“Tudo começou com uma conversa do saudoso Carlos Cáceres Monteiro, diretor da Visão e diretor editorial das revistas masculinas da Edimpresa, em cujo departamento se enquadrava a Exame. Disse-me que pensava que eu era a pessoa certa para dar a volta à revista. Eu?! Referiu a minha experiência no jornalismo de negócios e como “salvara” a Cosmopolitan. Seguiu-se um almoço com Francisco Pinto Balsemão, no restaurante Pabe. Nessa ocasião, encontrei uma oportunidade de me autossabotar quando o fundador e presidente da Impresa, contando uma história, referiu que nunca aceitava de regresso ao seu grupo editorial qualquer colaborador que tivesse saído: recordei-o de que, no passado, eu trocara a Exame pela Fortuna, revista concorrente que um grupo de dissidentes lançaria em Abril de 1992. De nada serviu.
Porém, não aceitei o desafio sem pedir nova reunião com Francisco Pinto Balsemão. De novo almoçámos os três, desta vez no Vela Latina. Queria deixar claro algumas condições para fazer o turnaround que me era pedido, de entre as quais a de que considerava que o diretor(a) da Exame não precisava estar com frequência na antena da SIC, que pertencia ao mesmo grupo de comunicação social, a fazer comentário económico, porquanto sabia que iria suceder a uma pessoa muito mediática, Camilo Lourenço, e as comparações acabariam por surgir; porque sabia que precisaria de dedicar toda a minha atenção à revista; porque não me era exigível que me movesse tão bem atrás das câmaras como na imprensa escrita; e, sobretudo, porque sabia que a Exame não venderia um só exemplar mais por me verem na televisão.
Pensei que o assunto ficara ali arrumado, mas descobriria depois que o tema era recorrente (sendo até referido num prefácio que Balsemão fez para o meu livro As Mulheres Normais têm qualquer Coisa de Excepcional). Levei a minha “teimosia”, como lhe chamou, até onde pude e acabei por ir não mais de uma dezena de vezes fazer comentário das notícias do dia para, no final da revista de imprensa, poder falar dos temas em destaque na Exame desse mês.
A minha remuneração foi negociada mais tarde, quando já estava envolvida com a reestruturação da Exame, com o diretor-geral da Edimpresa, Miguel Costa Gomes, gestor competente, afável, rigoroso e ético, em quem encontrei um aliado.
Quando aceitei a direção da Cosmopolitan e da Exame, teria preferido permanecer a fazer aquilo de que mais gosto: pesquisar, entrevistar e escrever; editar textos e “fechar páginas”. Acresce que em ambos os casos as revistas estavam em muito má situação económica e esperava-se de mim que conseguisse bons resultados rapidamente, o que era difícil. Tinha receio, mas a verdade é que nunca recusei um desafio e também a este não virei as costas. Se me garantiam que era a pessoa certa para dar a volta à Exame, não deixaria de fazer o que era preciso para salvar a revista de que guardava tão boas recordações, da época em que saía a correr das aulas a que não faltava na Faculdade de Direito de Lisboa para ir para a Rua Marcos Portugal, em Algés, para aquilo que, à minha escala, considerava que era fazer história. Foram tempos épicos!
Em final de 1988, depois de uma curta colaboração para a secção economia do jornal Semanário no período das férias de Verão, tive a sorte de ser convidada por Álvaro de Mendonça para integrar a equipa que em 1989 iria lançar uma revista de negócios “séria”, uma joint-venture entre a brasileira Abril e a Controljornal, fundada por Francisco Pinto Balsemão. Esse período na Exame (dois anos) foi para mim de enorme aprendizagem, com os diretores de então e com outros profissionais mais experientes, sobretudo, com os brasileiros Alberto Dines, jornalista, e Jaime Figuerola, diretor de Arte – mais tarde substituído por Carlos Bravo Villalba.
Além da tentativa de autossabotagem, sofri dos “males” tipicamente atribuído a mulheres: medo, culpa e “síndrome do impostor”.
“Uma mulher à frente da Exame é muito Cosmo”. Nunca esqueci as palavras da jornalista Susana Chaves, quando se soube que eu era a nova diretora da Exame, sucedendo a Luís Fonseca que havia largos meses interinamente assumia a responsabilidade editorial da revista, depois da saída de Camilo Lourenço. “Muito Cosmo”, como dizia a que fora editora de beleza Cosmopolitan, é a expressão que na Cosmo em todo o mundo se usa para referir as Fun, Fearless Females, mulheres independentes, seguras e destemidas a quem a revista feminina se dirige.
