José António de Sousa é gestor aposentado depois de quatro décadas na liderança de multinacionais de seguros.
Um amigo fez-me chegar um exemplar do livro “Memórias de um Maestro”, que cobre uma grande parte, se não mesmo toda, da relevante carreira e do admirável percurso profissional do Maestro Álvaro Cassuto, tio-avô do genro dele.
O meu amigo conhece-o pessoalmente, e encontrava-o com frequência na pre-pandemia para marcantes tertúlias de convívio. Leva já tempo sem o ver, o que não deixa de ser frustrante, considerando que ambos têm 84 anos.
O livro dá umas breves luzes introdutórias sobre o passado do maestro e da sua família, de legítimas raízes sefarditas, contrariamente a tantos outros que recentemente compraram essa ligação ao passado, com cumplicidades espúrias ao mais alto nível. Os pais de Álvaro Cassuto vieram viver para Portugal antes que a longa noite da barbárie nazi cobrisse a Europa, e se focasse com sanha particular no extermínio massivo da comunidade judaica internacional. Álvaro Cassuto nasce no Porto, na Rua do Campo Alegre, em Novembro de 1938, e espero que viva longos anos com farta saúde na companhia da sua família.
O Maestro, um virtuoso, um profissional de uma craveira técnica, equiparável à das grandes figuras internacionais de condução de orquestras da História da Música, tem uma saudável dose de auto-estima, mais do que justificada e documentada pelas recomendações e críticas elogiosas feitas por prestigiadas instituições ao mais alto nível, cujos testemunhos ele publica profusamente e sem falsas modéstias (tem um estatuto em que não precisa de as ter!) no seu livro. Um livro fascinante, cuja leitura, que se faz de uma penada, de tão difícil que é pô-lo de lado quando se começa a ler, vivamente recomendo.
Como todos os sindicatos deviam ser
Não sou da mesma área profissional do Maestro Cassuto, pelo que o que despoleta o meu interesse por partilhar algumas ideias sobre esta obra não são questões do âmbito da música clássica, mas de gestão. Em particular de gestão da causa pública por representantes eleitos com os votos do meu povo, profusamente comentadas pelo Maestro ao longo do livro. E que seriam para rir, se não nos deixassem com copiosas lágrimas ao canto do olho.
Por exemplo, quando narra o convite para dirigir a Rhode Island Orchestra, e encontra uma orquestra cheia de problemas de toda a índole. Cassuto tem necessidade de tomar algumas medidas drásticas com implicações sérias na gestão das sensibilidades dos músicos que a integravam. Obteve de imediato o apoio incondicional do presidente da orquestra, “que respeitou o meu cargo de “music director”, reconhecendo que eu tinha uma missão, e que tinha de ter não só as mãos livres para a cumprir mas, acima de tudo, precisava do apoio da direção, uma atitude que raramente encontrei em Portugal”.
Ainda mais admirável foi a atitude do presidente do Sindicato dos Músicos. Os músicos despromovidos queixaram-se ao poderoso sindicato da classe, que contactou a direção da orquestra com o objetivo de fazer pressão que levasse ao afastamento de Cassuto. O Maestro vai a Nova York falar com o presidente do sindicato, explica-lhe a situação e a necessidade de efetuar mudanças organizacionais para tratar de salvar a orquestra, e recebe a indicação de que, como a orquestra de Rhode Island não tinha um contrato coletivo próprio, o Maestro era livre de contratar os músicos profissionais que muito bem entendesse, desde que fossem sindicalizados. Acrescentou também o presidente do sindicato que “quanto melhor forem os músicos, melhor será a orquestra, e consequentemente mais fácil será angariar os fundos necessários para alargar a sua atividade, e aumentar os salários”. O homem encerrou a conversa sublinhando que “esta era a única prioridade do sindicato, e não a proteção de músicos de nível inferior ”! Que tal, Isabel Camarinha ? Admirável mundo novo para quem lida com o nosso mundo sindical. Exceções, e eu conheço pessoalmente uma só, de um dirigente sindical com bom senso e sentido prático focado no mérito das causas, e não na proteção irracional e cega de medíocres e calinos, confirmam a tristemente esmagadora regra.
