Mariana é hoje uma cidadã do mundo, que adora ir à descoberta e estar em território desconhecido. Mas quando saiu de casa pela primeira vez, aos 23 anos, para fazer o programa Erasmus em Saint-Étienne, França, o sentimento não foi logo esse. “Estava ansiosa por sair de casa e experimentar, mas quando cheguei lá deparei-me com uma realidade de que não estava à espera. Adorei a experiência, mas teve algumas dificuldades, como estar sozinha, longe da família e dos amigos, criar toda a uma rede de relacionamentos nova.” Foi difícil dar o salto, admite, mas assim que isso aconteceu “foi tão espetacular” que nunca mais parou de correr mundo.
O percurso da criadora e CEO da rede internacional ‘Chicas Poderosas’ — que tem por missão aumentar o número de mulheres qualificadas a trabalhar com tecnologia nas redações de jornais e outros media — passou primeiro por Berlim, onde foi designer de pós-produção na Universal Musical; por Estocolmo, onde fez um master em media digital na Hyper Island; por Londres, onde trabalhou como motion and interaction designer no jornal britânico The Guardian. Chegou à Costa Rica em 2013 com uma bolsa do centro internacional para jornalistas ICFJ e foi lá que criou as ‘Chicas’. Em 2014 foi convidada a dirigir o departamento ‘Interactive and animation’ da Fusion, uma joint venture entre a Univision e o canal norte-americano ABC, e passou mais dois anos em Miami. Pelo meio ainda arranjou tempo para uma especialização em Business Development, empreendedorismo e tecnologia na Universidade de Standford (Califórnia). Em agosto de 2016 decidiu que era tempo de se dedicar a 100% ao projeto que criou — e de regressar à base (ou quase). Agora, aos 34 anos, é entre Portugal e a América Latina que divide as suas temporadas de trabalho.
“Adoro chegar a um novo local, não conhecer nada nem ninguém, ter de fazer amigos. Adoro estar numa zona de desconforto.”
Diz que sentiu algumas dificuldades no início do Erasmus. Qual foi então o clique da mudança que a fez correr mundo tão à vontade?
Foi o o facto de sair, de me expor em zona de desconforto — sair de Portugal, não ter os amigos e família por perto, chegar a uma realidade de que não conheço nada, nem a cidade, nem as pessoas, nem a cultura ou a língua. Tive que aprender francês e é muito bom aprender uma nova língua porque faz-nos mergulhar verdadeiramente numa nova cultura. Percebi que o que queria mesmo era conhecer mais culturas, entender como as pessoas trabalham e pensam em outros países e que o meu mundo não é só Portugal, não se limita ao lugar onde cresci, vivi e aprendi. Fiquei apaixonada por isso e, desde então, andei um pouco a saltar de cidade em cidade, mais ou menos de três em três anos, porque adoro essa primeira parte de chegar a um novo local, não conhecer nada nem ninguém, ter de fazer amigos. Adoro estar numa zona de desconforto. Agora estou em Portugal e adoro. Por outro lado, sinto-me tão confortável aqui que parece que não puxa por mim.
Sente que o país não a desafia tanto quanto poderia?
Desafia-me no sentido em que é muito difícil fazer coisas cá dentro, sendo portuguesa. Só o que é de fora é que é bom — a partir do momento em que vou para fora e regresso, parece que já sou uma mais-valia só porque estive fora. Faço muitos eventos de digital media training no estrangeiro, que têm uma adesão espetacular, os governos ajudam, as universidades envolvem-se e os meios de comunicação querem participar. Em Portugal parece que temos que pedir por favor para as pessoas fazerem coisas juntas. Tenho a sensação que se organizar um evento de treino digital em Lisboa as pessoas ficam menos interessadas em ir do que se o fizer em Madrid. O país desafia-me a tentar ir contra a regra e a forma como as coisas evoluem, e a provar que o que temos cá dentro também pode ser bom.
Qual é a sua chave para a adaptabilidade num novo país?
