“A DefinedCrowd está a contribuir para que os robôs sejam mais inteligentes e que nos consigam compreender melhor, deixando mais tempo livre para as coisas que verdadeiramente importam”, é assim que Daniela Braga, 39 anos, resume o que faz a empresa que fundou em meados de 2015 nos Estados Unidos e que está entre as finalistas do TechCrunch Disrupt NYC 2017, em menos de 3% das startups que têm até três anos de atividade.
Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas explica que se a Literatura nada tem a ver com o que faz hoje, já o lado rigoroso do uso da língua como ferramenta de comunicação não podia ter mais afinidades. “Lidamos diariamente com dados em 46 línguas, para as quais são necessários conhecimentos desde o nível de falantes nativos ao científico, por linguistas ou especialistas em Ciências da Linguagem.” Quando se conversa com Daniela Braga tudo parece ter uma explicação fácil até mesmo quando fala sobre uma área que ainda mal compreendemos.
Curiosamente, o seu percurso profissional começou por ser muito mais banal do que aquilo em que se tornou. Após a licenciatura e o mestrado em Portugal, fez investigação na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto e deu aulas na Universidade da Corunha durante dois anos, até que entrou para a Microsoft e a sua vida começou a fazer sentido. Conheça o seu percurso numa entrevista que deu à Executiva por email a partir de Seattle, onde vive com a filha.
Como é que os seus empregos anteriores moldaram o seu percurso profissional e a conduziram até à DefinedCrowd?
Sem dúvida que cada emprego me moldou um bocadinho para chegar onde estou hoje. Os empregos na Academia deram-me o espírito científico para procurar sempre uma solução inovadora. Os empregos na indústria deram-me a experiência de trabalho de alta responsabilidade à escala mundial com aplicações que têm impacto em milhões de utilizadores. Ensinaram-me a lidar com sistemas sociais complexos, com jogos de poder, com finanças, recursos humanos…. Tornaram-me cada vez mais forte, uma vez que me habituaram a lidar com profissionais muito competentes num ambiente muito competitivo.
“Sempre [me senti] a “remar contra a maré”, contra uma ordem na qual eu tentei encaixar-me desde a infância. Durante alguns anos acho que consegui fingir que me encaixava nessa ordem. Mas assim que a Microsoft me descobriu, a minha vida mudou.”
Trabalhou em vários países. O que aprendeu de relevante em cada um deles sobre a forma de trabalhar para ter sucesso?
É interessante, porque todos os países gravaram em mim qualquer coisa de diferente. De Portugal aprendi as minhas bases como indivíduo e como profissional. Sempre senti um outlier, sempre a “remar contra a maré”, como se diz, contra uma ordem na qual eu tentei encaixar-me desde a minha infância. Durante alguns anos acho que consegui fingir que me encaixava nessa ordem. Mas assim que a Microsoft me descobriu, a minha vida mudou. Vivi e trabalhei em Espanha dois anos, antes de ir para Lisboa, para a Microsoft, e foi a primeira vez que realmente aprendi a viver sozinha. Quando me mudei para Pequim com uma oferta irrecusável da Microsoft, foi realmente o momento mais duro da minha vida, mas um tempo de crescimento único, quer do ponto de vista profissional quer pessoal.
A mudança para os Estados Unidos foi o aha moment. Apesar de eu já cá ter vindo antes, chegar aqui foi o momento em que finalmente me senti em casa, o que é uma coisa interessante. Foi neste momento que trouxe a minha filha para cá e a minha família se partiu, o que supostamente seria uma situação mais dura para mim. Mas este país fez-me sentir em casa de uma maneira como eu nunca me senti. A maior parte dos portugueses que conheci que viveram cá voltaram para Portugal porque não aguentaram, mas eu sinto-me em casa aqui. Por um lado, Portugal deu-me as minhas raízes, mas sinto que me identifico mais com os Estados Unidos.
Todos os lugares por onde passei ao longo da minha vida foram, na realidade, oportunidades do momento que eu fui agarrando à medida que apareciam, nunca foi nada planeado. A única coisa planeada foi sempre superar-me a mim própria.
Qual o momento em que percebeu que queria criar a sua própria empresa?
Eu saí da Microsoft em 2013 e fui para a Voicebox no final desse ano. Na altura a empresa tinha ganho um contrato enorme com a Samsung e eu tive carta branca para nos por no mapa da data science. Simultaneamente, fui convidada para dar aulas de Data e Crowdsourcing para Speech Tecnologies na Universidade de Washington. Tudo isto requereu uma grande investigação do estado da arte. Foi neste momento que percebi que havia uma grande oportunidade de mercado numa área madura, a Inteligência Artificial, que a minha experiência me colocava à frente do estado da arte, pelo que decidi criar a minha própria empresa. Com tudo o que aprendera nas grandes empresas, e com o momento da tecnologia e a oportunidade do mercado, achei que havia espaço para criar uma empresa nesta área que se dedicasse a resolver o problema de dados, uma vez que 90% das empresas de data science estão a resolver o problema de machine learning, enquanto apenas 10% estão a solucionar os problemas dos dados. E nenhuma delas está a fazer um trabalho escalável e de qualidade. E foi esta a oportunidade que vi no mercado que me fez criar a DefinedCrowd.