A má gestão do Estado chega a todo o lado
Para quem ama este país como eu, e como Álvaro Cassuto, que ao longo da sua longa e profícua vida profissional, apesar de ser sistematicamente mal tratado em Portugal, voltou uma e outra vez com entusiasmo sempre que lhe propunham um novo desafio, para rapidamente voltar a cair na triste realidade da “gestão” à portuguesinha, o que mais choca e dói é ver como, sobretudo no setor público (mas não só), a mesquinhez e o compadrio, levam a que se coloquem “gestores” em posições de responsabilidade para as quais não são tecnicamente (e muitas vezes humanamente) competentes.
As subsequentes invejas e intrigas, no intuito de defender os “tachos”, e as manifestações do “quero, posso e mando” dos que usam a sua posição hierárquica para mandar e exercer poder, e não para gerir a equipa de forma harmoniosa e inclusiva, a irresponsabilidade pura e dura, alimentada pela ignorância, pela inconsciência e pelo desrespeito pelo dinheiro dos contribuintes, completam o caldo de cultivo que impede que em Portugal os projetos vinguem com qualidade, e permaneçam sustentáveis ao longo do tempo.
Álvaro Cassuto dá-nos, sem papas na língua, “pondo a boca no trombone”, e citando os nomes e apelidos dos que o desiludiram com as suas atitudes medíocres, uma profusão de exemplos concretos, como a fantástica história da construtiva conversa com o presidente do poderoso sindicato dos músicos, e eu não vou aqui contá-los, porque são muitos mesmo. Por um lado não teria espaço, e por outro porque vale mesmo a pena ler o livro de fio a pavio, e apreciar essas histórias deliciosas no contexto global de uma obra harmoniosa.
Mas para aguçar o apetite, apreciem-me isto: “O essencial da situação das Orquestras da RDP de Lisboa e do Porto, e da Orquestra Ligeira, residia numa gestão calamitosa,…, que nunca enfrentou nenhum dos problemas, deixando que as orquestras definhassem. Resumindo : 1. As vagas que iam surgindo não eram preenchidas. 2. A Direção Artística não tinha meios financeiros 3. As condições de trabalho eram caóticas. 4. A actividade era miserável. 5. Na sala de ensaios chovia e, em Lisboa, o chão ficava repleto de baldes para apanhar a água da chuva. “
Isto é o estado da gestão no Estado, que uns anos mais tarde resolveu os problemas detetados…. extinguindo as orquestras! De uma penada resolveu os problemas da péssima gestão profissional das mesmas.
Os muito bons brilham lá fora e ofuscam-se cá dentro
Álvaro Cassuto faz ao correr da pena um relato fascinante dos problemas que enfrentou ao longo da carreira para poder trabalhar em Portugal. Como ele diz, revelando uma mais do que justificada frustração, “a minha carreira prova à saciedade que eu era não só um bom chefe de orquestra, mas também um excelente gestor de orquestras, que passou a maior parte da sua carreira sem que as suas qualidades fossem reconhecidas e respeitadas no seu país natal, onde, nas orquestras de iniciativa governamental, sempre prevaleceram gestores de nomeação política pouco ou nada familiarizados com a matéria, com tristes resultados.”
Aquilo que talvez o maestro Cassuto nunca tenha querido aceitar, com a sua formação internacional humanista, e tendo trabalhado com êxito retumbante muitos anos em ambientes onde se exalta e recompensa o mérito, onde os profissionais não têm medo a ser avaliados pelas suas competências, e onde o que seja necessário dizer em ambiente profissional, e criticar de forma construtiva, se diz pela frente, e não nas intrigas de salão, é que em Portugal, no setor público, mas também no privado, ainda funciona a lei do menor denominador comum. Quem faz ondas, quem levanta a cabeça e se quer destacar pela positiva, puxando pelos outros para um patamar de exigência superior, leva logo a martelada para voltar para baixo, ao mesmo nível do resto dos “pregos”.
É por isso que os foras de série que o nosso país produz às pazadas, porque até somos muito bons em muitas áreas (ciências, informática, inovação e criatividade, marketing, design, engenharias, desporto, e, oh suprema ironia, em gestão também..) acabam por brilhar lá fora, e ofuscar-se cá dentro, sempre que tentam regressar ao solo pátrio e contribuir para o desenvolvimento do país.
A minha esperança secreta é que a geração mais preparada de sempre, e com mais acesso ao exterior de sempre, através das redes sociais, das incursões via Erasmus, etc., possa ser também o dínamo catalisador que consiga alterar este estado de coisas. A minha geração falhou redondamente em fazê-lo.
Leia mais artigos de José António de Sousa aqui.