José António de Sousa: Yin e Yang e a Covid-19

José António de Sousa analisa o impacto da Covid-19 à luz do conceito do taoismo Yin e Yang.

José António de Sousa fez a maior parte da sua carreira na liderança de multinacionais no estrangeiro.

José António de Sousa é gestor aposentado depois de quatro décadas na liderança de multinacionais.

 

“Yin e Yang são dois termos que caracterizam, no taoismo, a dualidade de absolutamente tudo aquilo que compõe o Universo. “Descrevem as duas forças fundamentais opostas mas complementares que se encontram em todas as coisas : o Yin é o princípio da noite, Lua, passividade, absorção. O Yang é o princípio do Sol, dia, luz e atividade.” (emprestado do Google).

Ainda flanando no motor de busca mais famoso do mundo, encontrei uma definição que vou apresentar aqui, sabendo que corro o risco de ser linchado (mesmo não sendo de minha autoria!) : “Yin é o princípio passivo, feminino, noturno, escuro e frio. Fica do lado esquerdo da esfera, na cor preta. Yang é o principio ativo, masculino, diurno, luminoso e quente. Está representado pelo lado direito da esfera, na cor branca.” Já se vê, os homens são a luz quente, as mulheres as trevas frias…

Eu não sei se os taoistas me perdoam, mas não pude deixar de olhar para este COVID-19 que nos ensandece e desorienta, depois de tantos meses a viver tempos de exceção, à luz do Yin-Yang (segundo a definição não polémica !).

A verdade é que o princípio do Yin-Yang nos ajuda a centrarmo-nos no essencial, e a tratar de olhar para o lado positivo que tudo na vida tem, mesmo as coisas negativas que nos condicionam e afetam. Se é certo que a pandemia nos trouxe dor e sacrifício (que ainda estão longe de acabar), também fez a humanidade avançar em muitas áreas (digitalização acelerada da nossa vida em sociedade, cuidados sanitários e higiene pessoal fortemente melhorados, rapidez no fabrico de vacinas, organização societária e de cuidados de saúde que permitirão no futuro responder com outra eficácia e rapidez a desafios similares, etc.).

Não garanto que os exemplos que aqui apresento estejam bem enquadrados nesta filosofia, mas aqui vão algumas reflexões sobre temas que procurei analisar sob a lente da sua complementaridade na oposição, ou seja em que cada aspeto negativo encontra um lado positivo derivado da mesma origem.

Confinamento / estado de emergência

Yang – Obrigou as companhias a acelerar o processo de digitalização das suas operações, de maneira a poder continuar a servir os clientes, com o grosso dos funcionários a cumprir horário em teletrabalho a partir de casa. Avançou-se, segundo especialistas em processos, mais de uma década em poucos meses (pelo menos aquelas companhias que aproveitaram o „novo normal“ para avançar a passos acelerados com a digitalização das suas operações ).

Yin – O reverso da medalha são vários aspetos que terão de ser repensados nos tempos mais próximos, e muito rapidamente. O serviço ao cliente, o tal que deveria melhorar graças à rapidez de processos digitais, e passaria a ser mais cómodo, evitando deslocações dos clientes até às lojas / sedes das companhias, nunca foi tão mau. Nunca antes a ineficiência na resolução de questões de todo o tipo (encomendas, trocas, faturamento, esclarecimentos, etc.) foi tão esmagadora e irritante. O paradigma dos call center (caos, desespero, e ineficiência totais para tratar qualquer tema que não seja tirar dinheiro do nosso bolso, pois as compras funcionam minimamente), um tema que está longe de ser exclusivo no nosso mercado (mas encontra em Portugal refinamentos tenebrosos), foi exacerbado à quinta potência. Ser cliente em Portugal de uma empresa que trabalhe mediocremente  (ou seja as que não tenham resolvido os processos internos) é hoje uma experiência kafkiana. Tratem de falar com quer que seja ao telefone…

Teletrabalho

Yang – O seu alcance futuro ainda está a ser equacionado por várias empresas (a maior grau de digitalização, teoricamente, maior probabilidade de que muitas empresas não retornem aos seus antigos locais de trabalho), mas já se pode dizer que veio revolucionar cataclisticamente o mercado do trabalho, e permitir às companhias ter muito significativas poupanças em termos de gastos gerais (renda do escritório, luz, água, segurança, etc.). Para os funcionários abrangidos, os aspetos positivos são vastos. Lembro-me do tempo em que alguns funcionários da companhia estavam obrigados a deslocações diárias de várias horas (até 4, num caso de que me lembro bem) em transportes apinhados para vir trabalhar, e regressar a casa. Em teoria as cidades poderiam passar a respirar melhor (a qualidade do ar melhorou significativamente durante o confinamento obrigatório), a estar melhor organizadas, os transportes públicos melhor dimensionados para as novas realidades.

