José António de Sousa: A Rute da Michelin

Num artigo em que escreve sobre o problema estrutural da maioria das empresas portuguesas que prestam um mau serviço ao cliente, José António de Sousa explica porque é que a Rute, da Michelin, é a colaboradora que todas as companhias precisam de clonar (metaforicamente) para ter êxito no mercado.

José António de Sousa fez a maior parte da sua carreira na liderança de multinacionais no estrangeiro.

José António de Sousa é gestor aposentado depois de quatro décadas na liderança de multinacionais de seguros.

 

Não há mesmo nada mais complicado na vida pós-pandemia em Portugal do que ser consumidor com um problema para resolver (privado ou com os serviços públicos). A esmagadora maioria das empresas, pequenas e grandes, avançaram com maior ou menor sucesso, para a digitalização forçada de processos, para poderem sobreviver e continuar a trabalhar em condições mínimas de operacionalidade durante a longa noite negra dos confinamentos obrigatórios e das restrições pandémicas.

Os call centers (ou o serviço telefónico desesperantemente amador prestado por funcionários pouco treinados para o fazer, nas empresas que não têm a dimensão por exemplo de uma EDP, de uma Vodafone etc., que não conseguiriam estar no mercado sem um) cresceram exponencialmente, e transformaram-se praticamente na única via de resolução de problemas, sendo no entanto eles próprios o maior problema que o consumidor enfrenta, pois pura e simplesmente não funcionam.

Se é para comprar, os call center funcionam às mil maravilhas, se por acaso é para resolver um problema de serviço, preparem-se para ouvir música (literalmente e metaforicamente) durante incontáveis minutos. Da última vez que precisei, foram 45 minutos com o telefone em alta-voz, enquanto lia o jornal e esperava que alguma alma caridosa me atendesse. Pelo menos tive a sorte de terem escolhido as Quatro Estações de Vivaldi para me manter na linha. Com outra escolha musical provavelmente teria desistido ao fim de poucos minutos… Já em linha, o problema não foi resolvido, mandaram-me ir fisicamente à loja no shopping mais próximo…

Aquilo que está claro é que hoje, para resolver um problema, estamos nas mãos da boa vontade de quem nos atende por milagre no lado de lá da linha. Um exemplo dos dois extremos (o bom e o mau) que aconteceu comigo. Rebentei um pneu (Michelin) e tratei de encontrar um representante da marca na net. Ligo para um deles, o mais próximo da minha residência, pertencente a uma rede que tem múltiplas lojas de pneus com a mesma marca a nível nacional (provavelmente franchisees e portanto aparentemente não ligadas entre si informaticamente…), que me diz que esse modelo de pneu está em falta. E que me recomenda procurar noutra loja da rede, porque se não houver em stock noutra loja, a Michelin não teriam também o pneu para entrega. Poderia ter de esperar semanas ou meses pela vinda de um pneu igual, devido aos problemas da pandemia e da guerra na Ucrânia (hoje em dia os convenientes bodes expiatórios para todo o tipo de ineficiências operativas das nossas empresas).

Liguei sem sucesso para mais 3 lojas da mesma rede de distribuidores de pneus, sendo que o último com quem falei também me disse que eles não tinham, “e a Michelin também não”. Achei estranho que o fabricante não tivesse um pneu que vem a equipar um carro comprado há somente 1 ano, e liguei diretamente para a Michelin.

 

Se ainda estivesse no ativo, moveria mundos e fundos para tratar de identificar a Rute, e fazer-lhe uma oferta irrecusável para vir trabalhar na companhia que administrei até há uns anos atrás.

Atendeu-me uma maravilhosa Rute, a pessoa mais eficiente, simpática e prestável que encontrei na minha vida do lado de lá de uma linha telefónica de serviço. A Rute disse-me que a Michelin tinha obviamente o pneu disponível para entrega, e que eu escolhesse uma das prestadores de serviço oficiais da marca a que tinha ligado, para ela falar com eles, porque poderia entregar o pneu em 24 horas. Eu pedi-lhe que ligasse para o que me tinha dito que a própria Michelin não tinha o pneu. Passados minutos, a Rute liga-me de volta para dizer que a pessoa com quem eu tinha falado confessou que disse o que disse apenas por dizer, porque iam fechar para férias, e sabia que não tinham tempo de resolver o meu problema ! A Rute perguntou-me para onde queria que eu mandasse o pneu. Sugeri a concessionária onde tinha comprado a viatura. Ela disse que tratava de tudo, que levasse o carro para lá. No dia seguinte o tema estava resolvido. Se ainda estivesse no ativo, moveria mundos e fundos para tratar de identificar a Rute, e fazer-lhe uma oferta irrecusável para vir trabalhar na companhia que administrei até há uns anos atrás. A Rute é a colaboradora que todas as companhias precisam de clonar (metaforicamente) para ter êxito no mercado!