“Diretora da Exame”. Não me conseguia habituar à ideia. Tomava-me de assalto uma responsabilidade que me pesava nos ombros. Era um fardo difícil de carregar. Além da tentativa de autossabotagem, sofri dos “males” tipicamente atribuído a mulheres: medo, culpa e “síndrome do impostor”.
Medo de falhar no mandato que me atribuíam, o de salvar a revista que, tal como a Cosmopolitan onde fizemos um turnaround bem-sucedido, corria o risco de encerrar por ser fortemente deficitária e por sobre si impenderem ainda alguns processos judiciais com pedidos milionários de indemnização, interpostos por empresas que se sentiam lesadas por artigos publicados. Culpa porque tive de deixar a família no Algarve, prescindir das férias e vir para Lisboa reformular a revista e “reestruturar”, como então se dizia, a equipa. Culpa por não ter tempo para chorar a recente morte da minha avó materna. Culpa quando uma amiga me disse que aquela não era vida, que a família precisava de mim – apesar de no meu íntimo saber que nunca faltava às minhas responsabilidades familiares, contando com todo o apoio e incentivo da família. “Síndrome do impostor”, tipicamente feminina, pois sentia-me insegura quanto às minhas capacidades para liderar a Redação de uma publicação de referência, a revista de economia e negócios mais importante do país.
Quando fui nomeada diretora da Exame, alguém fez-me notar que em todo o mundo eu era talvez a única mulher diretora de uma revista de economia e negócios, revistas ditas “masculinas”. Hoje esforço-me, mas não me consigo lembrar quem me fez esta observação, pois concentrei-me, totalmente, na mensagem que me atirava para cima ainda maiores responsabilidades.
Possivelmente essa singularidade explica a desconfiança que senti de algumas pessoas da Redação, da equipa que tinha ido liderar (uma desconfiança, apesar de tudo, de menor magnitude do que a confiança que em mim depositava a administração e as pessoas que na divisão das revistas “femininas” conheciam melhor o meu trabalho). Provavelmente desconheciam o meu passado na imprensa económica, porque eu transitava diretamente da direção da Cosmopolitan (uma revista feminina, jovem, divertida e que falava de sexo, o que na altura não era tão comum como hoje) para a séria e rigorosa Exame.
Curiosamente, a desconfiança que agora sentia vinha sobretudo de mulheres. Não gosto de ter de o dizer, e esta afirmação só é válida para este caso e esta minha experiência, não se devendo fazer generalizações que constituam doutrina sobre o tema. Mas a verdade é que nesta transição senti que as minhas competências eram menos reconhecidas por elas do que por eles. Senti que se fosse um homem, seria mais respeitada e nem precisava de ser tão competente.
Olhando em retrospetiva para o caminho que fiz, e à luz de uma maior consciência do tema da igualdade de género e da paridade que ao longo dos últimos anos tenho adquirido, constato que, em geral, as mulheres têm, sim, uma carreira mais dificultada do que a dos homens, por diversas razões. Não me refiro tanto a episódios ostensivos de discriminação, pois esses são, talvez, mais fáceis de identificar e enfrentar através de mecanismos legais, se a eles quisermos recorrer. Refiro-me a, no dia a dia, ter de trabalhar mais, dar mais provas, apresentar melhores resultados do que os nossos pares homens, e lidar com algumas atitudes de paternalismo e de discriminação subtil, como a que agora sentia. E estes enviesamentos (bias) vêm também de mulheres.
Eu apenas conhecia uma “condição”: a mudança tinha de ser radical, pois chamavam-lhe a “refundação” da Exame.
Para fazer o trabalho de Hércules que me colocavam nas mãos, sabia que tinha de me rodear de uma pessoa de confiança, melhor do que eu em muitas áreas. Convenci Filipe S. Fernandes, que estava no Jornal de Negócios. Ligava-nos uma forte amizade, mas trabalhávamos juntos desde a fundação da Examee eu sabia que era a pessoa que queria ter na minha equipa. Filipe S. Fernandes é um jornalista sério, rigoroso, respeitado e criativo. Não hesitou em largar um jornal e uma função onde estava bem porque era preciso salvar a Exame. Também para ele o apelo emocional foi mais forte.
A administração da Edimpresa deu-nos carta branca… para tudo. Eu apenas conhecia uma “condição”: a mudança tinha de ser radical, pois chamavam-lhe a “refundação” da Exame. Numa ocasião formalmente e noutra vez segredado à saída de uma reunião, preveniram-me que deveria fazer um despedimento generalizado, pois com aquela equipa não conseguiria fazer a mudança pretendida. Decidi que só seria dispensado o número de pessoas absolutamente necessário para viabilizar a revista. O que fazer com o título foi decidido por nós. Pedia instruções estratégicas, mas deixavam isso sobre os nossos ombros. Faziam-nos pensar sobre a transformação num jornal diário, mas decidimos com a nossa intuição: a revista quinzenal voltaria a ser editada mensalmente. Com esta mudança, metade da equipa teve de ser dispensada. Escusado será dizer que foi um processo muito doloroso para todos os envolvidos, mas, obviamente, sobretudo para os visados pelo despedimento. Esta culpa também se carrega toda a vida.
