheres tanto mais extraordinárias, quanto a cruz das gravidezes, que não podiam impedir, e o risco de vida de cada parto, que era elevadíssimo, em nada as impediam de ambicionar o poder, ou de apoiar os seus maridos, ou filhos, na luta constante pelo mesmo. Hoje parece-nos impensável, a nós, mulheres nascidas na segunda metade do séc. XX, a quem a pílula libertou do espectro das gravidezes indesejadas, a vida de uma mulher como a Rainha D. Maria, segunda mulher de D. Manuel, que dos seus 35 anos de vida passou quase dez grávida. E dificilmente as mulheres se podiam rebelar contra esse seu destino, de casar e ter filhos, pois não passavam de peões no jogo de xadrez político jogado pelos seus pais, irmãos e maridos.
Curiosamente, o livro que estou a ler agora é, também, sobre mulheres. É o primeiro volume da obra Portuguesas com História, de Anabela Natário (Temas e Debates), e conta-nos a história de mulheres portuguesas dos séculos X a XIII que se distinguiram por algum motivo. Entre elas, a nossa já conhecida D. Teresa, e muitas outras, mas há uma história que me impressionou pela sua originalidade. Trata-se de uma nobre portuguesa de nome Maior Dias, que se recusou a casar porque “…apenas pretendia que nenhum homem fosse proprietário do seu corpo…”, optando por viver num convento, mas não tomando o hábito. A sua opção foi no sentido de “vestir os chamados ‘panos de segurança’”, uma situação que implicava o retiro num convento sem abraçar a vida monástica ou renunciar aos seus bens. Num tempo em que as mulheres eram frequentemente forçadas a casar contra a sua vontade, ou vítimas de vários tipos de violência, Maior escolheu a proteção do convento, mas manteve a sua liberdade. Fiquei estupefacta com esta história – não conhecia a solução por ela encontrada, mas não posso deixar de admirar a coragem de, no séc. XIII, não se conformar com o destino que a ia tornar propriedade dum marido, escolhendo a liberdade.
Afinal, as histórias acabam por ser sempre histórias de mulheres. Existe aquela célebre frase que diz que “por detrás de um grande homem há sempre uma grande mulher”. Talvez tenha sido assim no tempo em que as mulheres – com exceção de algumas, como vimos – precisavam de se afirmar através dos homens. Hoje, felizmente, pelo menos no mundo ocidental, já não é preciso. As mulheres são livres, valem por si, e as suas histórias também.
Boas leituras, e boas férias!
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