Ana Carrilho, 50 anos, diretora da área de negócios de azeite do Esporão, diz que sempre gostou dos cheiros das frutas e legumes, de comida, e que foi isso que a levou a escolher o curso de Agroindústrias no Instituto Superior de Agronomia, em Lisboa, onde foi investigadora antes de optar pelo setor privado. Sempre sonhou ter um propósito na vida, e foi isso, e também porque gostou da forma de comunicar da cadeira sobre o tema, que a levou a trabalhar nos azeites, apesar das vozes contra que teve de ouvir. Empenha-se em tudo o que faz, o que contribuiu para ser, hoje, uma das principais especialistas do setor em Portugal. Ana Carrilho é também perita em análise sensorial no Conselho Oleícola Internacional, provadora em concursos nacionais e internacionais do setor, membro da direção da Casa do Azeite, entidade que reúne várias empresas nacionais produtoras e embaladoras de azeite, e da direção do Centro de Estudos e Promoção do Azeite do Alentejo, associação que reúne 28 produtores.
Como, quando e por que razão iniciou a sua atividade no setor do azeite?
A história é curiosa. Tudo talvez tenha começado porque gosto de comida desde miúda e sempre me entusiasmou o cheiro das frutas e dos legumes. Era talvez isso que me levava aos supermercados quando estava fora do país e me sentia um pouco triste com a distância. Era o lugar onde me sentia feliz.
Antes de entrar na universidade estava indecisa entre ser, ou não, médica, porque algumas pessoas da família o eram. E eu até pensava que também o queria ser, apesar de mais tarde, ter verificado que o que eu queria era ter um propósito. E foi quando percebi que o meu estava relacionado com o setor alimentar, que comecei a pensar qual seria a melhor forma de fazer a diferença. Foi isso que me levou a inscrever-me no Instituto Superior de Agronomia contra a vontade dos meus pais, que só foram informados da decisão depois de o ter feito.
Mas quando lá estava percebi que não era Agronomia pura e dura que queria, porque as cadeiras básicas não me suscitavam aquela paixão que esperava sentir. E eu tinha a certeza absoluta que queria trabalhar numa coisa que me apaixonasse. Então, mudei para Agroindústria, que tinha muito mais a ver com as transformação de produtos, com a comida em si.
O azeite era uma área sobre a qual sabia pouco. Muita gente avisou-me que era uma indústria suja, muito atrasada, que não era para mulheres e que eu nunca iria ganhar dinheiro. Azeite era azeite e pouco ou nada podia fazer. Estamos a falar de algo que aconteceu há mais de 25 anos.
E como é que chegou aos azeites?
Era uma área sobre a qual sabia pouco. Apenas conhecia as histórias que me contavam sobre o lagar de azeite do meu avô, que se chamava Luz e Progresso, e que também produzia eletricidade. Ficava em S. Pedro do Curval, perto de Reguengos de Monsaraz. Ou seja, havia muita ligação à terra na família do meu pai, mas eu era muito urbana. Vivi sempre na cidade, e só me aproximava do campo durante as férias de verão e de Natal. Lembro-me que demorávamos sempre imenso tempo no caminho.
No ISA ou fui muito boa aluna, porque gostava e me interessava, ou apenas aluna para passar. Isso tinha muito a ver com a forma como quem dava as aulas transmitia a informação. No quarto ano do curso decidi frequentar a cadeira optativa de óleos e gorduras, com o professor José Gouveia, embora também me tivesse interessado pela cadeira de vinhos do professor Virgílio Loureiro, um ótimo comunicador. E estive quase a assinar um papel para fazer com ele o trabalho final de um curso. Mas durante a frequência da cadeira do professor José Gouveia, numa altura em que grande parte dos meus colegas tinham ido para viticultura e enologia, alguns deles enólogos conhecidos hoje, que fizeram estágios nos Estados Unidos, Austrália, França, que era uma área onde já havia muito trabalho feito, optei por tomar este rumo.
Quem conhece o professor José Gouveia sabe que ele também é um grande comunicador. Tem o dom da palavra, o que me fez apaixonar pela cadeira logo na primeira aula. Por isso, comecei a encontrar-me muito com ele, nas horas em que ele recebia os alunos, para aprender mais, e passei a ter a certeza absoluta de que era aquilo que queria fazer. Muita gente avisou-me que era uma indústria suja, muito atrasada, que não era para mulheres e que eu nunca iria ganhar dinheiro. Azeite era azeite e pouco ou nada podia fazer. Estamos a falar de algo que aconteceu há mais de 25 anos.
Mas, afinal, estavam enganados.