“Os investidores portugueses pedem milhares de provas antes de investirem 100 mil dólares, enquanto aqui nos Estados Unidos é possível ir com uma ideia e um PowerPoint para obter os mesmos 100 mil dólares.”
Porquê criar uma empresa nos Estados Unidos? O que faz nos Estados Unidos era impossível de fazer em Portugal?
Existem dois fatores principais: o tamanho do mercado e a atitude avessa ao risco que os investidores portugueses ainda têm. É muito difícil executar um plano de crescimento rápido a partir de Portugal, sobretudo na área de Inteligência Artificial. Este mercado engloba as companhias da Fortune 500, que estão essencialmente nos Estados Unidos e na Ásia-Pacífico. A Europa tem imenso talento – é por isso que nós temos a DefinedCrowd em Portugal –, mas o mercado é pequeno comparado com o resto do mundo.
A juntar a isto, temos ainda a questão da tração dos clientes, uma vez que os ciclos de vendas nos Estados Unidos são muito mais rápidos. Enquanto que nos Estados Unidos se consegue fechar um contrato com uma empresa grande entre 2 e 8 meses, na Europa leva-se pelo menos um ano. E o tamanho do contrato vai ser sempre um décimo do potencial. Os europeus têm muito a mentalidade de fazer tudo em casa: vamos ouvir, mas vamos fazer em casa. E não há pressa.
Por outro lado, é muito complicado chegar a um investidor em Portugal com uma ideia e ser financiado. Porque os investidores portugueses pedem milhares de provas antes de investirem 100 mil dólares, enquanto aqui nos Estados Unidos é possível ir com uma ideia e um PowerPoint para obter os mesmos 100 mil dólares. Tem a ver com conservadorismo e com a oportunidade de mercado.
QUAL O SEU MELHOR SEGREDO PARA UMA BOA GESTÃO DE TEMPO?
Ser muito organizada. Uma coisa que eu acho que resulta muito bem é ter tudo no meu calendário. É o que eu recomendo a quem me pergunta como é que eu me organizo e faço tanta coisa. Eu vivo à volta do meu calendário! Viajo muito e não tem melhorado! Viajo semana sim, semana não, às vezes todas as semanas. Quando não viajo, acordo às 6h30/7h00, respondo a alguns emails, às 7h20 acordo a minha filha, deixo-a na escola às 8h00, às 8h30 estou a ter reuniões com a equipa de Portugal, todos os dias. Depois, tenho mais reuniões até às 10h30/11h00 com Portugal e clientes. Às 12h00 vou para o escritório em Seattle, fico lá até às 17h00, saio e vou buscar a minha filha. Cozinho, estou um bocadinho com ela, dou-lhe banho, leio-lhe uma história, e ainda respondo a mais alguns emails. À noite é quando vejo as novidades da indústria do dia. E não tenho muito mais tempo.
O que faz exatamente a DefinedCrowd?
A DefinedCrowd oferece uma plataforma inteligente de recolha, enriquecimento, processamento e transformação de dados para sistemas de Inteligência Artificial e Aprendizagem Automática. A nossa plataforma disponibiliza processos pré-concebidos que combinam tarefas realizadas por humanos (ou seja, através do crowdsourcing), ferramentas e modelos de Machine Learning, de modo a acelerar e aperfeiçoar a criação de sistemas inteligentes.
De uma maneira mais simples, a DefinedCrowd está a contribuir para que os robôs, assistentes pessoais, etc, sejam mais inteligentes e que nos consigam compreender melhor, deixando mais tempo livre para as coisas que verdadeiramente importam.
“Tenho a sensação que nós, mulheres na tecnologia (que somos muito poucas e em lugares de chefia ainda menos), temos de dar três vezes mais provas ao longo da carreira do que qualquer homem na mesma posição.”
Quais os principais desafios que tem enfrentado como empreendedora?
Dizem que as mulheres fundadoras são, à partida, menos financiadas. Até agora eu não tive essa experiência. Encontrei um ou outro investidor que senti que não acreditou em mim por ser mulher, mas não há provas concretas em relação a isso.
Acho que os meus desafios são exponenciados por ser single founder e mulher, mas tenho a sensação que nós, mulheres na tecnologia (que somos muito poucas e em lugares de chefia ainda menos), temos de dar três vezes mais provas ao longo da carreira do que qualquer homem na mesma posição.