Lessons learned com o caso da Michelin

1) Os gestores portugueses esqueceram os clientes das suas empresas. Segundo eles, aparentemente os clientes à procura de uma solução para um problema (não assim os que ligam para comprar-lhes o produto) são hoje uma chatice monumental, que só causam problemas e entropia, quando eles são os verdadeiros responsáveis pelas falhas cada vez maiores no modelo de serviço e atendimento a clientes. Nenhum deles procura experimentar o próprio veneno que serve aos seus clientes. Seria imperioso os gestores (públicos e privados) reavaliarem de A a Z toda a cadeia de valor e os processos operativos na parte de serviço e atendimento ao cliente, que em alguns casos sofreram alterações profundas derivadas da digitalização de processos.

2) As mulheres vão dominar o mundo dos negócios. São as que mais estudam, são as que mais se interessam por singrar no seu trabalho, são as que mais estão disponíveis para “correr a milha extra”, e responder com simpatia e eficiência às necessidades e expectativas dos clientes. O processo será longo, mas é inexorável. Só não se acelera porque lhes falta (ainda) a agressividade para lutar vocalmente nas barricadas pelo seu direito a ter oportunidades iguais em termos de carreira, assentes na competência e no mérito, e não no compadrio (e nos old boys networks). E já agora também a ter salário igual para “trabalho igual”, sabendo-se que hoje continuam a ter salários quase 20 0/0 inferiores por um trabalho muito mais eficiente e eficaz que o dos homens que ocupam posições similares. Acabo de ter a confirmação disto mesmo num caso próximo, e trata-se de uma multinacional.

3) “Pay them more”, dizia Joe Biden quando os empresários se queixaram da falta de mão de obra em muitas posições e setores que ainda não estabilizaram no pós-pandemia. Os call centers são um bom exemplo. A raiz profunda da inoperância e da falta de resposta que tanto desespera os clientes encontra-se nos baixos salários praticados. É um círculo vicioso. Paga-se pouco e dá-se uma formação mínima (não vá a concorrência levar o operador por mais uns míseros euros, tendo poupado os gastos de formação). Como está mal pago, o operador procura mesmo alternativas de trabalho. E como há falta de operadores, é fácil encontrar alternativas. A rotatividade é gigantesca, a deficiente formação impede que os problemas sejam resolvidos, os clientes ficam frustrados… Até quando ? Porque não dão ao cliente, em alternativa, um mail para expor o problema, e receber posteriormente uma resposta oral ou escrita. O mail, quando os call center estão a fumegar e não resolvem os problemas, são uma importante válvula de ventilação e segurança que evitaria a explosão da caldeira…

4) Mas não é só nos call center. Uma das mais famosas livrarias do mundo, que fica no Porto, tem filas gigantescas de turistas à porta, que pagam bilhete para a visitar. Se o visitante comprar um livro, o preço da entrada é-lhe  devolvido. Recentemente entrevistaram candidatos para uma posição de “customer service”. Uma entrevista de hora e meia conduzida em inglês, uma vez que 99% ou mais dos visitantes hoje são estrangeiros. No final quiseram contratar uma minha conhecida. Semana de 6 dias de trabalho basicamente sem horário fixo (isso dos 4 dias ou das 35 horas semanais é um mito no Norte de Portugal, e em muitos setores de atividade). Condições: salário mínimo… Como é óbvio, recusou. Ligaram-lhe passados uns dias, melhoravam a proposta em mais 100 euros… 800 euros mensais (brutos) por um regime de trabalho que nem nos tempos da Revolução Industrial no século XIX se praticava, para alguém preparado, culto, a acabar o curso de Belas Artes, e a falar inglês perfeito. Uma empresa que tem lucros principescos desde que o Harry Potter viu a luz do dia.

5) Resumo: gestão (falta de), bom senso (muita falta de) e visão ( terrível falta de ). O problema estrutural da maioria das nossas empresas resume-se a essa Santíssima Trindade. Se como clientes vamos sobrevivendo, isso deve-se às muitas Rutes da Michelin que têm dó dos clientes…

 

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