Em face disso, fui fazendo, todos os anos, estágios também noutras áreas de atividade ligada às agroindústrias, mas decidi-me pelos azeites, apesar das vozes contra. E a partir daí comecei a desenvolver vários projetos na faculdade. O tema do meu trabalho de fim de curso foi o azeite, já na altura com origem em variedades portuguesas como a Galega e a Cobrançosa, aquelas que mais me apaixonam, para além da Cordovil, em sequeiro e regadio. A partir daí quis sempre fazer mais, aprender mais, e nunca mais saí do sector.
Tive o meu primeiro emprego quando ainda estava a fazer o curso. Estive a fazer o Cadastro Olivícola em Portugal, numa empresa chamada Geometral, o que contribuiu para ficar a conhecer muito bem o que existia e o que tinha acontecido em Portugal neste universo. E também noutros países.
Entretanto, estava já no quadro dessa empresa quando o professor José Gouveia me ligou a perguntar se queria trabalhar com ele. E eu nem pensei duas vezes. Pus a carta de demissão na empresa e comecei a trabalhar no Instituto Superior de Agronomia.
Passado algum tempo disse-lhe que queria ir para fora, para Itália, país que tinha know how e marca e fui em licença sabática. Um dos meus principais desafios era passar a ser relevante. Mas, para isso acontecer, para provar que alguém com uma cara de miúda o podia ser, tive de ir para fora.
Estive na Carapelli, um dos maiores embaladores de azeite do mundo, na altura, a trabalhar no Controlo de Qualidade, onde tive todas as condições para aprender muito, e rápido, no seu departamento de investigação e desenvolvimento.
Estive depois mais dois anos no ISA, antes de fazer o mestrado, em Espanha e não em Itália, porque já conhecia a realidade do país. É o maior produtor de azeite do mundo e queria sair um pouco do ambiente da faculdade, para fazer coisas diferentes. E foi assim que acabei por ser aceite num mestrado de dois anos, que decorreu em Córdoba. Como a bolsa era apenas de 500 euros, tive de pedir um empréstimo que me permitisse estar dois anos fora. E parti para a aventura.
Quando voltei, tive novamente o meu trabalho, porque a engenheira Paula Vasconcellos, do LET, Laboratório de Estudos Técnicos do ISA, vulgo Laboratório de Azeites, fez questão de me guardar o lugar. Em troca tive de trabalhar muitos fins de semana e fazer apresentações para manter a minha vaga.
Na verdade, foram dois anos incríveis, em que trabalhei no Instituto de La Graça, com uma das pessoas que mais admirava, José Alba Mendonça. É a pessoa que iniciou a grande mudança para a nova forma de extrair azeites e modernizar o setor. Como fui acompanhando a sua carreira ao longo dos anos, era com ele queria trabalhar. Mas quando lhe comuniquei que queria fazer o trabalho com ele, disse-me que isso seria impossível porque se iria reformar daí a dois anos, e já não tinha paciência para orientar mestrados. Fiquei tristíssima, mas insisti durante um ano até que me aceitou.
Quais foram os principais desafios dos primeiros tempos? Como é que os superou?
Um dos grandes desafios quando comecei a trabalhar no Instituto Superior de Agronomia foi levar investigação e inovação para a universidade. Como tínhamos poucos recursos, incentivei o laboratório de azeites a fazer trabalho para fora, para podermos ter dinheiro para investigar e não estarmos sempre à espera dos projetos de financiamento. Hoje, o LET é um laboratório de referência no país e eu orgulho-me muito em ter ajudado a construir esse espaço, com o qual ainda colaboro nos cursos de pós-graduação e no painel de prova de azeites.
Depois, quando mudei para a indústria criei o projeto da Olivais do Sul, que incluiu a plantação de olival e um projeto de um lagar. Aí, o meu grande desafio foi sair da academia para uma indústria com um orçamento e metas a cumprir, o que contribuiu para desenvolver a vertente financeira, com KPIs muito bem definidos. A partir daí o meu objetivo foi encontrar formas de tornar aquilo num negócio relevante no setor, de encontrar formas de sermos diferentes, melhores.
Casei-me, em 2007, e fui para a Olivais Sul em 2008, onde fui contribuindo para acrescentar valor ao seu negócio.
“Fui contratado para o Esporão através de um head hunter e grávida de cinco meses. Não era algo normal, na altura, no sector agrícola, onde havia muito poucas mulheres.”
Como é que surgiu o Esporão no seu caminho?
No início de 2013 recebi uma chamada de um head hunter. Nunca tal me tinha acontecido, porque os contactos para trabalho tinham sido feitos diretamente. Mas fiquei muito curiosa, apesar de não estar a pensar em mudar, porque ainda havia muito a fazer na Olivais do Sul.