A Exame não podia sair no final do mês com um resumo de tudo o que já fora lido nos diários, semanários, rádios e televisão. Tínhamos de ter matérias diferentes e relevantes.
À Cosmopolitan fomos buscar Paula Gonçalves Araújo, que em conjugação com Alexandra Belmonte, da direção de Arte das revistas femininas, se dedicou a um novo designgráfico, que desse corpo às ideias que pretendíamos tratar. Francisco Pinto Balsemão envolveu-se neste período, decidindo o timing do relançamento e concedendo-nos escasso tempo para a reformulação da Redação e definição do novo plano de negócios, o projeto gráfico e editorial, e o fecho da edição. Com a colaboração de toda a Redação, conseguiu-se.
Eu e o Filipe constituíamos uma verdadeira equipa, em sintonia na maior parte das vezes e plenamente de acordo nas matérias fundamentais. Decidimos apostar em histórias de negócios, bem contadas, com uma abordagem positiva, que escapassem ao radar dos outros meios económicos, pois procurávamos as nossas próprias ideias e, mesmo quando aceitávamos a sugestão de agências de comunicação, só nos interessávamos por exclusivos. A Exame não podia sair no final do mês com um resumo de tudo o que já fora lido nos diários, semanários, rádios e televisão. Tínhamos de ter matérias diferentes e relevantes. Acho que o conseguimos.
A primeira edição renovada da revista saiu com 236 páginas, porque os anunciantes corresponderam bem à ideia da mudança, vendida pela equipa comercial liderada por Maria João Peixe Dias, Pedro Santos e Vanda Coimbra (mais tarde seria Manuel Geraldes), e foi enviada a uma base de dados com cartas assinadas por Francisco Pinto Balsemão ou por mim. “Iremos manter-nos fiéis à missão de informar e analisar os fenómenos que estão a ocorrer e antecipar as tendências que irão marcar a agenda no mundo da economia e negócios, tanto em Portugal como internacionalmente. Cimentaremos a nossa posição de liderança na informação isenta e rigorosa, na análise e opinião plural e de prestígio e num grafismo elegante e moderno”, escrevi então. Soube mais tarde que nesse mês de Outubro as contas saíram do vermelho, o que não acontecia há muito tempo.
A Exame lançou suplementos comerciais e editoriais (um deles era a Executiva, projeto que Jaime Fidalgo Cardoso me confiara na Executive Digest e que sempre senti que fazia falta para as mulheres que valorizam a sua carreira), a Conferência Portugal em Exame e editámos livros.
Nos anos seguintes, com as nossas ideias e a ajuda de toda a equipa editorial, comercial e de marketing e eventos, a Exame lançou suplementos comerciais e editoriais (um deles era a Executiva, projeto que Jaime Fidalgo Cardoso me confiara na Executive Digest e que sempre senti que fazia falta para as mulheres que valorizam a sua carreira). Com o apoio decisivo do diretor-geral, Miguel Costa Gomes, lançámos a Conferência Portugal em Exame e editámos livros. Sentíamos que para ganhar mais negócio e conquistar peso dentro do grupo, em que a Examedisputava a atenção e os recursos com títulos como a Visão, tínhamos de fazer “crescer o bolo” com outras atividades – a mesma estratégia que aplicamos hoje na Executiva, pois as receitas de publicidade digital não sustentam minimamente um projeto editorial.
Tudo o que fizemos foi feito a pensar na Exame com a notoriedade e a qualidade que lhe conhecíamos aquando do seu lançamento. Eu sentia-me a guardiã da marca e lutava contra tudo e contra todos, se fosse preciso. Defendia aquilo em que acreditava, o que por vezes não me tornava propriamente popular junto de alguns fóruns.
À crise económica, somava-se uma indústria a atravessar uma mudança de paradigma, uma empresa com um enorme passivo e uma gestão com algum desnorte que cometeu erros estratégicos. Já não sei precisar quantas reestruturações no grupo se fizeram.