Yin – Como é obvio, o teletrabalho provocou uma revolução fracturante em muitos setores. São escritórios que não voltarão a ser alugados, e muitos que estavam em construção que dificilmente irão encontrar ocupantes no futuro. São cafés, restaurantes, pastelarias, leitarias, etc., sobretudo nas zonas urbanas onde se concentram os parques de escritórios, que  provavelmente nunca mais reabram. Negócios que foram abertos muitas vezes com as poupanças de uma vida, ou com as indemnizações de quem perdeu os empregos na última década, gente que fica financeiramente completamente „descalça“. Além disso, aquilo que para muitos parecia uma tremenda oportunidade de ganhar tempo de qualidade para a família (aquele que é poupado ao não ter de se deslocar para um local de trabalho, e não o que é „roubado“ ao horário de trabalho da empresa), rapidamente se transformou em pesadelo. Muitos empregadores, mal organizados e preparados para o teletrabalho (para minha grande surpresa, multinacionais de referência também), abusam nitidamente dos funcionários em teletrabalho. Têm-nos 10, 12 e até mais horas presos aos ecrãs do computador em „reuniões“ absolutamente idiotas, sem respeitar horários, sem pausas, sem respeitar horário de refeições, etc. Os sinais de esgotamento e de desgaste em alguns casos que eu conheço são evidentes. Isto terá que rapidamente ser regulamentado e organizado. E a sociedade, coletivamente, está obrigada a encontrar alternativas para dar emprego digno aos que nunca mais terão oportunidade de voltar ao seu emprego pre-pandemia.

Transportes / Trânsito

Yang – Os primeiros meses do estado de emergência (meados de Março a Maio, mas sobretudo os quase 2 meses em que estivemos encerrados/ confinados em casa), trouxeram uma diminuição brutal do trânsito nas estradas. Amigos que trabalham no setor falaram-me, na altura do confinamento geral, em quebras nos volumes de tráfego medidos, em comparação com o período homólogo do ano anterior, na casa dos 90 %. Passámos a respirar melhor, passámos a ouvir os passarinhos onde antes apenas se escutava o rugir desafinado e poluente de motores. Passou a haver menos sinistros de automóvel, menos mortos na estrada. Pensou-se que o prolongamento do teletrabalho (muitas empresas já anunciaram que só no final do primeiro trimestre de 2021 reavaliarão a situação do pessoal em teletrabalho) permitiria que este idílico estado de nirvana ambiental se poderia manter no futuro.

Yin– Em poucos meses essa esperança demonstrou ser prematura. Apesar de muitas empresas se manterem em teletrabalho, o trânsito nas grandes malhas urbanas está em níveis pre-COVID-19  ! A razão é simples. O terror ao vírus é de tal ordem, que as pessoas evitam a utilização de transportes públicos urbanos. Um conhecido que negoceia em automóveis usados há mais de 20 anos disse recentemente que 2020 está a ser o melhor ano na história da empresa ! Ou seja, apesar de haver menos pessoas a ter de se deslocar para um lugar de trabalho fora de casa, as que há deixaram de usar transportes públicos (é vê-los a circular vazios, mesmo nas antigas „horas de ponta“), e passaram a usar um carro usado…

Podíamos continuar, mas aqui o primeiro ponto que eu gostaria de deixar como reflexão é que mesmo numa pandemia destrutiva podemos sempre encontrar um Yang positivo onde antes só víamos um Yin negro que nos desesperava. Até mesmo no aspeto mais terrível associado à pandemia, o da morte. A minha filha mais velha, médica, trabalha e reside no México, um país onde a pandemia tem feito uma autêntica razia na população de risco, por estar a ser muito mal gerida. Ora bem, curiosamente o saldo de mortes causadas pela pandemia tem sido amplamente compensado pelo saldo menor de mortes causadas por doenças gastro-intestinais. O facto de as pessoas terem maiores cuidados higiénicos com a desinfeção de mãos, e com a preparação de alimentos, teve um efeito bombástico na diminuição de mortes por gastroenterites!

O outro ponto que gostaria de ressaltar é que as companhias que vendem produtos e serviços baseados nas estatísticas passadas de comportamento e preferências dos consumidores vão ter de refazer do zero os dados estatísticos em que assentam os seus modelos de negócios, sobretudo depois da „poeira“ assentar, lá para meados / finais de 2021, quando houver uma percentagem da população mundial suficientemente ampla já vacinada, e as pessoas começarem gradualmente a perder o medo a fazer uma vida „normal“. Só aí se conseguirá ver quais dos novos hábitos e comportamentos de consumo adquiridos durante a pandemia se cristalizam e perduram. Até lá, todos nós estaremos a navegar à vista.”

 

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