Texto de Paula Rios, jurista e profissional de seguros
O Pedro tem nove anos e, desde que se lembra, o pai sempre lhe contou uma história ao deitar. O ritual repetia-se noite após noite, dando-lhe uma sensação de segurança e bem-estar: o banho, o vestir o pijama; depois o jantar, e pouco tempo depois o meter-se debaixo do edredon quentinho (ou dos lençóis, se fosse verão) e a visão da figura alta e magra do pai a entrar no quarto, um grande sorriso nos lábios, dirigindo-se à estante e tirando um livro, quase ao acaso. Depois o pai sentava-se aos pés da cama, abria o livro e a magia começava.
Para o Pedro esse era, de longe, o melhor momento do dia, em que ele e o pai viajavam no tempo e no espaço, por terras distantes e mundos ainda por inventar, onde bruxas más enfeitiçavam jovens donzelas que eram salvas por corajosos cavaleiros; onde dragões povoavam os céus, destruindo gentes, cidades e campos com as suas chamas devastadoras; onde monstros marinhos sulcavam os oceanos, lado a lado com sereias; e onde guerreiros do planeta Terra se digladiavam no negro do espaço com seres inteligentes de várias cabeças e tentáculos vindos de galáxias distantes.
E o Pedro adormecia, no meio de tão excitantes aventuras, seguro na convicção de que, na noite seguinte, lá estaria o pai com uma nova história para o fazer sonhar, naqueles momentos que eram só dos dois, e de mais ninguém. O Pedro, filho único, adorava a mãe, mas o pai era o seu herói, a sua segurança, a sua rocha.
Um dia, a vida do Pedro mudou. O pai, que tinha arranjado um trabalho melhor (segundo ele tinha ouvido a mãe comentar), disse ao Pedro que ia ter de viajar uns dias para fora em trabalho. Prometeu-lhe que falariam todos os dias e que, na sua ausência, a mãe lhe leria as histórias ao deitar. O Pedro disse que sim, e cada noite a mãe sentou-se aos pés da cama e contou-lhe histórias, e dava-lhe sempre um grande beijo de boas noites, e o Pedro gostava, mas esperava ansiosamente o regresso do pai e da vida à normalidade.
O pai regressou, mas cedo o Pedro se apercebeu de que a vida não voltaria ao normal. O pai explicou-lhe que na nova empresa teria de passar metade do mês num país estrangeiro; que era muito importante para o seu trabalho e que teriam de se adaptar a esta nova vida. Que ele fazia isto para o bem da família, por todos. Esta parte o Pedro não percebeu – e começou a detestar o trabalho do pai que o levava para tão longe dele.
O tempo passou, e agora era como se o Pedro tivesse duas vidas distintas: quando o pai estava, voltavam ao antigamente, às viagens a dois pelo reino da fantasia; no entanto, nas últimas noites antes de o pai partir, uma angústia começava a instalar-se no peito do Pedro e ele tinha de reprimir as lágrimas que teimavam em querer sair. Depois, era a longa ausência, e o Pedro sentia como se lhe tivessem cavado um buraco no peito, que ele não conseguia preencher nem com o carinho da mãe, nem dos avós, nem dos primos, nem dos amigos. O Pedro tornou-se um menino triste, desinteressado da escola, inventava desculpas para não jogar o futebol que antes adorava; até comia mal, ele que tinha tanto apetite. Ouviu a mãe ao telefone dizer que estava muito preocupada com ele, e chegou a ir conversar com um senhor que se chamava psicólogo e que lhe fez muitas perguntas às quais não lhe apetecia responder. Afinal, ele não queria dizer porque estava assim, porque sabia que as viagens eram importantes para o trabalho do pai…
Um dia, foi o mundo que mudou. O Pedro ouviu conversas entre os adultos sobre um “vírus” perigoso que tinha atacado a humanidade e que obrigava todas as pessoas a ficarem fechadas em casa durante algum tempo. O pai, que ia viajar dentro de uns dias, cancelou a viagem; mais, deixou de sair todos os dias para o escritório e passou a trabalhar em casa. Também o Pedro ficou muito surpreendido quando lhe disseram que não ia poder ir à escola, que ia ter aulas por via digital. No princípio sentiu falta dos amigos, dos recreios, mas depois habituou-se. E quando o pai lhe disse que provavelmente não voltaria a viajar durante bastante tempo, o coração do Pedro bateu com uma alegria que não sentia há muito. Nessa noite, e nas que se seguiram, depois de o pai lhe ler a história, dar o beijo de boas noites e apagar a luz, o Pedro agarrou a almofada como fazia sempre antes de dormir, e murmurou uma prece de agradecimento a esse vírus que todos pareciam temer e detestar, mas que, a ele, lhe tinha trazido o pai de volta a casa, e às histórias antes de dormir.
A história do Pedro (nome fictício), é uma história verdadeira. Fez-me pensar em todas aquelas viagens de trabalho que, ao longo do tempo, se tornaram quase um vício. Passar quinze dias fora de casa todos os meses podia ser uma violência, mas era irrecusável. Viajar cada semana, saltar de avião em avião, de aeroporto em aeroporto, tornou-se banal. Quantos profissionais viviam numa cidade e trabalhavam noutra, vivendo o calvário semanal das filas de segurança nos aeroportos, dos atrasos devido ao mau tempo, das filas para embarque? Já para as empresas, os custos daí decorrentes eram enormes – os hotéis, as refeições, os transportes, as ajudas de custo. Será que reuniões, muitas vezes de uma escassa hora ou duas, justificavam tanto?
Parece que não, e a pandemia fez-nos perceber isso. Afinal há reuniões que se tornam muito mais eficientes se forem feitas de forma digital. E mais rápidas. Ainda há dias um colega estrangeiro me dizia que, reuniões que levavam semanas a ser marcadas, devido às agendas intensas dos seus participantes, porque eram presenciais e exigiam uma viagem ao local, agora são feitas por Zoom e se agendam em poucos dias. E garantia-me que esse tipo de reuniões não mais voltará à forma antiga. Concordo. Se há um tipo de eventos – seminários, conferências – onde é importante as pessoas encontrarem-se, conviverem (algo eminentemente humano e que não podemos deixar morrer), fazerem networking, a maioria das reuniões pode fazer-se, com a maior eficiência, por via digital. Aliás, todas estas ferramentas digitais para reuniões estão, ao que sei, a conhecer grande desenvolvimento em termos de qualidade de imagem e som, o que fará com que sejam cada vez mais utilizadas. Os ganhos de eficiência para as empresas, a poupança em termos de tempo dos seus quadros e de custos de deslocação, serão de tal maneira impactantes que me atrevo a pensar, como esse colega, que o mundo empresarial, no que respeita às viagens, nunca mais será o mesmo.
Provavelmente, o pai do Pedro passará a poder assegurar a maior parte das suas atribuições no estrangeiro através de reuniões digitais com os seus colaboradores do outro lado do mundo. E, à noite, estará em casa para contar ao Pedro a história antes de deitar. Num mundo mais assustador, mais incerto, cheio de máscaras e álcool gel, mas também quiçá mais humano em certos aspectos. Porque nada tem só um lado mau e há muitas lições a retirar deste tempo de pandemia.
O Pedro, esse, todas as noites ao adormecer não esquece a frase mágica: “Obrigado, Sr. Vírus”.
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