Mas eu tenho-me rodeado de investidores fantásticos, uma leadership team na empresa espetacular e uma equipa incrível. Sinto sempre que estou stretched, mas o facto de estar tão bem rodeada faz com que os meus desafios se vão amenizando.
O que gostaria que alguém lhe tivesse dito quando lançou a sua empresa e que só aprendeu depois?
Nunca pode haver partes iguais quando se cria uma empresa. Tem que haver uma pessoa que claramente tem a maioria e a palavra final. Porque, de outra forma, é a receita para o desastre.
Que atributos e competências procura nas pessoas que trabalham consigo?
Espírito de trabalho, ambição, lealdade, profissionalismo, responsabilidade e algum espírito de sacrifício, especialmente nesta fase. Gosto de pessoas que querem ir sempre mais à frente. E, claro, espírito de equipa e mentalidade aberta.
“As mulheres ouvem mais, enquanto os homens tendem a ser mais egocêntricos. Eu incorporo todas as influências à minha volta que considero inteligentes. E não vejo os homens em posições de gestão a fazer isso, porque têm o orgulho pessoal e o ego mais exacerbados do que nós, mulheres.”
O facto de ser mulher influencia a forma como gere o negócio e como é vista pelos concorrentes?
Na vertente da gestão do negócio, não sei se nós, mulheres, gerimos o negócio de maneira assim tão diferente como oiço e leio. Eu não sinto que seja mais compadecida, piedosa ou emotiva por ser mulher. Talvez por estar há tanto tempo a trabalhar rodeada de homens não tenho essa sensibilidade tão aguçada. A principal diferença que eu acho que existe é as mulheres ouvirem mais, enquanto os homens tendem a ser mais egocêntricos. Eu incorporo todas as influências à minha volta que considero inteligentes. E não vejo os homens em posições de gestão a fazer isso, porque têm o orgulho pessoal e o ego mais exacerbados do que nós, mulheres. Talvez porque eles tenham de concorrer mais entre eles. É a única diferença, a parte de ouvir, de ser capaz de incorporar o feedback, que os homens têm mais dificuldade em fazer.
Por outro lado, acho que nos torna especiais. As mulheres que realmente conseguem provar que são competentes e serem respeitadas na indústria passam à frente dos homens. É uma faca de dois gumes, acho que é preciso trabalhar mais, mas uma vez trabalhado, estamos claramente em destaque.
QUE HÁBITO GANHOU NOS ESTADOS UNIDOS QUE NÃO TINHA EM PORTUGAL?
Não almoçar, por exemplo, que é uma coisa terrível! Em Portugal, as pessoas sentam-se para almoçar, com calma. Aqui, come-se qualquer coisa de pé, em cinco minutos, on the go. Mas tem uma vantagem, é muito mais fácil manter a linha!
Como se define hoje, é uma empreendedora ou uma investigadora?
Uma empreendedora que põe a investigação ao serviço de áreas que geram receita e mais valia no mundo.
O que mais gosta naquilo que faz?
O facto de nenhum dia ser igual ao anterior. Gosto de estar sempre na corda bamba, fora da minha zona de conforto, porque isso é que me estimula. Antes, ao fim de um ano numa função, estava aborrecida e tinha de arranjar outra função para mim. Nunca houve um emprego que fosse suficientemente motivante a longo termo para me fazer manter. Este foi o melhor set-up que consegui para estar constantemente a criar desafios a mim própria.
Qual o melhor conselho que pode dar a uma jovem que está a pensar lançar um negócio na sua área?
Primeiro, muito cuidado a estruturar a ownership da empresa. Segundo, há uma coisa que refiro muito friamente, mas que acho que tem de ser dita, especialmente para mulheres que querem seguir carreira na área de tech: não dá para ter tudo na vida. Existem outras mulheres que tiveram muita sorte com o marido, a família, e que conseguem ter tudo, mas não é essa a minha experiência. É preciso fazer escolhas, não dá para ser excelente em tudo, e há alguma coisa que vai ser sacrificada. No meu caso decidi sacrificar o meu lado pessoal e a minha família (não a minha filha, que é quem vem sempre primeiro, obviamente).
A DEFINEDCROWD À LUPA
Quando foi constituída a empresa? Agosto 2015, em Seattle, nos Estados Unidos
Quem são os principais clientes? Amazon, Voicebox, Jibo, Integral Ad Science, Accenture, Nikon, Nuance, entre outras empresas Fortune 500 que não podemos revelar.
Como se conseguiram financiar? Na pre-seed com local angels em Seattle, e na seed round com investimentos estratégicos da Amazon, Sony e Portugal Ventures.
Quantos colaboradores têm? 21
Quais os principais objetivos para 2017? Atingir os dois milhões de dólares de vendas, fechar uma series A que nos vai permitir duplicar o número de colaboradores, abrir um escritório no Japão e amadurecer o nosso produto.