Tirar o ego da equação— aliás, não o levar comigo para lado nenhum porque só arranja problemas. A minha principal base de relação inter-humana é a empatia, pôr-me na pele das outras pessoas e comunidades. Vou como uma folha em branco e muito disponível para escrever as coisas consoante as relações que tenho e o que vou aprendendo. O ego autodirige-nos e torna-nos um bocado tendenciosos com aquilo que sabemos e em que acreditamos.
“Tenho que me sentir desafiada e que estou a fazer alguma diferença no sítio onde estou, porque pretendo ser um fator de mudança e ter um impacto positivo na sociedade e nas coisas que faço. Quando esse impacto começa a ficar mais ténue, sinto que é momento de avançar para uma coisa nova.”
A mobilidade entre projetos tem sido uma constante da sua carreira. Tem um calendário de objetivos? Quando sente que é tempo de passar ao projeto seguinte?
Antes mudava de cidade quando mudava de trabalho ou projeto. Quando a minha linha de crescimento começa a estabilizar — é muito íngreme no início, e é isso que me dá uma emoção gigante de estar num país, cidade ou projeto específico — começo a ficar com uma espécie de formigueiro e a pensar no que virá a seguir. Tenho que me sentir desafiada e que estou a fazer alguma diferença no sítio onde estou, porque pretendo ser um fator de mudança e ter um impacto positivo na sociedade e nas coisas que faço. Quando esse impacto começa a ficar mais ténue, sinto que é o momento de avançar para uma coisa nova e de dar o meu input noutros projetos que possam precisar mais de mim. Hoje já estou noutra fase em que sou a minha própria CEO nas Chicas Poderosas e onde eu é que decido o que vou fazer. Neste momento, os próximos três anos estão todos planeados na minha cabeça e no meu Google Drive. Como líder de um movimento que começa a tornar-se global, há vários objetivos que quero cumprir, nomeadamente fazer sete investigações em sete países latino-americanos para tentar envolver e responsabilizar os governos e manter as sociedades informadas sobre vários temas muito importantes. O meu interesse é fazer com que esses temas sejam de conhecimento geral na Europa ou nos EUA.
Faltam mulheres a trabalhar em tecnologias de informação, mesmo entre as millennials?
Acho que sim, e esse foi o toque de saída para as Chicas Poderosas. Pessoalmente, via-me num ambiente muito masculino a nível da parte tecnológica das salas de redação, tanto no The Guardian como em outros meios de comunicação onde estive. E quando cheguei à América Latina deparei-me com uma realidade em que as mulheres não tinham conexão com a parte digital — elas faziam a investigação, contavam as histórias, faziam o fact checking, mas na altura de passar as histórias para o digital e para o público, era o departamento de tecnologia, representado por homens, que punha as histórias online. Achei que tínhamos que saber pôr as nossas próprias histórias online, ter uma relação com a comunidade e com a audiência. Ao mesmo tempo deparei-me com o facto da maioria das direções dos meios de comunicação da América Latina serem homens. Ou seja: não tínhamos voto na matéria na tecnologia nem na direção, que decide temas e pautas editoriais. Acredito que, para produzirmos projetos bons tanto para uma audiência masculina como feminina, precisamos de diversidade de género na parte da produção. No jornalismo, entre os millennials e até na geração anterior, as mulheres tiveram mais dificuldade em digitalizar-se. Temos é que acreditar que podemos e que a tecnologia não é só para os homens.
Como define a geração millennial?
Na minha opinião, uma das grandes características é a maior mobilidade — se for preciso irmos trabalhar para outra cidade ou país, vamos. Precisamos de nos sentir apaixonados pelo que estamos a fazer. Os millennials estão menos presos ao dinheiro, parece-me. Claro que ele é importante e lhe damos o devido valor, mas há coisas mais importantes, como se a missão do projeto em que estão é algo com que se identificam, se acham que podem ter uma contribuição positiva a nível pessoal e na sociedade, e uma noção maior de que o tempo é cada vez mais precioso. O tempo que dedicamos a uma empresa ou ao sonho de alguém, com o qual não nos identificamos, não vai voltar para nós. Quero dedicar o meu tempo às coisas em que acredito, e o dinheiro há-de vir.
