Licenciada em Direito pela Universidade Católica, Marta Feio foi conselheira jurídica para as áreas de Direito Societário e Corporate Governance na Confederação da Indústria Europeia. O trabalho em Bruxelas deu-lhe a vontade de sempre saber mais sobre o que a rodeia e tem impacto no quotidiano. Depois de quase uma década fora de Portugal, regressou para integrar a área de Assuntos Institucionais da Tabaqueira, onde esteve até assumir, em janeiro de 2021, o cargo de secretária-geral executiva da Associação Técnica da Indústria de Cimento.
Em 2022, Marta Feio decidiu fazer o programa One Step Ahead – Líderes no Feminino porque precisava de abrandar para refletir, planear e organizar. Hoje não duvida que esta formação executiva, que é uma parceria entre a Executiva e a AESE, teve um forte impacto na sua vida, sobretudo o programa de mentoria que o integra.
Foi, durante vários anos, consultora em áreas diversas da União Europeia. Qual é a importância de uma experiência internacional para uma carreira como a sua?
Bruxelas deu-me a capacidade de olhar para os diferentes temas em que trabalhei e trabalho de uma forma integrada, de os pensar com maior profundidade e, simultaneamente, de exercitar a capacidade de responder depressa a solicitações ou perguntas complexas. E, talvez mais importante que tudo o resto, incutiu-me o desejo de saber sempre mais sobre tudo o que nos rodeia e tem impacto no nosso quotidiano, ainda que por vezes apenas de forma indireta.
Comecei a minha carreira profissional em Bruxelas onde estive durante nove anos. Foi uma experiência extremamente enriquecedora, que me deu as bases para ser o que sou hoje em praticamente todos os níveis.
A “bolha” de Bruxelas é precisamente isso: uma bolha. Ou seja, pessoas de diversos países, com culturas e idiomas distintos, que vivem à volta dos mesmos temas, falam uma espécie de esperanto que mistura inglês e francês na mesma frase e movem-se todas, ou quase todas, em redor da agenda política das instituições europeias. Estar ali, nessas circunstâncias, estimula a sensação de proximidade em relação ao centro do mundo. De viver e trabalhar no lugar onde é definido muito do que será o futuro.
Para quem tenha capacidade de trabalho, espírito de iniciativa e sentido de missão, essa Bruxelas permite contribuir, individualmente e na medida das respetivas competências, não apenas para o debate, mas para dar corpo e forma concretos ao enquadramento regulatório que, no fundo, pauta toda atividade económica, empresarial e social ao nível nacional.
A transparência e a abertura com que os decisores políticos ouvem as diversas partes interessadas implicam também uma enorme responsabilidade para quem trabalha na área de advocacy. O que é defendido e proposto pode mesmo vir a definir o destino de milhões de cidadãos e de milhares de empresas. E para participar neste processo é preciso estar preparado tecnicamente e ter uma visão tão ampla que seja capaz de englobar as diferentes perspetivas sobre um tema e o seu contexto. É preciso ser-se capaz de ligar todos os pontos, de partir do genérico para chegar ao muito específico, e este nem sempre é óbvio. Esta forma de estar e de trabalhar tem sido, desde essa altura, uma constante na minha carreira.
“Mais do que mil palavras, são as ações que nos definem”
Quais foram os principais conhecimentos que adquiriu, e ensinamentos mais úteis à função que desempenha hoje?
Destaco talvez a importância de ouvir, observar e dialogar muito. É o que nos permite compreender o que nos rodeia e antecipar o que se segue, apreender outros pontos de vista e preparar os argumentos para defendermos a nossa posição. A previsibilidade e relativa transparência da agenda das instituições europeias ajuda nessa preparação e é útil para o planeamento das nossas ações.
A negociação e a busca de consensos levam-nos a assumir e a praticar diariamente a flexibilidade, sem perdermos de vista as posições que defendemos. No entanto, é importante perceber que, para termos ganhos numas áreas, é preciso ceder noutras. Isto leva à necessidade de estabelecer prioridades, de distinguir o essencial do acessório e de conhecer os nossos interlocutores. Os argumentos que funcionam com alemães, por exemplo, não funcionam com espanhóis ou nórdicos. É fundamental saber adequar a intervenção ao interlocutor.
Quando vivemos numa “bolha”, as conversas pessoais e profissionais cruzam-se inevitavelmente, e eu tive a sorte de me cruzar com pessoas muito boas, também a nível pessoal, que disponibilizavam parte do seu tempo a ensinar e a preparar as equipas respetivas. Conheci verdadeiros líderes, mentores atentos e disponíveis, que criaram em mim a ambição de tentar ser sempre melhor em tudo o que faço, e me incutiram a convicção de que é possível defendermos aquilo em que acreditamos e promovermos mudanças positivas, mas também concretas. Muitos deles continuam a inspirar-me diariamente.
Mas também tive a sorte (na altura não via a questão bem assim) de ter tido, na minha primeira experiência profissional, uma chefe que me mostrou, pelo seu mau exemplo, exatamente o que nunca quereria ser enquanto líder, nem gostaria de me transformar. Foi uma ótima lição, ainda que dura, sobre os caminhos a evitar e um estímulo para continuar a seguir os melhores exemplos. A exigência com os outros tem de começar sempre pela exigência connosco e pela atenção para com os demais. Mais do que mil palavras, são as nossas ações que principalmente nos definem.
