Marta Carvalho Araújo: A arte de entreter

Marta Carvalho Araújo, CEO da Castelbel, desvenda o que procura nos candidatos a uma vaga no departamento de vendas da sua empresa.

Marta Carvalho Araújo é CEO da Castelbel.

Texto de Marta Carvalho Araújo, CEO da Castelbel

Uma das perguntas que gosto de fazer a quem se candidata a um posto de trabalho no nosso departamento de vendas é: “Aguentas um jantar de quatro ou cinco horas com um cliente que acabaste de conhecer?”. (Sim, ser uma pessoa interessante é um dos pré-requisitos para trabalhar connosco. Sim, com toda a subjetividade que o conceito de “pessoa interessante” acarreta.)

É claro que nem todos podemos ser Chief Entertainment Officers, mas todos aprendemos, em alguma fase da vida, a contar histórias.

Contar uma história é a melhor forma que existe de enriquecer uma conversa. Se não nos ocorrer nenhuma porque o último livro que lemos foi Os Maias, no 11.º ano, podemos sempre contar a nossa, a dos nossos pais, a dos nossos avós. Aliás, até é melhor contarmos uma que tenha acontecido mesmo, porque as histórias verdadeiras são muito mais envolventes e tornam os detalhes muito mais fáceis de recordar (e de repetir, no caso de voltarmos, por engano, a contar a mesma história à mesma pessoa). Devemos dar-lhe cor, sabor, textura, som e cheiro, mas sem exageros nem invenções, porque não há nada pior do que ser ou soar a falso naquele preciso momento em que se está a criar afinidade com alguém.

(In)felizmente, acontece que, para ser capaz de sobreviver ao tal jantar, não basta contar uma boa história, é preciso contar muitas. E ouvir muitas. Com curiosidade e interesse genuínos. E ser capaz de perceber o que é dito (e, tão ou mais importantemente, o que não é dito, mas que se espera que seja escutado).

Ora, isso exige preparação. É preciso ter alguma habilidade para conseguir interpretar as ações e reações do interlocutor, dar-lhe hipótese de nos interromper a qualquer momento com perguntas (a que, idealmente, deveríamos saber responder) e, se for o caso, saltitar entre histórias diferentes.

É certo que desenvolver uma alma curiosa dá trabalho. (Perguntem a uma mãe que tem de voltar a montar as peças do que a filha acabou de destruir só para ver o que estava lá dentro e perceber como funcionava…)

Cultivar e conciliar interesses também. (Perguntem a um pai que precisa de afixar o horário das atividades de todos os membros da família para se lembrar exatamente de onde e quando é que tem de estar em cada dia da semana…)

Mas é precisamente o ser curioso e ter interesses variados que torna as pessoas, lá está, “interessantes”.

Afinal, apesar de haver poucos (ou só um!) Leonardos renascentistas, dotados de talento para várias artes, ciências e engenharias, todos somos pessoas completas, com corpo e alma, estratégias de carreira e ambições financeiras, crenças e valores, normas e padrões de comportamento, e todos cultivamos relações familiares, de amor, de amizade ou de simples empatia. Não somos um grau académico nem um título profissional, e, muito menos, a marca do nosso último empregador.

Letamendi e Abel Salazar diziam que “O médico que só sabe medicina, nem medicina sabe”. Pois se é verdade que, na prática médica corrente, há uma necessidade suprema de especialização (se alguma vez precisar de remover um tumor da mama, prefiro recorrer a um cirurgião que só faça esse tipo específico de cirurgia do que a um que opere regularmente várias partes do corpo e tenha umas noções de mineralogia, canto lírico e arte abstrata), também o é que, no mundo do entretenimento, a série televisiva Dr. House só aguentou oito temporadas no ar por causa do raciocínio pouco convencional de uma equipa de médicos que, claramente, sabiam de muito mais do que medicina (para além, é claro, do mau feitio cool da personagem principal, que, paradoxalmente, lhe dava um charme especial).

E se há quem seja apologista da conciliação de várias carreiras profissionais (a quem tiver energia para isso, recomendo que leia o artigo digital de Kabir Sehgal na Harvard Business Review: “Why You Should Have (at Least) Two Careers”) ou mesmo de múltiplas personalidades (havendo sempre o risco de cruzar aquela “linha que separa” o normal do patológico), eu sou muito mais moderada e limito-me a defender a criação de alternativas às quais possamos reverter quando/se o que escolhemos fazer como profissão a dada altura correr mal. Ou se tornar aborrecido.

Herdei esta crença da minha Mãe, que quis (a expensas das férias que nunca teve e dos cafés que nunca tomou) que experimentássemos tudo, ao melhor estilo do Gato Montês (aquele que tocava piano e falava francês), para nos abrir horizontes e permitir perceber para que é que tínhamos jeito ou apetência natural.

Quis que estudássemos (muito!!!), mas também que praticássemos várias modalidades desportivas, andássemos (e caíssemos) de bicicleta e de patins, saltássemos de paraquedas ou com um elástico nos pés, aprendêssemos línguas estrangeiras (só não colou o alemão, porque, como alguém uma vez escreveu, “life is too short to learn German”), viajássemos, lêssemos livros e partituras, tocássemos instrumentos e cantássemos num grupo coral, andássemos nos escuteiros e na catequese… e que fizéssemos cursos breves de teatro, pintura, banda desenhada, escrita e informática.

Atividades próprias da infância ou da adolescência que, na idade adulta, dessem lugar a ações de voluntariado, participação em movimentos cívicos ou associações culturais, iniciativas de solidariedade social ou aconselhamento empresarial, sempre acompanhadas pela prática regular de atividade física. Em suma: toda aquela vida que existe para além do trabalho e que nos leva a não querer nem precisar de pensar na reforma.

Note-se que, contrariamente ao defendido por um amigo, eu não acho que “basta ser o melhor em tudo”. Para ser feliz, parece-me desnecessário ser o melhor; creio que “basta” ser muito bom em áreas que nos deem alguma flexibilidade mental, física e emocional. Que nos permitam encontrar semelhanças e afinidades em mundos supostamente muito diferentes, levando-nos a construir pontes e sinergias. E que nos permitam manter uma conversa de cinco horas com aquele cliente de qualquer nacionalidade, raça, religião, género, idade, nível de educação ou estatuto social que acabámos de conhecer.

 

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