Em Maio de 2008, o grupo de Balsemão optou pela compra dos 50% que o grupo suíço Edipresse tinha no capital da Edimpresa, ficando com 100% das revistas. Foi um investimento de 26,5 milhões de euros, de que acabaria por não tirar retorno. Depois de alguns anos de muitas aquisições, circunstâncias várias levaram a dificuldades económicas e financeiras da Impresa. À crise económica, somava-se uma indústria a atravessar uma mudança de paradigma, uma empresa com um enorme passivo e uma gestão com algum desnorte que cometeu erros estratégicos.
Já não sei precisar quantas reestruturações no grupo se fizeram. Numa delas, a Exame foi definitivamente enquadrada na diretoria do Expresso, numa operação que sentimos como uma colonização. Os jornalistas da Exame, cada vez mais diminutos em número, sentiam que queriam e/ou deviam trabalhar semanalmente para o Expresso, mas os jornalistas do Expresso, salvo raras exceções, só contribuíam para a Exameesporadicamente, normalmente sem grande entusiasmo, pois era um acréscimo ao seu trabalho. A revista de referência estava a ser feita sem os necessários recursos.
Com equipas cada vez mais reduzidas e desmotivadas, o desinvestimento nas revistas era gritante. Depois da fusão das Redações do Expresso e da Exame, no final de 2012 comunicaram-me aquilo que há muito prevíamos: a direção da Exame passaria a ser assegurada por um dos diretores do Expresso, João Vieira Pereira, e eu e o Filipe saímos.
Tal como a sociedade portuguesa em que se inserem, as empresas de comunicação social portuguesas são ainda muito discriminatórias.
A minha carreira foi sendo feita à medida das oportunidades que apareciam e dos convites que me eram feitos. Nunca planeei, muito menos sequer imaginei, chegar a diretora de duas publicações. Por isso, não consigo enumerar qualquer obstáculo neste percurso, porque eu apenas ia fazendo o caminho que se apresentava à minha frente. Se havia obstáculos, eu considerava que era o mesmo caminho com os mesmos escolhos que os meus camaradas homens também trilhavam.
No entanto, em retrospectiva percebo que, apesar de ter sido diretora de uma importante publicação, apesar de as Redações estarem cheias de mulheres, tal como a sociedade portuguesa em que se inserem, as empresas de comunicação social portuguesas são ainda muito discriminatórias. As mulheres estão fracamente representadas na administração, na direção e na edição dos órgãos de comunicação social. O que é lamentável, porque os meios de comunicação social deveriam ser agentes de mudança e precisam da nossa visão. Como muitas outras organizações em todo o mundo, deveriam autorregular-se, impondo-se metas internas, no reconhecimento de que este tema é importante, em primeira linha, porque se trata de uma questão de justiça e, também, de negócio (melhores resultados conseguidos por equipas mistas).
Sentimos que não estaríamos hoje a fazer a Executiva.pt da forma que as leitoras valorizam, se o sitetivesse sido criado mal deixámos os bancos da Universidade. O que observámos em três décadas de experiência profissional, o que aprendemos, o que testámos, o que errámos, as pessoas que conhecemos, os camaradas, chefes e líderes que nos acompanharam e os que nos desiludiram – tudo concorre para o nosso projeto empresarial tal como ele hoje se desenvolve.
Acabei por exercer funções de diretora da Exame, de Setembro de 2003 a Dezembro de 2012, durante nove dos 30 anos que agora a Exame celebra. Acredito que alguma marca terá ficado da nossa direção, mas isso não será grande mérito, pois considero que cada diretor imprimiu a sua própria identidade na revista.
Em Fevereiro de 2015, mais de dois anos depois de deixar a Exame, após mais de um quarto de século a trabalhar como jornalista por conta de outrem, em grandes grupos de comunicação social, lancei-me como empreendedora, tendo como sócia Maria Serina. A maturação durante mais de uma década da ideia de lançar uma publicação de carreira e negócios para mulheres não fez com que a decisão de avançar tenha sido fácil. É preciso arrojo para arriscar investir num negócio próprio. É a hora da verdade, em que somos inteiramente responsáveis pelas decisões e pelo caminho que escolhemos.
Até agora, a aposta foi ganha, mas sentimos que não estaríamos hoje a fazer a Executiva.pt da forma que as leitoras valorizam, se o sitetivesse sido criado mal deixámos os bancos da Universidade. O que observámos em três décadas de experiência profissional, o que aprendemos, o que testámos, o que errámos, as pessoas que conhecemos, os camaradas, chefes e líderes que nos acompanharam e os que nos desiludiram – tudo concorre para o nosso projeto empresarial tal como ele hoje se desenvolve.
À equipa que hoje é responsável pela revista Exame, os meus sinceros votos de muitos êxitos. A Exame é uma instituição com uma história muito rica e que merece perdurar!”