Formada em Teatro e Filosofia Quântica, Morgaine Gaye é food futurologist e é considerada uma das futurólogas mais influentes na área agroalimentar. É consultora de importantes empresas do setor alimentar, como a Nestlé e a Coca Cola, oradora em diversas palestras e colabora frequentemente com meios de comunicação. Para a especialista britânica, que explora os diferentes aspetos da alimentação, o paladar não é apenas uma experiência biológica, é também um fenómeno social e cultural.
Entrevistámos Morgaine Gaye, que esteve em Lisboa para falar do tema “Alimentação do Futuro”, no Food & Nutrition Awards 2018.
Estudou Teatro e Filosofia Quântica na universidade. Com essa formação académica, como é que se tornou food futurologist?
A maioria das pessoas não trabalha na área da sua formação académica. No meu caso, bastou-me olhar para a forma como as coisas se relacionam. Queria ter sido arquiteta. Há pouco tempo comentei isso com alguém e responderam-me “Sim, és arquiteta porque estás a construir o mundo para que as pessoas possam viver nele”. É algo simultaneamente filosófico, antropológico, cultural, comportamental, histórico, é a forma como as pessoas se juntam, é aspiracional, é tendência. As pessoas olham para aquilo que estudei na universidade como uma ou duas palavras, mas isso não lhes diz nada relativamente àquilo que estudei.
Acho que as pessoas não entendem a minha profissão. O mesmo acontece quando ouvem as palavras “comida” e “futuróloga”. São duas palavras que não dizem nada acerca do que faço e penso que é a palavra “comida” o que mais distrai as pessoas. Fazem-me perguntas sobre insetos, fome mundial, mas esse não é o meu trabalho. É importante perceber que aquilo que vemos não é a verdade, aquilo em que acreditamos é apenas a nossa perspetiva e não nos podemos deixar levar por primeiras impressões. A alimentação é muito mais do que jantar, é tudo o resto e representa tudo aquilo que somos.
“É possível fazer qualquer alimento, mas tudo depende da perceção: o que é que as pessoas vão achar, como as levamos a pensar de forma diferente acerca de algo que julgam já conhecer, qual o efeito da comida nas pessoas e no planeta, como fazemos com que a comida dure (ou não).”
Que tipo de clientes tem e que serviço lhes providencia?
Os meus clientes são as grandes marcas de comida do mundo, como a Mondelēz, a Nestlé, a Coca-Cola, ou outras marcas menos conhecidas, que por norma são as empresas que produzem os ingredientes usados pelas grandes marcas. Podem ser menos conhecidas, mas são elas que produzem queijo em palitos ou pão com buracos, por exemplo. São elas que dão textura ao mundo. Ninguém ouve falar nelas, mas são muito importantes. Também trabalho para empresas que produzem aparelhos de cozinha (como a Panasonic ou a Samsung), desde frigoríficos, torradeiras, jarros elétricos.
Em relação ao serviço, começo por fazer um trend briefing personalizado, elaborado de acordo com as necessidades do cliente, e a empresa fornece um tópico, por exemplo, qual o futuro dos lanches para as crianças, e desse tópico podemos partir para o desenvolvimento de um produto, pensar em novas ideias, possibilidades para o mercado, etc. Numa fase mais avançada do processo, desenvolve-se o alimento que foi criado e pensa-se de que forma vai ser construída a sua marca, que embalagem lhe vamos dar e como vamos colocar o produto no mercado. Tenho de compreender tudo o que há para compreender sobre alimentação. Não apenas as tendências, mas também qual a opinião das pessoas acerca dessas tendências. É possível fazer qualquer alimento, mas tudo depende da perceção: o que é que as pessoas vão achar, como as levamos a pensar de forma diferente acerca de algo que julgam já conhecer, qual o efeito da comida nas pessoas e no planeta, como fazemos com que a comida dure (ou não).
Como vai ser a alimentação daqui a cinco anos?
Vêm aí grandes mudanças e grandes tendências no mundo. Serão tantas que não iremos reconhecê-lo daqui a cinco anos. Ninguém que esteja vivo neste planeta já passou pelas mudanças pelas quais vamos passar nos próximos tempos. Essa mudança já está em marcha e é positiva. Europa, Brexit, Donald Trump, tudo isso faz parte dessa mudança. Nos próximos três anos, as marcas de que gostamos vão passar por dificuldades, o sistema monetário e o mercado financeiro vão colapsar, o que acreditamos ser belo vai mudar. Ninguém está preparado, mas a melhor forma de o fazer é pensar que não podemos repetir tudo aquilo que fizemos até hoje. As marcas já estão a pensar desta forma.
“Os insetos têm um enorme potencial e podem ter inúmeras aplicações. Iremos servi-los com as patinhas à vista? Não. As pessoas não gostam disso. Mas depende muito da cultura.”
Alguns especialistas acreditam que, no futuro, vamos comer insetos, mas no Ocidente essa prática causa alguma repulsa. Gastronomicamente, como é que podemos incluir insetos na nossa dieta?
Isso já acontece em alguns países. Por exemplo, no Reino Unido podemos comprar, em supermercados, produtos feitos com insetos. O problema é que crescemos com a ideia de que os insetos são estranhos, rastejantes e nojentos e isso é algo que passa a fazer parte da nossa cultura. Mas vamos começar a comê-los. Aliás, há já quem os coma. Os insetos podem ser usados como substitutos de carne. Podemos até criá-los em casa: não ocupam muito espaço, gostam de crescer em cativeiro e para os matar, antes de os fritarmos e comermos, basta tirá-los do ambiente quente onde crescem e colocá-los ao frio. Os insetos têm um enorme potencial e podem ter inúmeras aplicações. Iremos servi-los com as patinhas à vista? Não. As pessoas não gostam disso. Mas depende muito da cultura. Em Portugal, por exemplo, aprecia-se caracóis, mas no Reino Unido não. E porquê? Porque os portugueses cresceram com esse hábito, é normal, faz parte da vossa cultura.
Qual é o futuro da alimentação na região do Mediterrâneo, particularmente em Portugal?
É uma pergunta interessante. Portugal vai manter alguns dos seus pratos tradicionais, mas as culturas do Mediterrâneo vão juntar-se e celebrar cada vez mais, em conjunto, as suas tradições gastronómicas. Os pratos que os antepassados comiam e que atualmente não são consumidos vão ressurgir, as pessoas vão explorar a profundidade das suas culturas e reintegrar nelas esses pratos. Ao mesmo tempo, Portugal vai ter mais acesso às tendências e mais restaurantes irão surgir, como restaurantes vegan.