Acho que a questão de só termos cinco minutos de capacidade de atenção é um mito, mas estamos mais aptos a receber mais estímulos ao mesmo tempo. É verdade que nas relações humanas sinto que temos menos o espírito de ficar e aguentar, tentar encontrar a luz ao fundo do túnel quando as coisas não correm bem. Somos mais resilientes no trabalho, mas também até certo ponto, preservando os nossos valores — não ficamos no sistema só por ficar, nem aguentamos só por aguentar.
“Também me orgulho dos meus falhanços porque, para inovarmos, temos que tentar fazer as coisas de forma diferente. Às vezes, isso pode até ser perigoso, podemos errar ou até sermos vistos como falhados, mas isso tudo é muito importante para avançarmos e nos desenvolvermos.”
As empresas estão a conseguir captar o talento dos millennials e ir de encontro às suas expetativas?
Acho que as empresas ditas tradicionais ainda estão com algumas dificuldades em se adaptarem à nova geração digital. Aí acho que existem alguns desencontros. Claro que existem exceções, como nas empresas de Silicon Valley, onde esse encontro já foi tão visível, mas onde ultimamente tem havido tanta perda de talento, que têm de começar a adaptar-se e a pensar que não é com mais dinheiro que lá vão, mas sim pela inspiração, por terem pessoas que funcionam como mentores que motivam os millennials, que nos fazem crescer e nos dão sentido de desenvolvimento pessoal. Entrevistei representantes de empresas de Silicon Valley, perguntando como se retém talento e a conclusão foi essa: “temos que lhes apresentar gente interessante para que eles se sintam motivados e a crescer, ou então eles vão-se embora.”
Quais os marcos de carreira de que mais se orgulha?
As Chicas Poderosas, sem dúvida. É a minha razão de lutar e viver. E orgulho-me de não ter medo de experimentar, mesmo que falhe. Também me orgulho dos meus falhanços porque, para inovarmos, temos que tentar fazer as coisas de forma diferente. Às vezes, isso pode até ser perigoso, podemos errar ou até sermos vistos como falhados, mas isso tudo é muito importante para avançarmos e nos desenvolvermos.
Como define o seu estilo de liderança?
O mais orgânico possível. Tento dar ferramentas à comunidade e aos líderes de comunidade. Obviamente que tem de existir uma certa estrutura, com regras básicas partilhadas com os líderes. Mas é uma liderança muito partilhada e onde se aprende fazendo, com ensinamentos, espirito de comunidade, muito feedback — ter a abertura para partilhar quando as coisas não estão bem, o que poderia estar melhor, onde podemos melhorar. É muito baseada na programação neurolinguística, porque sem comunicação não avançamos.
“Vejo as Chicas [Poderosas] como uma comunidade que faz parte da mudança da sociedade para um mundo melhor. Quando nos juntamos com espírito de equipa, podemos fazer milagres.”
O que a inspira? Onde recarrega baterias fora do trabalho?
O que me inspira são as mulheres que, apesar de terem tantos problemas, continuam a lutar, a arregaçar as mangas e a avançar — nomeadamente na América Latina, onde os problemas são muito duros e as pessoas não desistem e estão a trabalhar para tentarem melhorar a sociedade. Estar perto do mar e da praia também me inspira muito. Faço ioga — ajuda-me a refletir e é o momento em que muitas ideias aparecem. E a minha família, que sempre me adorou e apoiou nos bons maus momentos. Somos um clã e ajudamo-nos umas às outras — neste momento, somos todas mulheres — e é daí que bebo muita inspiração e de espírito de entreajuda.
Onde se vê daqui a 5 anos?
Vejo-me com as Chicas Poderosas espalhadas por todo o mundo, com projetos de treino de empreendedorismo e liderança para as mulheres. Vejo-nos como uma escola a nível global, onde as pessoas podem tornar-se experts em digital e onde se possa encontrar um currículo premium de digital storytelling. Vejo as Chicas como uma comunidade que faz parte da mudança da sociedade para um mundo melhor. Quando nos juntamos com espírito de equipa, podemos fazer milagres.