“O programa de mentoria do OSA foi uma grande mais-valia”
Porque decidiu fazer o programa One Step Ahead – Líderes no Feminino?
Estava numa fase em que sentia que precisava de ter espaço para pensar nalgumas questões de forma mais profunda, voltar a alargar a abrangência da minha capacidade de análise e incluir outras variáveis, desenvolver pessoalmente algumas skills e, sobretudo, aprender com a experiência das demais participantes, no fundo um reality check de que não estava a fazer mal, mas poderia fazer bem melhor nas diversas áreas de minha vida profissional e pessoal.
Qual foi o impacto do programa na sua vida?
Muitas vezes sinto que estou sempre a correr e não tenho espaço nem tempo para a antecipação que referi no princípio. Por vezes é preciso parar para termos algum distanciamento para podermos depois avançar de forma mais segura. E eu tenho imensa dificuldade em parar.
É importante planear e organizar. E eu, que me considero extremamente organizada, percebi que podia também melhorar bastante nessa área com vista a uma maior eficiência com menor taxa de esforço. Claro que foi também uma experiência excelente conhecer pessoas inspiradoras que nos motivam e desafiam a dar mais e a ser melhores. O programa de mentoria do OSA foi extraordinário e uma grande mais-valia, com reflexo direto no meu quotidiano.
“Na ATIC trabalhamos para ter uma UE ‘verde’, mas precisamos de dar tempo às indústrias para se adaptarem”
Um dos principais desafios da economia nacional, europeia e mundial é o da sustentabilidade ambiental. Qual é o papel de uma associação, como a que gere, para ajudar um sector industrial, exportador e economicamente relevante para o país, como o do cimento, a fazer esse caminho e cumprir os objetivos estabelecidos pela União Europeia?
Defendo convictamente que as indústrias e as empresas são o motor do desenvolvimento económico e social, o principal elemento gerador de riqueza. A indústria cimenteira foi uma grande descoberta, que me tem permitido aprender imenso, graças, também, à paciência dos engenheiros e peritos que me rodeiam no dia a dia e respondem às perguntas incessantes de uma licenciada em Direito. Também me tem ajudado a perceber como tantas vezes não nos damos conta do que nos rodeia, nem pensamos duas vezes naquilo que damos por garantido.
As paredes não são feitas de cimento. Têm cimento. Mas o que normalmente vemos é o betão. O cimento é um pó que serve para fazer betão. E o betão é o segundo bem mais consumido no mundo a seguir à água, e é 100% reciclável! Existe em diversas cores, é duradouro, tem reduzida manutenção e é pouco dispendioso e maleável. Permite fazer autênticas obras de arte, desde os templos e edifícios romanos até às mais relevantes obras de arquitetura contemporânea. É o betão que nos permite ter saneamento básico e casas com temperaturas confortáveis em todas as estações do ano, entre muitas outras coisas. Por tudo isto, parece evidente que não teríamos a qualidade de vida atual sem cimento e betão. Mas eu nunca tinha pensado nisto antes e creio que, tal como eu, a maior parte da população.
Algumas destas noções com as quais tinha pouca familiaridade, fizeram-me acreditar que esta indústria tinha de chegar mais às pessoas e aos decisores políticos, de dar a conhecer o seu trabalho e o seu contributo para a economia e para a sociedade, sobretudo num momento em que estamos perante um ciclo regulatório tão intenso em matérias que têm impacto direto e indireto o setor. É essencial estabelecer metas e descarbonizar, pois, todos sabemos que não há um plano B para o mundo. E a indústria cimenteira tem sido pioneira nesta matéria, ainda que esse seja um facto pouco conhecido.
Pouco depois de ter assumido funções como secretária-geral da ATIC, em janeiro de 2021, foi apresentado, em março, o Roteiro da Indústria Cimenteira Nacional para a Neutralidade Carbónica 2050. Não foi mérito meu, mas simplificou-me bastante a vida, pois espelhava o compromisso do setor e mostrava, claramente, o que a indústria cimenteira se propunha fazer nesta área tão importante. E tem sido extraordinário perceber e acompanhar o empenho da CIMPOR e da SECIL, as associadas da ATIC, nesse sentido, concretizados, por exemplo, no investimento superior a 206 milhões de euros em I&D ou numa redução de emissões superior a 14 % desde 1990 até hoje, e contribuindo para a economia circular como modelo económico de futuro.
Outra missão muito relevante da ATIC é precisamente contribuir para um ambiente regulatório coerente e proporcional. Precisamos das políticas certas para, sem destruir uma das poucas indústrias ditas pesadas que nos restam, conseguir, também com incentivos adequados, alcançar os objetivos de descarbonização nacional e da UE. Para isso acontecer é preciso fazer pontes com as entidades públicas, a nível nacional ou europeu, acompanhar todos os processos legislativos em curso e tentar alertar para os riscos que a sobre regulação e falta de visão holística na adoção de legislação pode ter a nível económico e social. Trabalhamos para termos um mundo, ou pelo menos uma UE, “verde”, mas precisamos de dar tempo às indústrias para se adaptarem.
A 4.ª edição deste programa vai decorrer entre 2 de maio e 6 de junho 2023 (em quatro sessões de dia inteiro na AESE Business School e duas sessões online de meio dia).
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