Depois de ter sido contactada ainda fui um mês para o Chile, visitar uma série de olivais com o meu marido, que é do setor, o que torna mais fácil fazer este tipo de viagens temáticas. Só fui à entrevista depois. Acho que fui a última e fui sem qualquer ansiedade, porque estava grávida. Só descobri que era um projeto para o Esporão na primeira entrevista, depois de o João Roquette, o CEO da empresa, me ter falado um pouco sobre ele. Agradeci-lhe o contacto e a amabilidade com que me recebeu e disse-lhe que estava grávida de cinco meses, o que pensei que seria um adeus. Mas fui chamada para uma segunda entrevista e fui contratada grávida. Não era algo normal, na altura, no sector agrícola, onde havia muito poucas mulheres.
Qual a sua missão no Esporão?
O meu grande desafio, depois de ter entrado, foi tornar relevante o negócio do azeite na empresa. Naquela altura valia dois milhões de euros, tinha um lagar antigo, a ficar quase obsoleto, e uma equipa que não estava preparada para dar o salto. E João Roquette queria que isso acontecesse.
O objetivo era aumentar a faturação desta área e o seu peso no valor global do negócio do Esporão. Quando comecei, não chegava a 5%. Neste momento, representa 20%, que correspondem a 12 milhões de euros. Isso foi feito com base na melhoria da qualidade do azeite que colocamos no mercado, como é evidente, mas também da forma como o comunicamos. Fiz isso com base naquilo que aprendi com o setor de vinhos.
Assim, passámos a comunicar as variedades, os terroirs e também a equipa, dando um nome e uma cara ao projeto. Também construímos um novo lagar, disruptivo, preparado para as alterações climáticas, que já estavam a acontecer na altura e hoje se confirmam, e desenhado para aquilo que o Esporão estava determinado a fazer, que era produzir azeites de alta qualidade. Isso ajudou a aumentar as vendas.
O que é que considera essencial para a sustentabilidade das vendas de uma determinada marca de azeites em Portugal e nos mercados externos?
É essencial investimento na marca para garantir a qualidade, a constância da qualidade e a verdade da marca. A qualidade é fundamental para se manter a sustentabilidade. Para além disso, aquilo que é comunicado através do Marketing tem de ser verdade e estar alinhado com o que é feito. Só assim é que as marcas conseguem sobreviver e crescer.
O que é, para si, um grande azeite? Quais são as virtudes que deve ter?
É aquele que me surpreende quando abro uma garrafa, pela sua complexidade, por ser persistente na boca e ter harmonia. Felizmente, todos os anos há azeites que me surpreendem.
E como é que o apreciamos?
Para apreciarmos um bom azeite tem de ser com o prato certo. Em casa é cheirá-lo, prová-lo molhando o pão, usá-lo como os outros ingredientes, e comprá-lo com o mesmo cuidado que temos quando selecionamos uma boa carne, um bom peixe, uns bons legumes. O azeite não se bebe, come-se. Se for mau estraga o prato.
Ser oleóloga implica estar muito atenta ao mercado, ter a humildade de aprender e de mudar. Na agricultura não conseguimos controlar todas as variáveis que condicionam a produção; isso implica estabelecer ligações, redes por onde flua informação sobre o tema, que possa ser usada por quem trabalha no sector.
No mundo actual não basta produzir. É preciso estar atenta ao mercado?
Ser oleóloga implica estar muito atenta ao mercado. É preciso ir lá para fora, sair do nosso umbigo, porque há gente a fazer coisas muito boas fora de Portugal. Ou seja, temos de estar muito atentos ao que acontece, porque há sempre ameaças no mercado e temos de ter a humildade de aprender e de mudar.
Trabalhar na agricultura dá-nos uma grande lição de humildade, porque não conseguimos controlar todas as variáveis que condicionam a produção. Por isso, temos de estar atentos e fazer o possível para encontrar as melhores formas de atenuar estes riscos. Isso implica também estabelecer ligações, redes por onde flua informação sobre o tema, que possa ser usada por quem trabalha no sector.
Se todos produzirmos cada vez melhores azeites, o consumidor vai poder apreciá-los e justificar o preço que paga sem se lamentar por isso. O prazer que dá apreciar bom azeite pode justificar, tal como acontece com os vinhos, todos os euros que gastamos neles.
O mercado de azeites em Portugal passou recentemente por uma convulsão que originou o crescimento substancial dos preços nas prateleiras, que se sentiu de forma mais marcada nas marcas de maior volume. Como é que se explica esta evolução?
Isto tem a ver com a oferta e a procura. Ou seja, tem havido procura, mas não há oferta suficiente. Houve uma quebra superior a 50% na produção do maior produtor de azeitona do mundo, que é Espanha, e isso teve consequências no aumento de preços. Para além disso houve, em Portugal, aumentos nos preços das matérias primas usadas no setor, como os adubos que vinham da Ucrânia, antes da guerra, que deixaram de ser fornecidos por esta via. É o mercado a funcionar.
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